Luís Sepúlveda conseguiu o
milagre verbal escrito de apresentar ao leitor uma personagem quase analfabeta
com um enorme prazer de ler «romances de amor».
Recordo uma senhora centenária com
o mesmo apetite por romances de amor ao longo da sua longa vida.
Voltando a O velho que lia
romances de amor de Sepúlveda, o leitor encontra aí as fases da descoberta
do saber ler (votação), da descoberta do livro (São Francisco), da descoberta
do tipo de obra para aquele leitor (Coração de Edmundo d’ Amicis, O Rosário
de Florence Barclay), do onde e do como saborear a leitura. Algo de muito
raro conseguiu contruir Sepúlveda – muito agradecida por isso.
Costumo dizer àqueles que ainda
não encontraram o tipo de leitura que lhes agrada: Prova, primeiro é preciso
provar até encontrar a leitura prazerosa.
Por muito que se tenha dito
acerca do prazer de ler, quem leva a palma é Luís Sepúlveda com o seu velho António José Bolívar Proaño, «um velho de corpo
seco que não parecia importar-se com o facto de carregar com a alcunha de
prócere» (p.14)[1].
Sabendo que «prócere» significa «homem
importante de uma nação», estudemos a semântica do nome do velho. José António
Bolívar (1783-1830) é Simão Bolívar, herói da descolonização e independência da
América Espanhola. Leónidas Proaño (1910-1988) é equatoriano e foi chamado «o
bispo dos índios».
Com os dados explicativos da
escolha do nome, o leitor pode entender a intencionalidade do autor: conferir certamente
ao protagonista a heroicidade pioneira de um branco defensor dos índios e da
natureza, considerados livres. Essa liberdade natural teria de ser preservada da
subjugação ambiciosa do colonialismo, a bem do planeta e do universo.
António José Bolívar Proaño fora
casado com Dolores Encarnatión Otavalo, uma índia do grupo indígena Otavalo. Com
Dolores conhecera o amor, o desgosto da infertilidade pelo olhar exterior e preconceituoso,
e a perda. Com isso, talvez se queira explicar o seu gosto pelos romances de
amor, definido assim pelo padre que lhe dera o contacto direto com um livro - a
biografia de S. Francisco:
«- Bem, [os romances de amor] contam
a história de duas pessoas que se conhecem, se amam e lutam por vencer as
dificuldades que as impedem de ser felizes» (p.50).
A leitura feita pelo velho,
descrita no início do capítulo terceiro, vale mais do que qualquer tratado.
Sentimo-lo a degustar cada sílaba, cada palavra, cada frase, enquanto se vai
apoderando do significado até à apreensão do sentido do texto, que vai
relacionando paulatinamente com os seus saberes de experiência feitos. Contudo,
o autor não deixa de referir aquilo que não pertence a essa experiência, como é
o caso de Veneza. Esse assunto desemboca em conversa interessante, depois de
uma leitura em voz alta feita pelo velho ao grupo dos caçadores da onça
(pp.90-92), interrompida pela própria onça, que irá ser abatida corajosamente por
António José Bolívar Proaño.
4 de junho 2019
Maria José Domingues
[1] As
páginas indicadas pertencem a O Velho que lia Romances de Amor – Luís Sepúlveda,
Edições ASA, 1ªedição, 1993.