Carta
a Ruben A. - Sophia de Mello Breyner Andresen
Em 11 de julho de 1964, Sophia disse: «A obra de arte parte
do real e é destino, salvação e vida. Sempre a poesia foi para mim uma
perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma
coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso»[1].
Qual é a coisa à volta da qual foi traçado o círculo no poema Carta a Ruben A.?
Em Carta a Ruben A. o círculo maior parece
fechar com a morte do primo, mas antes houve a vida com uma «infância antiga» e
conjunta. O círculo menor representa a «infância antiga», a coisa que pode ser
ofertada, «verso a verso», unindo os dois primos - a destinadora e o
destinatário. Contudo, o círculo que anda à volta da coisa não se fecha, visto
que, por um lado, a notícia da morte não é entendida bem pela destinadora, pois
aquele que morre fica na memória e é semente do próprio poema; por outro lado, a ofertada infância antiga «Guarda
em si a semente que renasce». E o poema é um renascimento poético de Ruben A. e
de Sophia, enquadrados num espaço – a Casa Andresen e o seu parque - e num
tempo – o paraíso / «infância antiga», com a semente a germinar em futuro
poético intrincado com a botânica. E, assim, o paraíso não ficou perdido, antes
semente de textos e de conhecimento a germinar na Quinta do Campo Alegre, Jardim Botânico do
Porto.
Carta a
Ruben A.
Que tenhas morrido é ainda uma notícia
Desencontrada e longínqua e não a entendo bem
Que tenhas morrido é ainda uma notícia
Desencontrada e longínqua e não a entendo bem
Quando —
pela última vez — bateste à porta da casa e te sentaste à mesa
Trazias
contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida
Mas sempre
trouxeste contigo o desconexo
De um viver que nos funda e nos renega
— Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar — como oferta — a infância antiga
De um viver que nos funda e nos renega
— Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar — como oferta — a infância antiga
A casa
enorme vermelha e desmedida
Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias
Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias
As tílias
eram como catedrais
Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais
Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais
Morangos e
muguet e cerejeiras
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas
Desgarrada
era a voz das primaveras
Buscarei como oferta a infância antiga
Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce
Buscarei como oferta a infância antiga
Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce
Junho de
1976
in O Nome
das Coisas, 2006, editorial Caminho.
10 de agosto
de 2019, postado por Maria José Domingues
[1] Citação
de Piero Ceccucci, «Trazer o real à luz – o olhar e o ouvido voltados para os
seres e as coisas na poética de Sophia», in revista Colóquio, n.º176,
p.16.