A obra surpreende e toca pela
delicadeza da expressão poética assente na oralidade. Essa delicadeza poético-narrativo é ponto de partida para a leitura graças à epígrafe
do primeiro capítulo, extraída de «Ditos do avô Celestiano, reinventando um
provérbio macua»:
Deus é
assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se,
se não segurarmos bem cai.
Sentimos que Mia Couto pretende
segurar o ovo frágil para o passar cuidadosamente ao leitor.
O primeiro capítulo abre em diálogo
sorridente entre o narrador protagonista Zeca Perpétuo, que se define como
feliz e preguiçoso, uma vez que a infelicidade dá muito trabalho, e Dona
Luarmina que o espicaça para a vida. E é sobre a vida e o futuro que Zeca tem
tiradas de filósofo:
A vida,
Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô
Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus…
[…]
Sim, como
se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro
é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do atual
presente. E basta.
Dona Luarmina solicita memórias
exatas ao vizinho Zeca Perpétuo, que tenta recusar-lhas, pois elas encontram-se
espalhadas por todo o seu corpo:
Meu corpo
foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde
enterramos os nossos mortos.
Mas a
Luarmina só interessam as memórias de verdade de Zeca, enquanto a este apenas
interessa viver preguiçosamente no presente da sua reforma de pescador bem
avizinhado. Todavia, ele contará, a pedido insistente da vizinha, as suas
histórias do passado no presente dialogado com Luarmina. Entre
os dois, dá-se, em construção verbal delicada, a dança de palavras da poética do desejo de Zeca e da fuga
constante da vizinha, criando mais um incentivo de leitura até ao
desfecho surpreendente.
Maria José Domingues