Roteiro poético Paris-Lisboa nas cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa
A amizade dos dois poetas
permitiu uma influência literária mútua, traduzida sobretudo em Poesia.
Poetando ao desafio, entre Lisboa e Paris, circulavam as cartas com poemas e
pareceres críticos.
Embora apenas conheçamos as cartas
de Mário guardadas por Fernando, torna-se possível entreler as de Pessoa.
O conhecimento mútuo
ter-se-ia dado em 1912, ano da colaboração de Pessoa na revista Águia do
movimento portuense Renascença Portuguesa, como teorizador e crítico da
«nova poesia portuguesa».
A 13 de outubro de 1912,
Mário parte para Paris, cidade onde permanece por mais de oito meses. A
primeira mensagem a Pessoa – um postal ilustrado – tem a data de 16 de outubro,
para informar que chegara bem.
Neste trabalho recolhem-se das
cartas os poemas nelas referidos, seguindo a datação de acordo com a obra de
Manuela Parreira da Silva, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa.
I. O manibus date lilia
plenis… e Abismo – duas poesias de Fernando Pessoa
A primeira carta de
Sá-Carneiro com referência a poemas de Pessoa, data de 3 de fevereiro de 1913 (carta nº 18). Considero-a de grande importância pela análise que faz da poesia e pelos conselhos dados ao amigo, no sentido de terminar obra poética e de publicá-la. E sugere a revista A Águia, na qual Pessoa publicara artigos de crítica literária durante o ano de 1912.
«Em primeiro lugar quero-lhe falar das suas poesias.
Elas são admiráveis, já se sabe mas o que mais aprecio nelas é a sua qualidade.
[…] Os seus versos são cada vez mais seus. O meu amigo vai criando uma
nova linguagem, uma nova expressão poética e […] conseguiu uma notável força de
sugerir que é a beleza máxima das suas poesias sonhadas. [...] Entre os seus versos correm nuvens, e essas nuvens é que encerram a beleza máxima. Dos versos que me escreve na sua carta os que eu coloco mais alto por serem aqueles aonde mais frisantemente isso se observa, são os tercetos de «O manibus date lilia plenis…» e - sobretudo - as sextilhas do «Abismo». Esta poesia é quanto a mim uma coisa sublime. De tudo o que conheço seu talvez a que fico mais estimando. Toda ela uma orquestração de bruma - o poeta manuseia o mistério, interroga o além. E que coisa maravilhosa a 2ª estrofe. Como é bem descrito o estado de alma que interroga: «O que é ser-rio, e correr? O que é está-lo eu a ver?» E neste verso: «Tudo de repente é oco», passou uma asa de génio. Sabe bem que não estou a «elogiar», que estou a dizer sinceramente o que penso da sua obra. Peço que me acredite também nisto: Que eu compreendo os seus versos. [...] O soneto composto numa fuga ao raio é muito belo também. Gosto menos do «Dobre» e pouco do «Fio d' Água». «Uma Melodia» é outra coisa soberba. E eu compreendo muito bem o horror da sua tortura que nela descreve.
O que é preciso, meu querido Fernando, é reunir, concluir os seus versos e publicá-los não perdendo energias em longos artigos de crítica literária nem tão-pouco escrevendo fragmentos admiráveis de obras admiráveis mas nunca terminadas. É preciso que se conheça o poeta Fernando Pessoa - e não o crítico só - por lúcido e brilhante que ele seja. Atenda bem as minhas palavras. Eu reputo mesmo um perigo para o seu triunfo a sua demora em aparecer como poeta».
O que é preciso, meu querido Fernando, é reunir, concluir os seus versos e publicá-los não perdendo energias em longos artigos de crítica literária nem tão-pouco escrevendo fragmentos admiráveis de obras admiráveis mas nunca terminadas. É preciso que se conheça o poeta Fernando Pessoa - e não o crítico só - por lúcido e brilhante que ele seja. Atenda bem as minhas palavras. Eu reputo mesmo um perigo para o seu triunfo a sua demora em aparecer como poeta».
1. O poema Abismo[1] insere-se no conjunto de cinco
poemas intitulado Além-Deus: I Abismo, II Passou, III A Voz de Deus,
IV A Queda e V Braço sem Corpo brandindo um gládio. Pessoa teria enviado apenas o
primeiro poema, uma vez que só a ele se refere Sá-Carneiro.
ABISMO
Olho o Tejo, e de
tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente
pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser,
ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus…
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus…
E súbito encontro
Deus.
Este
poema é considerado dentro da corrente estética do paulismo, criada por
Pessoa a partir do poema Pauis, datado de 29 de março de 1913. Embora o
anteceda, tem de comum com o paulismo a temática do mistério dentro da
poesia cerebral de cariz filosófico, afastando-se da poesia do confessionalismo
da sinceridade e da intuição da corrente neorromântica nacional. Comunga ainda
com o poema Pauis o sentido do vago e do oco interior, espaço gerador do
desprendimento do real para tocar o irreal absoluto sintetizado, no caso do
poema Abismo, na palavra Deus, que, ao fazer-se verbo, se torna
simultaneamente real e irreal, dentro do transcendentalismo panteísta
definido e defendido por Pessoa, nos textos sobre a «nova poesia portuguesa»,
publicados em 1912, na revista A Águia. Esta poesia, tal como Pauis,
reflete a preocupação pessoana da construção poética dentro da «arte moderna»,
que, segundo ele, deve «buscar e exprimir ao mesmo tempo o universal e o
pessoal, o abstrato e o concreto»[2], uma
vez que é papel da literatura «reunir característicos opostos».
Acrescente-se ainda que os
textos sobre a «nova poesia portuguesa», bem como os poemas inseridos no paulismo,
dialogam com os textos de Teixeira de Pascoais, o vate do Saudosismo nacional,
na construção de uma alternativa poética credível e cosmopolita.
2. O outro poema enviado por
Pessoa e selecionado por Sá-Carneiro, com título latino, poderá ler-se dentro da poesia de sonho – poesia
estática, lembrando o teatro estático de O
Marinheiro – , mas também admite a interpretação do pedido de cartas («lírios»)
ao amigo sediado em Paris, valorizando as mãos, talvez por saber a importância que
Sá-Carneiro lhes dava.
No poema, o eu poético pede mãos cheias de lírios para
os seus sofrimentos, mãos de gesto estático que estendem flores ao eu sofredor –
uma escultura em baixo-relevo. Contudo, esses lírios são vãos, pois todas as
flores fenecem. O que não fenece é o olhar e a ideia circulantes entre as duas
figuras esculpidas.
«O manibus date lilia
plenis…»
Cheias de lírios
Tuas mãos estende
Para os meus martírios...
Tuas mãos estende
Para os meus martírios...
Estende e fica assim
Nem sonho de gesto
Há desde mim
Nem sonho de gesto
Há desde mim
Até tuas mãos,
Para receber
Os teus lírios vãos...
Para receber
Os teus lírios vãos...
Olhando, só olhando
Até a vida ir
Ficarei, amando
Até a vida ir
Ficarei, amando
Com o mero ver
Só a ideia, só —
Dos lírios receber...
Só a ideia, só —
Dos lírios receber...
Fica sem mudança
Assim — P’ra que gestos,
Se mesmo olhar já me cansa?
Assim — P’ra que gestos,
Se mesmo olhar já me cansa?
Como duas figuras
De um baixo-relevo,
Por só-arte puras,
De um baixo-relevo,
Por só-arte puras,
Assim ficaremos
Porque a nossa vida
Dorme sobre os remos...
Porque a nossa vida
Dorme sobre os remos...
Mãos sempre estendidas
Eu sempre só olhando
Duas hirtas vidas.
Eu sempre só olhando
Duas hirtas vidas.
Té que nos achemos
Vendo-nos de fora
Mero quadro... Sonhemos...
Vendo-nos de fora
Mero quadro... Sonhemos...
Sempre à margem de hoje...
Tão inutilmente
A vida nos foge!
Tão inutilmente
A vida nos foge!
Este poema tem como título a
transcrição de um verso célebre de Virgílio, repetido em sua homenagem por
Dante, com a seguinte tradução: «Dai lírios às mãos cheios», uma passagem de
Virgílio (Eneida, VI, 883), na qual o velho Anquises, numa visão profética, pede
flores para o túmulo do jovem Marcelo, sobrinho do Imperador Octávio. É a
formação clássica de Pessoa a funcionar no poema, a génese de Ricardo Reis, o
heterónimo neoclássico que assume o dialogismo da sua obra com a obra dos
poetas da antiguidade clássica, com confirmação na frase: «Deve haver, no mais
pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero»[3], neste
caso, Virgílio.
Sá-Carneiro não possui a
formação clássica que caracteriza Pessoa, talvez por isso não faça referência especial
ao poema. Essa diferença constatada por Pessoa talvez seja adjuvante da criação
do heterónimo Ricardo Reis, que afirma no mesmo fragmento:
«A
novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com a que
a precedeu. […] Saibamos distinguir o novo do estranho […] Entre os escritores
que descendem com novidade da velha estirpe e os que aparecem por novos por
pertencer a uma estirpe incógnita há a mesma diferença que há entre o homem que
nos dá uma sensação de novidade por frases novas que diz e o que nos dá uma
sensação de novidade, por falando mal nossa língua, nos dizer estropeadamente
qualquer frase dela».
É evidente que a referência engloba a poesia-novidade,
no caso particular, talvez a de alguns poemas de Sá-Carneiro, de Álvaro de
Campos e do próprio Pessoa, uma vez que alguns dos versos dos seus poemas mais ousados «estropiam»
a sintaxe da língua.
Voltando à poesia de sonho, diga-se que, à data, os
dois amigos se desafiavam a tentar atingir o mais além possível através da
palavra literária, penetrando o mundo do sonho. Dentro disso, Sá-Carneiro
escrevia o conto «Homem dos Sonhos» referido pela primeira vez na carta nº4, de
28 de outubro de 1912. Essa obra apresenta uma personagem que vive no mundo
real, mas dentro do sonho que quiser, por isso, sente-se feliz e plenamente
realizada.
Em1913, Fernando Pessoa identifica a arte moderna com a arte de sonho:
Em1913, Fernando Pessoa identifica a arte moderna com a arte de sonho:
«Quem quisesse resumir numa
palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia,
perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho. […] Na Idade
Média e na Renascença, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu
sonho em prática. Bastava que com intensidade o sonhasse. […] E os grandes homens
antigos eram homens de sonho.
[…] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior — para o sonho crescente, cada vez mais para mais sonho.
[…]O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho» (http://arquivopessoa.net/textos/1415).
[…] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior — para o sonho crescente, cada vez mais para mais sonho.
[…]O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho» (http://arquivopessoa.net/textos/1415).
(a continuar)
Maria José Domingues
[1] ALÉM-DEUS. I. Abismo – in Orpheu,
nº 3, p.36. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de
Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 1984.
[2] PESSOA,
Fernando (1999) – Correspondência 1905-1922, edição de Manuela Parreira
da Silva, Lisboa, Assírio e Alvim, p.224.
[3] PESSOA, Fernando – Obra
Poética e em Prosa, vol. II, Organização, introdução e notas de António
Quadros, Lello & Irmãos Editores, Porto, 1986, p. 1071.