QUASI
Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei...
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir.
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado de papéis meio compostos,
Os outros também sou eu.
Vendedeira de rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em afinal não arrumar
Para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, acaba no meu cérebro em metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando-se,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema.
Como um deus, não arrumei nem a verdade nem a vida.
Álvaro de Campos
(Nota: Os versos começam com letra maiúscula; as palavras ou expressões com minúscula, em início de linha, pertencem ao verso da linha anterior.)
Quero colaborar na homenagem a Fernando Pessoa com um poema de Ricardo Reis:
ResponderEliminarNem relógio parado, nem a falta
Da água em clepsidra, ou na ampulheta a areia,
Tiram o tempo ao tempo.
Eu quero tudo
ResponderEliminarLer e escrever sem parar
Até a morte matar
Tenho a cabeça cheia
Amanhã arrumo a prateleira
Com etiquetas
Brancas com letras pretas
Aqui arrumo o Pessoa
O Reis o Campos e o Caeiro
Ocupam o dia inteiro
E a Ilíada e a Odisseia por arrumar
Não sei onde vão parar
A Divina Comédia espreita
É grossa
Não cabe na nesga estreita
Os outros também sou eu
Perdida na multidão
Nesta viagem cósmica
Sem saber p’ra onde vão
E a vendedeira de rua
Já não canta o seu pregão
Os outros também têm a morte no olhar
Corre corre não a sintas
Entra em redemoinho
Quem sabe talvez a fintes
E a afastes do caminho
Josefa Portel