domingo, 11 de agosto de 2019

Carta a Ruben A. - Sophia de Mello Breyner Andresen


Carta a Ruben A. - Sophia de Mello Breyner Andresen
Em 11 de julho de 1964, Sophia disse: «A obra de arte parte do real e é destino, salvação e vida. Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso»[1].

Qual é a coisa à volta da qual foi traçado o círculo no poema Carta a Ruben A.?

Em Carta a Ruben A. o círculo maior parece fechar com a morte do primo, mas antes houve a vida com uma «infância antiga» e conjunta. O círculo menor representa a «infância antiga», a coisa que pode ser ofertada, «verso a verso», unindo os dois primos - a destinadora e o destinatário. Contudo, o círculo que anda à volta da coisa não se fecha, visto que, por um lado, a notícia da morte não é entendida bem pela destinadora, pois aquele que morre fica na memória e é semente do próprio poema; por outro lado, a ofertada infância antiga «Guarda em si a semente que renasce». E o poema é um renascimento poético de Ruben A. e de Sophia, enquadrados num espaço – a Casa Andresen e o seu parque - e num tempo – o paraíso / «infância antiga», com a semente a germinar em futuro poético intrincado com a botânica. E, assim, o paraíso não ficou perdido, antes semente de textos e de conhecimento a germinar na Quinta do Campo Alegre, Jardim Botânico do Porto.

Carta a Ruben A.

Que tenhas morrido é ainda uma notícia
Desencontrada e longínqua e não a entendo bem

Quando — pela última vez — bateste à porta da casa e te sentaste à mesa
Trazias contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida

Mas sempre trouxeste contigo o desconexo
De um viver que nos funda e nos renega
— Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar — como oferta — a infância antiga

A casa enorme vermelha e desmedida
Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias

As tílias eram como catedrais
Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais

Morangos e muguet e cerejeiras
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas


Desgarrada era a voz das primaveras

Buscarei como oferta a infância antiga
Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce

Junho de 1976

in O Nome das Coisas, 2006, editorial Caminho.

10 de agosto de 2019, postado por Maria José Domingues


[1] Citação de Piero Ceccucci, «Trazer o real à luz – o olhar e o ouvido voltados para os seres e as coisas na poética de Sophia», in revista Colóquio, n.º176, p.16.