À descoberta de
outros mundos
Garcia de Resende " Outro mundo encuberto / vimos então descobrir"
Garcia de Resende " Outro mundo encuberto / vimos então descobrir"
No semanário Expresso
de 24 de Janeiro de 2004, o título “Sonda europeia reforça hipótese de vida em
Marte” responde à nossa busca de notícias sobre o assunto mais empolgante das
descobertas da nova era. No seu último parágrafo, informa que a Mars Express é a primeira missão da ESA
no Planeta Vermelho e tem como um dos seus objectivos fazer um mapeamento e
fotografar a superfície marciana em busca de sinais de vida. A nossa
expectativa prende-se com o acontecimento na sua globalidade e com a busca dos
sinais de vida em especial.
Paramos
para pensar.
A
expansão no espaço conduz-nos por um fio cultural à expansão dos mares, numa
viagem no tempo.
Situemo-nos no
século XVI, após as grandes descobertas de novos mundos, para conhecer o
testemunho de um homem, que, pela sua longevidade e condição, viveu na corte
dos três reis das descobertas: D. João II, D. Manuel I e D. João III.
Referimo-nos a Garcia de Resende (1470? -1536), organizador de O Cancioneiro Geral, autor da Crónica de D. João II e da Miscelânea.
Encontramo-lo
terminando a escrita da Miscelânea,
em 1533. A sua figura obesa e jovial irradiava tranquilidade. O seu testemunho
ganhara forma e tornara-se letra, quem sabe, imorredoura. Até onde chegaria a
sua mensagem no tempo? Não era ele, autor, que estava em causa, embora a fama
agrade ao homem, mas os feitos gloriosos dos portugueses. Reflectia e avaliava,
enquanto folheava o manuscrito: tinha conseguido transmitir o seu testemunho e
em simultâneo fazer a análise crítica do seu tempo. E que tempo aquele! Tinham
conseguido desvendar um outro mundo, para além de alcançarem um império!
Contudo, sentia o desconcerto do mundo,
que lhe parecia ter transmitido logo a partir do Prólogo. Lembrara-se do outro, o do Cancioneiro Geral, dedicado ao rei D. Manuel, em que afirmara ser
condição natural dos portugueses desleixarem a escrita dos seus feitos. Conseguira
finalmente sair dessa condição natural, apesar dos glosadores, e abrir caminho a outros que queiram dizer melhor, como
escreveu na “Conclusam” da Miscelânea:
“Ho caminho fica aberto a quem mais quiser
dizer: tudo o que escrevi é certo.”
Teria conseguido atingir a veracidade histórica sobre os feitos da sua época? Parou nas estrofes em que refere D. Manuel e as transformações operadas no seu reinado. Aproximamo-nos e, por cima do seu ombro, vamos lendo e reflectindo, com um distanciamento de quase cinco séculos.
“Vimoslhe fazer Belém / cõ ha gram torre no
mar,/has casas do almazém / com armaria sem par / fez soo el Rey que Deus tem; / vimos
seu edificar: / no Reyno fazer alçar / paços, igrejas, mosteiros, / grandes, pouos,
caualeiros, / vi o reyno renouar/”
Lemos o seu
testemunho da renovação do reino, feita exclusivamente naquele reinado, num
realismo visual traduzido por formas verbais do verbo ver, no pretérito
perfeito do indicativo, na primeira pessoa – vimos (3 vezes) e vi (uma
vez).
Que viu então?
Estamos
perante o enunciado das consequências da descoberta de um outro vasto e largo
mundo
E, tal como uma
nau que regressasse de viagem, vê a primeira novidade: a Torre de Belém,
mandada construir por D. Manuel I, cerca de 1514, possivelmente devido ao plano
de D. João II de mandar fortificar a barra do Tejo. Esse monumento de estilo
manuelino, construído dentro da água, teve como supostos desenhadores um de
três nomes muito conceituados: Francisco de Arruda, Boytac ou o do próprio
Garcia de Resende, homem de muitos e variados saberes – desenhador, compositor,
músico e escritor. Seria mais uma razão para ter começado a enumeração por ela?
Um sorriso de satisfação bailou-lhe nos olhos vivos.
Depois da
passagem da Torre, a nau atracaria no porto, para descarregar nos armazéns, indispensáveis
numa época de viagens expansionistas, em que a fé e o império se conjugavam na
busca de riqueza, que se armazenava para se comerciar em seguida: as
especiarias, o ouro, a prata, as peles, o marfim, o açúcar, as sedas, os
escravos, os animais exóticos e tudo o que os olhos europeus podiam cobiçar.
Se nos
primeiros tempos da expansão, o tráfico foi quase livre, a competição
desenfreada levou a Coroa a intervir e, em 1504, foi imposto o controlo do Estado
sobre todo o comércio com o Oriente. Os direitos de alfândega subiram de 5 para
30%. Em 1506, o rei criou um monopólio oficial sobre as importações, vendas e
exportações de certos produtos e só a Coroa poderia armar e mandar navios para
o Oceano Índico. Esse mercantilismo foi devidamente organizado, já que o
reinado de D. Manuel I foi caracterizado por uma excelente administração, com
um pequeno grupo de ministros experientes e devotados à governação. A Casa da
Índia era o centro de todo o comércio e administração do Ultramar e foi
devidamente remodelada. Vivia-se, desde 1489 até 1539, um período de grande
estabilidade monetária, devido ao afluxo combinado do ouro e da prata. Foi no
reinado de D. Manuel que se cunharam os portugueses
de ouro e, mais tarde, os portugueses
ou escudos de prata.
O papel da
moeda aliada aos metais preciosos é o cerne do movimento mercantilista
nascente. O mercantilismo, definido, em geral, como a teoria do enriquecimento
das nações pela acumulação dos metais preciosos, nasceu nos finais do século XV
com a chegada à Europa dos metais preciosos. Qual foi o país que os trouxe pela
primeira vez em grande quantidade? Foi Portugal - país de marinheiros, mas
também de comerciantes, cuja marca profunda perdurou até aos nossos dias. Ainda
no Século XX, o acumular de metais preciosos era o trunfo da governação de
Salazar, que armazenava o ouro no Banco de Portugal, enquanto Portugal se
subdesenvolvia
Continuemos a
viagem com Garcia de Resende. Saídos do porto, iniciamos a visão do reino
renovado. Com a economia estabilizada e o país organizado, foi possível
construir belos monumentos – vimos seu
edificar / no Reino fazer alçar / paços, igrejas, mosteiros -, muitos deles
de estilo manuelino, definido pela História
de Portugal dirigida por José Mattoso, no capítulo intitulado «A conjuntura artística e as mudanças de
gosto», da autoria de Paulo Pereira – «particularização portuguesa do gótico tardio europeu, através da
adopção de sistemas decorativos mais complexos: colunas torsas, cordas, volumes
gordos, pináculos cónicos, contrafortes subcirculares; experiências de espaço,
tendendo para a isotropia; sobrecarga ornamental e um peso de um registo
heráldico, conceptualmente muito desenvolvido». Os monumentos de estilo manuelino espalham-se um pouco
por todo o país; são considerados emblemáticos o Mosteiro dos Jerónimos
(lançamento da primeira pedra – 1502) e o coro do Convento de Cristo em Tomar.
Garcia de
Resende viu alçar cavaleiros.
Conhecido que é o significado da palavra caualeiros
na Idade Média, qual o significado da palavra, no reinado de D. Manuel? Segundo
o Dicionário de História de Portugal,
uma pragmática dos meados de século XIV revela que, já nesta época, a palavra cavaleiro surge como categoria social
puramente honorífica, como degrau de subida para todo aquele que possuísse os
bens necessários para a comprar. No século XV, ser cavaleiro não passa de um
ideal, que se vai transformando em moda seguida pela alta nobreza, como modelo
da vida aristocrática. Estaremos nessa fase no tempo do rei D. Manuel? Por que
razão Garcia de Resende fala em ver alçar cavaleiros? Referir-se-ia à Guarda
Real do Rei que seleccionava entre os melhores da nobreza ou da plebe? Ou então
aos títulos nobiliárquicos atribuídos pelo Rei? Sabemos que os grupos sociais
foram profundamente alterados como consequência dos descobrimentos e da
expansão comercial: a nobreza aburguesou-se, a burguesia nobilitou-se – o cavaleiro mercador e o burguês enobrecido são criações desta
época - e a classe mais baixa pôde libertar-se das dependências.
Terminada a
visão avaliativa dos feitos de el-rei no seu reino, Garcia de Resende encolheu
os ombros, como quem diz: tais obras mereciam melhor expressão, mas outros
hão-de vir…
Passamos à
leitura da segunda estrofe. Vimos
descobrir outro mundo encoberto – mas foi isso mesmo: foi possível
encontrar outro mundo!
“Outro mundo encuberto / vimos então descobrir, / que
se tinha por incerto: / pasma homem de ouuir / ho que sabe muito certo, / que cousas
tam grandes sam / hos da Índia, e Iucatam, /e quam na China espantosas, / que
façanhas façanhosas / no Brasil e Peru vaam/”
E isso conduz-nos,
de novo, à expectativa do século XXI do encontro de outros mundos espaciais com
vida. As consequências são indecifráveis.
Quando D.
Manuel sobe ao trono (1495), já o vasto complexo do Oceano Atlântico estava
montado. À medida que progrediam na costa africana, os portugueses iam
registando nas cartas os seus avanços, que eram comunicados aos cartógrafos. A
ciência náutica, iniciada pelos portugueses no século XV, atinge na época de
quinhentos a época áurea da cartografia
portuguesa, como a designa Armando Cortesão. Reflecte o avanço do conhecimento
geográfico da época, que influencia profundamente a cartografia europeia. São
considerados monumentos cartográficos nacionais: o planisfério de Cantino de 1502, onde a costa
de África e a orla continental do Oceano Índico, se encontram perfeitamente
delineadas, mas o desconhecido é representado de acordo com fontes árabes e com
a geografia ptolemaica; o Atlas do mundo, de 1519, primorosamente iluminado e considerado
um dos monumentos do Renascimento caracterizado pelo cunho do humanismo prático,
executado por Lopo Homem, Pedro e Jorge Reinel, encomendado por D. Manuel e
oferecido por ele ao rei da França, Francisco I. Segundo Magalhães Godinho, a representação
cartográfica do Atlas do mundo de 1519 marca o sucesso da busca dos homens e a
viragem para a claridade de um mundo representado, passível de ser abrangido
por um só olhar. A racionalidade tinha vencido a mitologia de qualquer origem.
Muitas foram as inovações introduzidas pelos
portugueses na cartografia, de entre elas destacamos a escala de latitudes nas
cartas naúticas, a graduação de longitudes, os regimentos cosmográficos e as tabelas de marés, pelas suas
consequências inovadoras.
A cartografia portuguesa
atingiu no século XVI um lugar inultrapassável na época, tanto pela quantidade
dos cartógrafos em laboração como pela perfeição técnica, geográfica e
artística conseguida.
A influência
da cartografia portuguesa espalhou-se pela Europa, mas não só, pois foram
encontradas cerca de duas dezenas de cartas de inspiração portuguesa no Japão.
Um mundo novo
foi descoberto e os homens de quinhentos viram alargada e alterada a sua noção
de espaço e foram capazes de fazer a
introdução do experienciado na tradução do espaço percorrido (p.3) e fizeram-no
numa evolução criativa e científica, dando ao ser humano a possibilidade de
apreender o mundo com um só olhar e de confrontarem no espaço planetário as
nações, os continentes e os mares.
Eram as
notícias desse mundo novo que chegavam aos que não partiam, como era o caso de
Garcia de Resende. Os eventos eram experienciados já não directamente pelos
seus olhos, mas pelos seus ouvidos, através de relatos orais, que pasma homem de ouir / ho que sabe muito
certo. Que se ouve na corte do rei D. Manuel? Nos primeiros tempos, as
preocupações centram-se na viagem marítima à Índia, preparada por D. João II e
iniciada em 1497, já no reinado de seu cunhado e primo, o rei D. Manuel.
Aguardam-se notícias, que no tempo só podiam vir muito lentamente. Quando elas
chegam, enchem de espanto os ouvintes. Sobre a Índia, já havia algum conhecimento,
pois D. João II mandara expedições terrestres para saber da certeza do êxito de
uma viagem marítima, percorrendo a costa oriental de África, e para estabelecer
contactos em terras do Prestes João, na mira de uma aliança. A expedição
marítima à Índia, comandada por Vasco da Gama, foi o grande acontecimento. Ela
percorre os caminhos atlânticos já conhecidos, mas não sem dificuldades, dobra
o cabo da Boa Esperança – a porta que Bartolomeu Dias abrira em 1488 – fundeia
em Melinde, na costa oriental da África, e segue para Calecute. Estava feita a
ligação do Atlântico com o Índico. Os portugueses tocavam os centros
nevrálgicos do comércio do Oriente. E do ponto de vista geográfico a
importância era enorme: o Atlântico fora desvendado até à união com o Índico. A
partir daí o objectivo era a Índia e as suas riquezas – profundo golpe para o
comércio do sul da Europa. Entretanto os expedicionários foram galardoados pelo
rei, sobretudo o chefe da expedição. O rei mostrava a sua satisfação com tal
sucesso, resplandecia o optimismo da sociedade portuguesa, e o nome e os
interesses de Portugal sobressaíam na Europa. O acontecimento em si e a
expansão no Oriente deram origem a obras históricas de envergadura excepcional
de João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e Damião de Góis, como sabemos,
todas posteriores à Miscelânea de
Garcia de Resende.
Para além da
Índia, há referências, na estrofe, aos relatos sobre a exploração do Atlântico
Oriental (Brasil, e Iucatão - berço da civilização Maia, pertencente ao México)
e do Oceano Pacífico (Peru).
Garcia de
Resende tem consciência de que é impossível contar tudo ou até seleccionar
entre tantas descobertas de outros povos, de outros costumes, de outras nações.
Decide então: «Contarey das que sei bem».
E assim vai fazer no decurso da Miscelânea,
sobre a qual partilhamos a opinião de Veríssimo Serrão: «Não resta dúvida de que Garcia de Resende compreendeu a vida nos seus
quadros mentais de «tempo» e «espaço», ou seja como dimensão e itinerário. A
Miscelânea constitui o testemunho dessa convicção. Para ele, a existência seria
composta por factos soltos que formavam um trajecto coerente para integrar a
pessoa humana na história.»
Na
retrospectiva feita sobre o reinado de D. Manuel, nós encontrámos um Portugal bem
organizado no que respeita à economia e à política, embelezado
arquitectonicamente, com uma cartografia exemplar, e, ainda, em transformação
social, mercê de um comércio em progressão e de uma ocupação de postos na
administração ultramarina. Tudo isto sob o signo da expansão bem sucedida.
Substituindo
Europa por Portugal no texto de Magalhães Godinho, diríamos que Portugal se
revia na sua obra e ganhava consciência frente ao resto do mundo. Uma sociedade
urbana de base mercantilista estava em formação. A civilização acreditou no
homem e na sua racionalidade, e o homem deslumbrado com tanta novidade
julgou-se um deus com o Paraíso terreal ao seu alcance.
Bibliografia
Crónica de D. João II e Miscelânea por Garcia de Resende.
Descobrimentos Portugueses, Damião Peres, Coimbra, 1960.
Dicionário de História de
Portugal, dirigido por Joel Serrão,
Porto, Livraria Figueirinhas, 1989.
História de Portugal, dirigida por José Mattoso, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1993.
História de Portugal, A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Edições Ágora,
1972.
História
dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Aurélio de Oliveira e outros, Lisboa, Universidade Aberta, 1990.
Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar Séculos
XIII-XVIII, de Vitorino Magalhães Godinho, Edição: Difel, dezembro de 1990.
Braga, 31/01/04
Maria José Domingues