Estes dois vultos nacionais colaboraram, na revista A
Águia do movimento Renascença
Portuguesa, unidos pelo ideal de fazer renascer Portugal e a cultura portuguesa
na jovem República.
Destaco o número 9 da revista, Setembro 1912, pelo facto de
nela coexistirem dois artigos dos dois escritores.
O texto de Jaime Cortesão abre a revista e tem por título
«A Renascença Portuguesa e o ensino da História Pátria». A tónica é colocada na
busca da «alma pátria», inspirada pelo «Espírito Lusitano», para a fazer renascer
dentro dos princípios do «patriotismo humanitário», «capaz de contribuir para a
civilização da Humanidade». Defende que essa «alma pátria» deve ser objeto de
ensino na escola, de modo a incorporar a educação de todos. Destaca os heróis e
o Povo no papel que lhes cabe na
História. O artigo termina com a seguinte frase:
«A Árvore da Raça para que dê novos e belos
frutos escusa de vergar os ramos até ao chão; mas tem de embrenhar bem as
raízes na Terra Mãe, banhar-se na seiva original e então os ramos subirão a
perder de vista e as naus da aventura, instrumentos do nosso destino, hão de ir
no Céu à Descoberta das certezas divinas».
Este tom poético e exaltante, eivado da «Alma da Raça»,
sede da Saudade – a sua característica essencial e suprema –, é próprio dos
homens da Renascença Portuguesa, de entre os quais sobressai Teixeira de
Pascoaes, o paladino do Saudosismo, um dos movimentos neo-românticos da época.
É nesse mesmo tom que escreve Fernando Pessoa como crítico
literário nos seus artigos sobre a «nova poesia portuguesa», geradores de uma
polémica cultural conscientemente provocada que agitou o meio literário português. Publicou o último dos
artigos no referido número de Setembro. O parágrafo terminal vem à colação pelo
paralelismo de tom com o de Cortesão:
«E a nossa grande Raça partirá em busca
de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo
de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a
obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á
divinamente».
O tema é diferente. Cortesão fala do ensino da «História
Pátria» e Pessoa da «nova poesia portuguesa». Contudo os conceitos veiculados
pelos vocábulos «Raça» e «naus» são similares e evocativos da História de Portugal
divinizada por Cortesão e projetada por Pessoa com o objetivo de continuar a Expansão
através da poesia.
De facto, no parágrafo transcrito, Pessoa formaliza o seu
projeto poético, na continuação do projeto dos Descobrimentos portugueses, para
o ultrapassar em naus-poemas numa busca contínua de caminhos poéticos ainda não
trilhados. Para formalizar em termos cosmopolitas tal projeto, recorre a
Shakespeare com a citação de um segmento de frase de uma das falas de Próspero
em A Tempestade - "We are such stuff as dreams are made on ".
É precisamente a frontalidade crítica e lógica de Fernando
Pessoa perante os Descobrimentos portugueses e o seu cantor que levanta o
escândalo entre os intelectuais portugueses. Ele defende que uma nova
Renascença Portuguesa se impõe no contexto político da jovem República, mas
para isso seria preciso ultrapassar aquilo que paralisava Portugal, por ser um
olhar saudoso cristalizado sobretudo na gesta dos Descobrimentos e na poesia épica de Camões, o
seu poeta. Para ultrapassar isso, cria a figura polémica do Super-Camões – o poeta
profetizado para construir a Nova Renascença Portuguesa.
Em
1913, Pessoa continua a desenvolver o tema da «busca de uma Índia nova, que
não existe no espaço». Explica ele:
«Quem quisesse resumir numa
palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia,
perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho. […] Na Idade
Média e na Renascença, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu
sonho em prática. Bastava que com intensidade o sonhasse. […] E os grandes
homens antigos eram homens de sonho.
[…] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior — para o sonho crescente, cada vez mais para mais sonho. […]
O poeta de sonho é um melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na curva [?] de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho […]. O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas.
O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho). […]
[…] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior — para o sonho crescente, cada vez mais para mais sonho. […]
O poeta de sonho é um melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na curva [?] de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho […]. O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas.
O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho). […]
O maior poeta da época moderna será o que tiver mais
capacidade de sonho» (http://arquivopessoa.net/textos/1415).
Cada um destes dois grandes vultos nacionais construiu obra
escrita coerente no sentido projetado nos textos referidos. Acrescente-se que Jaime
Cortesão construiu para além da obra escrita uma ação política e pedagógica
notável e exemplar nos caminhos da democracia.
21 de maio de 2016
Maria José Domingues