Poemas de Sophia seleccionados por Margarida Vilarinho:
ÍTACA
ÍTACA
Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os panos pretos da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
Sophia do Mello Breyner Andresen "Geografia"
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os panos pretos da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
Sophia do Mello Breyner Andresen "Geografia"
Em Hydra, evocando Fernando Pessoa
Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra
(E foi pelo som do cabo a descer que eu soube que
ancorava)
Saí da cabine e debrucei-me ávida
Sobre o rosto do real ― mais preciso e mais novo do que
o imaginado
Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto
Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto de uma
ilha grega
Murmurei o teu nome
O teu ambíguo nome
Invoquei a tua sombra transparente e solene
Como esguia mastreação do veleiro
E acreditei firmemente que tu vias a manhã
Porque a tua alma foi visual até aos ossos
Impessoal até aos ossos
Segundo a lei de máscara do teu nome
Odysseus ―
Persona
Pois de
ilha em ilha todo te percorreste
Desde a
praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa
Até às
rochas onde reina o mar estridente das sereias
O casario
de Hydra vê-se nas águas
A tua
ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barco
E vem
comigo pelas ruas onde procuro alguém
Imgino que
viajasses neste barco
Alheio ao
rumor secundário dos turistas
Atento à
rápida alegria dos golfinhos
Por entre
o desdobrado azul dos arquipélagos
Estendido
à popa sob o voo incrível
Das
gaivotas de que o sol espalha impetuosas pétalas
Nas ruínas
de Epheso na avenida que desce até onde esteve o mar
Ele estava
à esquerda entre colunas imperiais quebradas
Disse-me
que tinha conhecido todos os deuses
E que
tinha corrido as sete partidas
O seu
rosto era belo e gasto como o rosto de uma estátua roída pelo mar
Odysseus
Mesmo que
me prometas a imortalidade voltarei para casa
Onde estão
as coisas que plantei fiz crescer
Onde estão
as paredes que pintei de branco
Há na
manhã de Hydra uma claridade que é tua
Há nas
coisas de Hydra uma concisão visual que é tua
Há nas
coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é olhado por um deus
Aquilo que
o olhar de um deus tornou impetuosamente presente ―
Na manhã
de Hydra
No café da
praça em frente ao cais vi sobre as mesas
Uma
disponibilidade transparente e nua
Que te
pertence
O teu
destino deveria ter passado neste porto
Onde tudo
se torna impessoal e livre
Onde tudo
é divino como convém ao real
Hydra,
Junho de 1970
Há
um intenso orgulho
Açores
Há
um intenso orgulho
Na
palavra Açor
E
em redor das ilhas
O
mar é maior
Como
num convés
Respiro
amplidão
No
ar brilha a luz
Da
navegação
Mas
este convés
É
de terra escura
É
de lés a lés
Prado
agricultura
É
terra lavrada
Por
navegadores
E
os que no mar pescam
São
agricultores
Por
isso há nos homens
Aprumo
de proa
E
não sei que sonho
Em
cada pessoa
As
casas são brancas
Em
luz de pintor
Quem
pintou as barras
Afinou
a cor
Aqui
o antigo
Tem
o limpo do novo
É
o mar que traz
Do
largo o renovo
E
como num convés
De
intensa limpeza
Há
no ar um brilho
De
bruma e clareza
É convés lavrado
Em plena amplidão
É o mar que traz
As ilhas na mão
Buscámos no mundo
Mar e maravilhas
Deslumbradamente
Surgiram nove ilhas
E foi na Terceira
Com o mar à proa
Que nasceu a mãe
Do poeta Pessoa
Em cujo poema
Respiro amplidão
E me cerca a luz
Da navegação
Em cujo poema
Como num convés
A limpeza extrema
Luz de lés a lés
Poema onde está
A palavra pura
De um povo cindido
Por tanta aventura
Poema onde está
A palavra extrema
Que une e reconhece -
Pois só no poema
Um povo amanhece
Em plena amplidão
É o mar que traz
As ilhas na mão
Buscámos no mundo
Mar e maravilhas
Deslumbradamente
Surgiram nove ilhas
E foi na Terceira
Com o mar à proa
Que nasceu a mãe
Do poeta Pessoa
Em cujo poema
Respiro amplidão
E me cerca a luz
Da navegação
Em cujo poema
Como num convés
A limpeza extrema
Luz de lés a lés
Poema onde está
A palavra pura
De um povo cindido
Por tanta aventura
Poema onde está
A palavra extrema
Que une e reconhece -
Pois só no poema
Um povo amanhece
Sophia de Mello Breyner, in OS POEMAS SOBRE PESSOA