terça-feira, 1 de dezembro de 2009

MENSAGEM - 75 anos

Caro Pessoa, meu companheiro de alvorada,

Perco-me na tua obra. Leio-a, medito-a e depois espraio meus olhos cansados em textos daqueles que com ela tecem mantas discursivas tão abrangentes que cobrem grande parte do mundo.
Nesse mundo, encontram-se os poetas ingleses, onde tu também habitas.
E Mensagem, o poema hoje celebrado nos seus setenta e cinco anos, o poema lido como nacionalista, é um enigma que eu tento decifrar para além de todas as decifrações já publicadas. Porém, esbarro a cada passo. Neste momento, a parede é Keats e o seu Hyperion. Nessa luta de gigantes, entre velhos e novos deuses, colocaste os portugueses, filhos de deus e do diabo, na sua avançada imperial? Será por isso que o meu espírito, face a Mensagem, ora agarra a ideia do desvendar do segredo da esfinge pelo jovem Édipo, ora o agnus dei imolado por um deus que é pai numa cultura greco-romana-judaico-cristã? Impossível não acreditar que O Encoberto de Sampaio Bruno não passeie por lá, no horror manifestado pela crueldade nacional, bem expressa nos autos-de-fé, contrariando a ideia da “pátria dos brandos costumes”.
E tudo isso e muito mais vagueia na ironia dialógica da tua poesia, em adiamento do desvendar futuro.
Parabéns. Tu conseguiste.

domingo, 29 de novembro de 2009

30 de Novembro de 1935 - data da morte de Fernando Pessoa

"No princípio era o Verbo. E o Verbo Se fez Homem, e habitou entre nós".

Pode aplicar-se o teor desse discurso de João Evangelista ao Verbo de Fernando Pessoa. Ele quis ser e foi o criador pela palavra. Os seus heterónimos, feitos de palavra materializada em discurso, cá ficaram, bem vivos em obra, a confirmar o poder do criador, equiparado aos deuses.
Como últimas palavras escritas, no dia 29 de Novembro, deixou expresso o desconhecimento do amanhã: "I know not what tomorrow will bring".
Se o amanhã, a curto prazo, lhe trouxe a morte, o amanhã, a longo prazo, trouxe-lhe a imortalidade, hoje celebrada.
Recorde-se o último poema de Alberto Caeiro, o Mestre, "ditado pelo poeta no dia da sua morte":

"É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada."
Notícias da Casa Fernando Pessoa

«Fernando Pessoa: 75 anos de "Mensagem"

No próximo dia 1 de Dezembro assinala-se os 75 anos da publicação da primeira edição de Mensagem de Fernando Pessoa, o único livro de poemas em português que publicou em vida. A Câmara Municipal de Lisboa, a Biblioteca Nacional e a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, promovem uma sessão comemorativa no anfiteatro da BNP, às 17h30m, com a presença de Eduardo Lourenço, Manuel Alegre, Vasco Graça Moura e do actor Luís Lucas. Nessa sessão, a Guimarães Editores, em parceria exclusiva com a FNAC, vai lançar uma edição de Mensagem clonada do dactiloescrito original, que faz hoje parte do espólio da BNP. Essa edição terá venda exclusiva nas lojas Fnac e na Livraria de Arte. Ainda no âmbito do programa da comemoração dos 75 anos de Mensagem vão realizar-se na FNAC do Chiado e na Casa Fernando Pessoa debates moderados por Carlos Vaz Marques, dias 2 e 9 de Dezembro, pelas 18h30m:
Dia 2 “- É a hora!”, O sentido da “Mensagem”: com a presença de Paulo Borges, Manuel Gandra e Miguel Real;
Dia 9 "Mensagem", o Poema, o Prémio e o Estado Novo": com a presença de José Blanco, Richard Zenith e José Carlos Seabra Pereira.»


publicado por CFP às 19:50

sábado, 28 de novembro de 2009

Homenagem a Fernando Pessoa (13/06/1888- 30/11/1935)

QUASI

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - um antes de ontem que é sempre...

Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei...
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir.

Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.

Assim se faz a literatura...
Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado de papéis meio compostos,
Os outros também sou eu.

Vendedeira de rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...

Olho dos papéis que estou pensando em afinal não arrumar
Para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, acaba no meu cérebro em metafísica.

Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando-se,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema.

Como um deus, não arrumei nem a verdade nem a vida.

Álvaro de Campos

(Nota: Os versos começam com letra maiúscula; as palavras ou expressões com minúscula, em início de linha, pertencem ao verso da linha anterior.)

domingo, 18 de outubro de 2009

O gozo de Marcelo

Palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, no semanário Expresso, de 17 de Outubro de 2009: «A única missão patriótica que me daria gozo seria a Presidência da República».

E viva a leveza do Senhor Professor! Com que então a música é de gozo pessoal? Tange o violino e pede nada mais nada menos do que o maior cargo da nação. Para gozo pessoal ou por gozo pessoal? Portugal inteiro está muito interessado em dar gozo pessoal a Marcelo Rebelo de Sousa. O gozo pessoal do Professor preocupa a nação. Unamo-nos em torno dessa causa gloriosa: o gozo pessoal de Marcelo. Por isso, o zângão voa ao som do violino que geme por um gozo tão desejado. Neste caso, nada mais nada menos, do que o mais elevado cargo da nação: a Presidência da República. E nós, as obreiras, com isso?!
Mas se é certo, como sugere Miguel Veiga, que o PSD, qual zângão, voa apesar de cientificamente não estar apto para isso, com a declaração do Professor ele vai delirar no voo para impedir Marcelo de alcançar o tal gozo pessoal. Para isso, basta escolhê-lo para substituir Manuela Ferreira Leite, certamente, asfixiada pelo excesso de liberdade de vozes no seu partido.

O voo do zângão

Do jornal Expresso de 17 de Outubro de 2009, palavras de Miguel Veiga, o histórico PSD do Porto: «o cavaquismo morreu às mãos dos cavaquinhos»; « o PSD é como um zângão. O zângão [...]tem características que o impedem de voar. Mas porque é que voa?».
Certamente, estará dependente da música que o faz voar. E o cavaquinho continua a tocar, ainda que desafinadíssimo por excesso de magreza de ideias e de gordura de corrupção. Outras músicas vão tocando para que ele voe e o desatino do voo do zângão é completo: ele é o violino do Marcelo mais o martelar do bombo do Santana, em ruído de fundo que se arrasta ao longo do tempo; ele é o piano de Aguiar Branco interrompido pelo canto lírico de Rangel ao som de jovem orquestra. Certo é que o zângão continua a voar, desde que lhe dêem música. E essa não falta no PSD. E, quando, por instantes, o silêncio se faz sentir, vale-lhe sempre o trombone do Jardim da Madeira para o despertar e o fazer voar. Ele sabe do que o zângão precisa. E passos de coelho são silenciosos...

sábado, 18 de julho de 2009

Polémica ajardinada

- Fernando Pessoa considerava a polémica cultural capaz de fazer avançar culturalmente o país; talvez, por isso, tenha despoletado a polémica com a sua profecia da chegada próxima do "supra-Camões".
- Não me digas que isso vem a propósito das polémicas do Jardim da Madeira? Ofendes Pessoa.
- Estive a pensar no assunto Jardim e concluí que, no momento em que o tema da polémica política não lhe interessa, ele lança alguns temas chocantes, para acender os ânimos e pôr o país a olhar para a sua figura verborreica. Contudo, podemos tirar proveito cultural da situação discursiva, se aprofundarmos culturalmente a questão. Ora pensa: neste momento, quantas pessoas terão ido ler a Constituição para contextualizar as suas palavras? Eu já fui. E tu?
- Eu li e compreendi, que o socialismo ficou na gaveta da História Portuguesa, na sétima revisão constitucional de 2005. De facto, só aparece no preâmbulo da Constituição, com carácter de fazer História:
"A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno".
- OK! Já entendi, por que decoraste essa parte. Nesse parágrafo ainda há uma palavra a incomodar Jardim: "socialista" - "sociedade socialista".
- Mas afinal ele está filiado na social-democracia que também tem como objectivo, a longo prazo, a sociedade socialista!
- Pois, se ele é membro destacado do PSD, ele sabe que no programa desse partido está escrito:"Continua a ser no espaço da social-democracia reformista que se podem conjugar, com equilíbrio, os valores da liberdade individual, da igualdade de oportunidades, da solidariedade e da justiça social».
- Centremo-nos na polémica Proposta de Revisão Constitucional do PSD Madeira. É certo que essa proposta pretende que o comunismo não seja tolerado na democracia portuguesa, tal como o fascismo não é?
- Foi isso que me pareceu. Mas a Constituição não proíbe ideologias. Para tirar isso a limpo, fiz o levantamento da palavra "fascista" na Constituição: aparece três vezes. A primeira, para dizer que a revolução se fez para derrubar o "regime fascista"; a segunda,no artigo 46, para proibir "organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista"; a terceira, no artigo 160, sobre a perda do mandato de Deputado, por "participação em organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista».
- Daí se conclui, a partir do preâmbulo, que, se a Revolução dos Cravos foi feita contra o fascismo, lógico é que se proíbam as suas organizações.
- O mesmo acontece na Alemanha.
- Parece-me que Jardim pretendeu pôr o país a pensar no assunto. Voltou a levantar o papão, nesta hora de convulsão eleitoral.
- Subiu-lhe à cabeça a vitória do PSD na Eleição para Deputados Europeus e achou que tinha chegado a sua hora de invadir o continente, pelo menos com a sua verbe rotunda.
- Parece-me que é assim que ele mede a temperatura à sua popularidade nacional...
- O seu desejo secreto é certamente a invasão.
- Mas afinal que escreveu ele nessa Proposta?
- Em "Outras Alterações Pontuais", o documento propõe «o esclarecimento de que a democracia não deve tolerar comportamentos e ideologias autoritárias e totalitárias, não apenas de Direita - como é o caso do Fascismo, esta expressamente prevista no texto constitucional - como igualmente de Esquerda - como vem a ser o caso do Comunismo, não previsto no texto constitucional - assim se justificando a referência a ambas as ideologias, no art.º46º, n.º4º e no art.º160º, n.º1, al.d), da CRP».
- Esqueceu a História Portuguesa ou quer já enterrá-la em vida?
- Assim parece.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Arte de dar nas vistas

- Terei ouvido bem? Alberto João Jardim quer expulsar o comunismo da constituição????
- Ou será que quer o nazismo na constituição?
- Para ele, os dois assemelham-se.
- Será que não conhece a utopia comunista, a longo prazo, de uma sociedade igualitária em direitos e deveres?
- Ou será que pensa que o nazismo não tem em vista a selecção dos melhores (para quem?)
numa sociedade desigual e agressiva? Passaria ele nessa selecção?
- O senhor da Madeira quer polémica...
- Ou encurralar a presidente do seu partido.
- A ver vamos. Ainda estamos na cena 1.

A escola inclusiva e o bem comum

- Olhando para a sociedade actual, há que optar entre viver na indiferença dos problemas gerados pela pobreza ou lutar por uma sociedade mais justa.
- A última opção é coerente com o cristianismo, que pretende uma vida digna e justa para todos, em fraternidade.
- Numa Escola, colocar-se-ia o problema da igualdade de oportunidades, na perspectiva da escola inclusiva.
- Curioso! Avaliando a minha Escola, verifico que não há uma relação directa entre catolicismo e pedagogia da escola inclusiva. Salvaguardem-se as excepções.
- Pois é. Sempre estranhei essa incoerência. Mas não esqueçamos que a vida e a mensagem de Jesus Cristo são património da humanidade e que os princípios cristãos são absorvidos dentro da cultura judaico-cristã do Ocidente.
- Queres dizer que talvez seja essa uma das possíveis razões que levam alguns professores a trabalhar tão afincadamente pelo sucesso de todos os seus alunos,incluindo aqueles alunos que têm problemas de aprendizagem?
- Sim. Pergunto-me com frequência porque é que alguns seres humanos lutam pelo bem comum e outros se lhe opõem.
- Também me interrogo se o conceito de "bem comum" reúne consenso.
- Como pode "um escola para todos" não estar abrangida pelo conceito de "bem comum"? Não entendo que não haja um consenso acerca disto.
- Claro está que há um consenso teórico; o que não há é uma prática coerente com o princípio.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O mito da escola inclusiva

- Estou a ler um texto teu de 2000, sobre a escola inclusiva.
- Ah! As escolas, como é o caso dessa em que eu trabalhava, não se importam de colocar essa parangona no seu projecto educativo, mas não querem dar passos decisivos para atingirem essa meta.
- Não admira. Uma escola inclusiva pressupõe uma sociedade inclusiva, nem que seja numa miragem utópica. E quem a quer?
- Acho que tens razão. Mas poderá um humanista não trabalhar para que ela se torne uma realidade?
- Depende do conceito de humanista. Quantos humanistas confessos defendem uma escola exclusiva, a dos melhores, a dos adaptados ao sistema, propondo a exclusão dos outros? E isso em nome do bem da maioria.
- Só que a maioria não é a totalidade... Qual o projecto educativo para os inadaptados do sistema escolar? Fazer turmas ou escolas-guetos de inadaptados?
- Isso parece-me péssimo. Juntar problemas não os resolve, complica-os.
- Penso que a escola inclusiva ainda pertence ao desejo de uma minoria de educadores.
- Permite-me que leia parte do último parágrafo do teu texto, para que se possa comentar a nove anos de distância: «A integração e a inclusão produzem-se em ambiente de inovação que é sempre um processo de tensão entre a vontade de mudar e o imobilismo. Ideais e hábitos lutam entre si».
- Claro que, nesse âmbito, existe uma luta, dentro de cada professor e fora dele.Penso que, nessa escola, aconteceu e continua a acontecer uma batalha campal, tal como previra. Porque muito está em causa, tal como Miguel Zalbaza escrevia em «Diversidade e Currículo escolar», nomeadamente a instituição.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Parabéns a Sophia de Mello Breyner

A Sophia de Mello Breyner Andresen (n.6 de Novembro de 1919, f. 2 de Julho de 2004), no primeiro lustro da sua morte, uma homenagem à vida:

Parabéns, ó imortal!
A tua poesia é puro cristal.

Entraste no cortejo de Homero,
A melhor companhia
De toda a Poesia.
E as vossas vozes
Atravessam os tempos
E ecoam
Em polifónica harmonia

(seniora)

Maria de Lourdes Pintassilgo

- Estamos em Julho. Quem celebramos?
- Estou a folhear o Jornal de Letras. Vejo aqui «Ciclo sobre Pintassilgo»...
- Adoro pássaros. E esse é o nome mais sonoro da passarada. Mas não sabia que também te interessavas?
- Até me interesso... assim... de um modo geral. Mas agora não me refiro a pássaros, mas a Maria de Lourdes Pintassilgo.
- Gosto do nome. Começa com a leveza de Maria, entra na profundeza grave de Lourdes, e canta e voa em Pintassilgo. Mas de quem estamos a falar?
- De uma cidadã portuguesa, engenheira e política, com esse nome, nascida em Janeiro de 1930 e falecida em 10 de Julho de 2004.
- Ah! Entendo. Estás a responder à minha primeira pergunta. Estava perdido. Bem... e o que celebramos concretamente?
- A sua cidadania e o modo como a exerceu.
- Preciso de saber mais.
- Vê só: foi a primeira mulher (e única até ao momento) a desempenhar o cargo de primeiro ministro em Portugal e a segunda da Europa.
- Uma pioneira nacional. E isso aconteceu, quando?
- No V Governo Constitucional, que tomou posse a 7 de Julho de 1979 e terminou a 3 de Janeiro de 1980.
- De muito curta duração...
- Em tempos de crise... imagina que a sua governação termina com a dissolução da Assembleia da República... As crises sucessivas da governação nacional, se exceptuarmos a curta época das vacas gordas...
- Mas não era sobre isso que estávamos a falar.
- Pois, para saberes mais sobre Pintassilgo, podes consultar o seu portal Fundação Cuidar O Futuro , nele poderás obter as informações necessárias.
- E no Jornal de Letras?
- Ah, sim, já me esquecia. Anuncia um ciclo de conferências de homenagem (de 25 de Junho a 10 de Julho), intitulado A Dimensão do Cuidar na Re-significação do Espaço Público, integrado no projecto Mulheres, Ética e Espaço Público.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Cara de manga apodrecida

O espelho social
É dia 23 de Junho. Há muito a preparar para o alegre arraial de S. João, a festa de Verão, onde se juntam as três gerações. No dia anterior, Leonor, avó sexagenária, tinha ido ao cabeleireiro, para, no meio de tantas ocupações, não ter de pensar em cabelo. Prepara-se cuidadosamente para sair e fazer as compras da última hora.
Dirige-se a uma loja da fruta, que lhe fora indicada como a melhor nas redondezas. Vai escolhendo, quando encontra três mangas: caras, engelhadas, manchadas, quase podres. Pega na melhor das três e, dirigindo-se à vendedora, pergunta se não teria mangas melhores.
A isso, a vendedora, mulherão dos seus quarenta e pico, responde-lhe:
- Olhe, mangas, não trouxe, porque, sabe, elas estavam com uma cara... (e fez um trejeito de desagrado, enquanto olhava para a cara da compradora)... assim... como as nossas.
Leonor levanta os olhos da manga, mira-a atentamente pela primeira vez e responde:
- A sua está bem boa...
Ao que a vendedora nada acrescenta. E a compradora junta aquela manga à sua série de vegetais seleccionados.
Sai, vai tomar um café, dirige-se ao primeiro espelho e comenta com um sorriso irónico:
- De facto, espelho meu, cara de manga em começo de putrefacção absoluta... mas viva! E aos seres vivos o melhor que lhes pode acontecer é envelhecerem saudavelmente.

sábado, 20 de junho de 2009

Rubaiyat no feminino

- Quando se fala em rubai, está a falar-se de poesia masculina?
- Sim, penso que sim. Não conheço Rubaiyat feminino.
- Mas uma voz feminina ficaria bem no coro polifónico.
- Desde que não destoasse...
- Em poesia, fica difícil saber, na hora, quem destoa.
- Tentemos a construção: «Bebamos licor dos deuses dourado,/ Servido d'alto por belo criado,/ Enquanto a conversa fútil flui,/ Com o mar ao fundo e céu nublado.»

Omar Khayyan, autor de RUBAIYAT


- Quem é Omar Khayyan?
- Um sábio persa, nascido no século XI(1044?), famoso na sua época, no domínio da matemática, da astronomia, da filosofia. Também foi poeta.
- Que se sabe dele, como homem de ciência?
- No que respeita à álgebra, classificou as equações algébricas; no que respeita á geometria, desenvolveu a teoria das linhas paralelas. Quanto à astronomia, construiu um calendário solar muito rigoroso.
- E na literatura?
- Passa a ser conhecido, no ocidente, quando, no século XIX, Edward Fitzgerald traduz Rubaiyat para inglês.
- Foi essa obra que Pessoa conheceu, estudou, tentou traduzir...
- E que o inspirou para criar o seu Rubaiyat. O tal diálogo intertextual que atravessa os séculos, como uma voz polifónica.
- Giro! Ergue-se uma voz e a ela juntam-se outras, através dos séculos...
- Penso que Pessoa era muito sensível a esse processo de trabalho poético. E vai deixando pistas na sua obra, para que encontremos essa polifonia.
- Já agora, cite-se um rubai que tenha sido feito por Khayyan, traduzido para o inglês por Fitzgerald e , para o português, por Pessoa.
- Escolho este:
«Já muita vez jurei de me emendar, / Mas não staria eu bebado a jurar?/ Mas vinha a primavera, vinham rosas,/ E emenda e jura se esvahiam no ar.»

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Rubaiyat

- Que título estranho o desse livro de Fernando Pessoa!
- De facto, Rubaiyat é um nome árabe. Há quem traduza por "canções de beber". A edição crítica optou pelo título árabe da obra do persa inspirador e autor do século XI-XII: Omar Khayyan.
- Como terá chegado até Pessoa?
- Certamente, através da tradução de Edward Fitzgerald, Rubaiyat of Omar Khayyam.
- Existe essa obra na biblioteca de Pessoa?
- Sim, e toda preenchida, nos espaços em branco, por ele. Tudo isso está a ser digitalizado, para que possamos aceder aos seus livros, sem sair de casa.
- Que escreveu ele no livro?
- Ele traduziu do inglês alguns rubai (quadra decassilábica, com o esquema rimático aaba) ou parte deles e criou outros. Tudo isso aparece nesta edição que estou a ler.
- Afinal que significa Rubaiyat?
- Um conjunto de rubai, acerca do vinho, como sedativo e ilusão perante a ilusão/desilusão do mundo e da vida, de um sábio marginal e solitário.
- Um encontro de sábios, através dos tempos, bebendo um copo, enquanto dialogam.
- A intertextualidade permite que isso aconteça, num diálogo infinito através de obras. E Pessoa cultiva-a, em diálogo de textos.

domingo, 14 de junho de 2009

A Fernando Pessoa, no dia do seu 121º Aniversário


tu ó mago adivinhaste
a palavra do presente e do futuro
search foi o apelido
naquela busca
sem parar
sabes
no computador
usamos esse termo
para buscar
mas o apelido search é teu
ó criador do mundo a vir
ouço a tua máquina de escrever
no teclado do meu pc
e no écran logo se vê
o texto a imagem
sempre a surgir
em search escrevo o teu nome
e o milagre acontece
nem vais acreditar
vê só o que aparece
[Resultados 1 - 10 de cerca de 1.180.000
Francês e Inglês e Português
paginas de Fernando Pessoa. (0,34 segundos)]

conseguiste Fernando
nascer e renascer
meus parabéns
com provas e dados

a imortalidade aqui a tens
espalhas-te por todos nós
e todos os dias renasces
aquilo que quiseste
tu conseguiste

a nova renascença
és tu e a língua portuguesa

os nossos olhos espraiam-se
em textos à nossa mesa
devorados como iguarias
de difíceis melodias
que nos prendem
em melopeia entranhada
e dela nascem
mesmo sem querer
outros saberes
outros sabores
das sensações
em novas construções

agradecemos o teu trabalho
valeu a pena
a tua alma
é do tamanho do mundo
daquele que não tem tecto
e não tem fundo

zedomingues

Ontem, dia do 121º aniversário de Fernando Pessoa

- O texto de ontem, para o aniversariante?
- Enviei-o por mail a três pessoanos. É sobre Pessoa e o seu Alexander Search. O apelido Search, escolhido pelo jovem Pessoa, parece surgir como o lema de uma vida que se inscreve em busca permanente de caminho literário . Se entendermos busca como pesquisa, verifica-se que Pessoa desde muito cedo se inscreve na filosofia grega, mãe da ocidental, tendo em conta que, ao contrário da sabedoria oriental «essencialmente religiosa» fundamentada na tradição, a filosofia grega «é pesquisa» e «nasce de um acto fundamental de liberdade frente à tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal».
- Esse «busca» em inglês faz muito sentido no universo dos computadores, em que sempre se search/busca.
- O texto que eu fiz cruza essas ideias.
- Então, publique-se o texto.
- Vou pensar nisso.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Aniversário de Fernando Pessoa

- Amanhã, 13 de Junho de 2009 é o dia do 121º aniversário de Fernando Pessoa.
- Nasceu no dia de Santo António!
- Por isso, ele se chama Fernando António. O nome laico do Santo era Fernando e o nome monástico era António.
- Interessante!
- E a família de Fernando Pessoa considerava-se aparentada com Fernando de Bulhões, isto é, Santo António.
- Coincidência interessante a da data desse nascimento...
- Pois é. E Pessoa dava muita importância aos detalhes da data do nascimento. Sobretudo ao ano do seu nascimento: 1888 mexia com a sua parte esotérica.
- Isso tem a ver com as profecias de Bandarra?
- De facto, O Terceiro Livro das Trovas desperta grande interesse a Pessoa, pois aí é anunciado o regresso de D. Sebastião, entre 1788 e 1888.
- Será que lhe passou pela cabeça encarnar D. Sebastião, na data limite da profecia?!
- Penso que, na realidade, isso não passaria pela cabeça de um racionalista prosaico; contudo, é possível ser assumido, ainda que ironicamente, por um poeta.
- Pois, um poeta é um criador.
- Pode, desse modo, construir novos mundos.
- Fernando Pessoa alguma vez exprimiu claramente essa ideia?
- Sim, no poema "Autopsicografia", onde diz que o poeta é um fingidor, pois chega a "fingir que é dor a dor que deveras sente".

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Camões e super-Camões


- Hoje, 10 de Junho, é dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Mas começou por ser um feriado em honra de Camões, na data provável da sua morte, desde 1911 ...
- Então, foi a República que criou este feriado.
- Camões é o poeta que une todos os portugueses.
- Mas eu já ouvi falar no super-Camões?
- O super-Camões é português e cosmopolita. A sua obra une os portugueses aos outros europeus e continua em expansão pelo mundo.
- Então só pode ser Fernando Pessoa.
- Claro. Ele e toda a plêiade por ele criada.
- O divino Pessoa capaz de conceber espiritualmente outras pessoas-escritoras!
- E ser ele e ser todos...

terça-feira, 2 de junho de 2009

o sujeito: quem (tem a faca eo queijo na mão).

- Coloquemos antes a questão no sujeito.
- Mas que sujeito? Não sei de quem fala.
- Continuo a falar da expressão "ter a faca e o queijo na mão", de que nos ocupámos no último diálogo.
- Ah! Pensei que o assunto já era outro...
- Fiquei a remoer. Essa expressão é usada para significar que o sujeito que tem a faca e o queijo na mão faz aquilo que quer do queijo e com uma faca. O sujeito/agente, neste caso, é aquele que age sobre outro com uma ameaça, sempre pronta a acontecer.
- E onde é que isso nos leva?
- Pensa nas profissões e vai verificando.
- Vejamos, então, por exemplo, o médico. Em certas situações, eu diria que ele tem, de facto, a faca e o queijo na mão...
- É um bom exemplo. Continua.
- Eu sou aluno, frequento uma escola. E ouço o meu pai dizer muitas vezes para ter cuidado com os professores, porque eles têm a faca e o queijo na mão. Quando ele diz isso, eu olho para ele sem entender a que propósito fala daquilo. Depois, vejo-o a encolher os ombros e ouço-o explicar que, em sua opinião, os professores, se me tomarem de ponta, podem fazer comigo o que lhes der na veneta.
- E como te sentes ao tomar consciência disso?
- Na altura fico assustado, depois passa; mas, em certas situações escolares, lembro-me das palavras de meu pai. Penso, então, que é a minha vida de estudante que está nas mãos dos professores, porque me podem passar ou reprovar. E nunca me sinto muito seguro quanto a isso.
- É com "a faca e o queijo na mão" que os ditadores aguentam o poder durante muito tempo. E que muitos seres humanos controlam e subjugam os outros, que, amedrontados, se conformam com o sistema.

domingo, 31 de maio de 2009

Manif dos profs


Diálogo 1.
- Os bons professores manifestaram-se ontem em Lisboa, por um ensino de qualidade.
-Ah! Eu pensava que tinha sido antes contra a avaliação legislada.
-Não, não, eles estão todos de acordo acerca da avaliação dos alunos. Os professores são os avaliadores.
- Eu falava da avaliação dos professores.
- Disso nem se pode falar. Professores são avaliadores. Por isso, não podem ser avaliados.
- Não sei se estou de acordo. Em democracia, ninguém deveria ter a faca e o queijo na mão. Regride o queijo e a faca permanece inalterável.
- De facto, nessa metáfora, ninguém progride.

Diálogos socráticos

A modalidade dos diálogos ou dramas filosóficos descende dos Sofistas e de Sócrates. Mas foi Platão que a elevou a género literário, como muito bem informa Maria Helena da Rocha Pereira, Professora da UC, a quem presto homenagem.
O que acabou de ser dito é apenas uma informação do" aprenderatemorrer", uma vez que os diálogos que se seguem acerca de faits divers não possuem essa qualidade.