sábado, 21 de maio de 2016

Jaime Cortesão e Fernando Pessoa



Estes dois vultos nacionais colaboraram, na revista A Águia do movimento Renascença  Portuguesa, unidos pelo ideal de fazer renascer Portugal e a cultura portuguesa na jovem República.
Destaco o número 9 da revista, Setembro 1912, pelo facto de nela coexistirem dois artigos dos dois escritores.
O texto de Jaime Cortesão abre a revista e tem por título «A Renascença Portuguesa e o ensino da História Pátria». A tónica é colocada na busca da «alma pátria», inspirada pelo «Espírito Lusitano», para a fazer renascer dentro dos princípios do «patriotismo humanitário», «capaz de contribuir para a civilização da Humanidade». Defende que essa «alma pátria» deve ser objeto de ensino na escola, de modo a incorporar a educação de todos. Destaca os heróis e o Povo  no papel que lhes cabe na História. O artigo termina com a seguinte frase:

«A Árvore da Raça para que dê novos e belos frutos escusa de vergar os ramos até ao chão; mas tem de embrenhar bem as raízes na Terra Mãe, banhar-se na seiva original e então os ramos subirão a perder de vista e as naus da aventura, instrumentos do nosso destino, hão de ir no Céu à Descoberta das certezas divinas».

Este tom poético e exaltante, eivado da «Alma da Raça», sede da Saudade – a sua característica essencial e suprema –, é próprio dos homens da Renascença Portuguesa, de entre os quais sobressai Teixeira de Pascoaes, o paladino do Saudosismo, um dos movimentos neo-românticos da época.
É nesse mesmo tom que escreve Fernando Pessoa como crítico literário nos seus artigos sobre a «nova poesia portuguesa», geradores de uma polémica cultural conscientemente provocada que agitou o meio literário português. Publicou o último dos artigos no referido número de Setembro. O parágrafo terminal vem à colação pelo paralelismo de tom com o de Cortesão:

«E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente».

O tema é diferente. Cortesão fala do ensino da «História Pátria» e Pessoa da «nova poesia portuguesa». Contudo os conceitos veiculados pelos vocábulos «Raça» e «naus» são similares e evocativos da História de Portugal divinizada por Cortesão e projetada por Pessoa com o objetivo de continuar a Expansão através da poesia.
De facto, no parágrafo transcrito, Pessoa formaliza o seu projeto poético, na continuação do projeto dos Descobrimentos portugueses, para o ultrapassar em naus-poemas numa busca contínua de caminhos poéticos ainda não trilhados. Para formalizar em termos cosmopolitas tal projeto, recorre a Shakespeare com a citação de um segmento de frase de uma das falas de Próspero em A Tempestade - "We are such stuff as dreams are made on ".
É precisamente a frontalidade crítica e lógica de Fernando Pessoa perante os Descobrimentos portugueses e o seu cantor que levanta o escândalo entre os intelectuais portugueses. Ele defende que uma nova Renascença Portuguesa se impõe no contexto político da jovem República, mas para isso seria preciso ultrapassar aquilo que paralisava Portugal, por ser um olhar saudoso cristalizado sobretudo na gesta dos Descobrimentos e na poesia épica de Camões, o seu poeta. Para ultrapassar isso, cria a figura polémica do Super-Camões – o poeta profetizado para construir a Nova Renascença Portuguesa.
Em 1913, Pessoa continua a desenvolver o tema da «busca de uma Índia nova, que não existe no espaço». Explica ele:
«Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho. […] Na Idade Média e na Renascença, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prática. Bastava que com intensidade o sonhasse. […] E os grandes homens antigos eram homens de sonho.
[…] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior — para o sonho crescente, cada vez mais para mais sonho. […]
 O poeta de sonho é um melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na curva [?] de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho […]. O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas.
O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho). […]
O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho» (http://arquivopessoa.net/textos/1415).

Cada um destes dois grandes vultos nacionais construiu obra escrita coerente no sentido projetado nos textos referidos. Acrescente-se que Jaime Cortesão construiu para além da obra escrita uma ação política e pedagógica notável e exemplar nos caminhos da democracia.

21 de maio de 2016
Maria José Domingues