segunda-feira, 14 de julho de 2014

Sophia de Mello Breyner Andresen - POEMAS

Poemas de Sophia seleccionados por Margarida Vilarinho:

ÍTACA


Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os panos pretos da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento

O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto

Sophia do Mello Breyner Andresen "Geografia"



Em Hydra, evocando Fernando Pessoa

Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra
(E foi pelo som do cabo a descer que eu soube que ancorava)
Saí da cabine e debrucei-me ávida
Sobre o rosto do real ― mais preciso e mais novo do que o imaginado

Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto
Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto de uma ilha grega

Murmurei o teu nome
O teu ambíguo nome

Invoquei a tua sombra transparente e solene
Como esguia mastreação do veleiro
E acreditei firmemente que tu vias a manhã
Porque a tua alma foi visual até aos ossos
Impessoal até aos ossos
Segundo a lei de máscara do teu nome





Odysseus ― Persona

Pois de ilha em ilha todo te percorreste
Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa
Até às rochas onde reina o mar estridente das sereias

O casario de Hydra vê-se nas águas
A tua ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barco
E vem comigo pelas ruas onde procuro alguém

Imgino que viajasses neste barco
Alheio ao rumor secundário dos turistas
Atento à rápida alegria dos golfinhos
Por entre o desdobrado azul dos arquipélagos
Estendido à popa sob o voo incrível
Das gaivotas de que o sol espalha impetuosas pétalas

Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde esteve o mar
Ele estava à esquerda entre colunas imperiais quebradas
Disse-me que tinha conhecido todos os deuses
E que tinha corrido as sete partidas
O seu rosto era belo e gasto como o rosto de uma estátua roída pelo mar

Odysseus

Mesmo que me prometas a imortalidade voltarei para casa
Onde estão as coisas que plantei fiz crescer
Onde estão as paredes que pintei de branco

Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua
Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua
Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é olhado por um deus
Aquilo que o olhar de um deus tornou impetuosamente presente ―

Na manhã de Hydra
No café da praça em frente ao cais vi sobre as mesas
Uma disponibilidade transparente e nua
Que te pertence

O teu destino deveria ter passado neste porto
Onde tudo se torna impessoal e livre
Onde tudo é divino como convém ao real
            Hydra, Junho de 1970



Açores

Há um intenso orgulho 
Na palavra Açor 
E em redor das ilhas 
O mar é maior 

Como num convés 
Respiro amplidão 
No ar brilha a luz 
Da navegação 

Mas este convés 
É de terra escura 
É de lés a lés 
Prado agricultura 

É terra lavrada 
Por navegadores 
E os que no mar pescam 
São agricultores 

Por isso há nos homens 
Aprumo de proa 
E não sei que sonho 
Em cada pessoa 

As casas são brancas 
Em luz de pintor
Quem pintou as barras 
Afinou a cor 

Aqui o antigo 
Tem o limpo do novo 
É o mar que traz 
Do largo o renovo

E como num convés 
De intensa limpeza 
Há no ar um brilho 
De bruma e clareza 


É convés lavrado
Em plena amplidão
É o mar que traz
As ilhas na mão

Buscámos no mundo
Mar e maravilhas
Deslumbradamente
Surgiram nove ilhas

E foi na Terceira
Com o mar à proa
Que nasceu a mãe
Do poeta Pessoa

Em cujo poema
Respiro amplidão
E me cerca a luz
Da navegação

Em cujo poema
Como num convés
A limpeza extrema
Luz de lés a lés

Poema onde está
A palavra pura
De um povo cindido
Por tanta aventura

Poema onde está
A palavra extrema
Que une e reconhece -
Pois só no poema

Um povo amanhece 

Sophia de Mello Breyner, in OS POEMAS SOBRE PESSOA