Valter Hugo Mãe e Gil
Vicente em O Filho de Mil Homens
A associação entre os dois autores
provém da galeria de tipos e figuras e da utilização da linguagem corrente, na sua modalidade
mais rude.
Da galeria popular de Hugo Mãe
destacam-se, em romagem de agravados, a anã, o maricas, a enjeitada, que
desaguam direta ou indiretamente no coração disponível e salvífico de
Crisóstomo – o homem de 40 anos que quer um filho para ser inteiro.
Dos agravados disse Gil Vicente:
Dos agravados disse Gil Vicente:
«Cada um leva
consigo
agravos tantos
e tais,
que
ouvi-los, corres perigo.»
Os agravados da obra de Hugo Mãe não
são personagens de tragicomédia, são personagens trágicas - vítimas inocentes
da natureza e da sociedade que encontram a salvação em Crisóstomo, o pescador
de peixes e de sofredores de desamor. Ao penetrar a intimidade da anã ou do maricas, o
cliché desmorona-se e surge a pessoa sofredora face ao olhar da sociedade que atua
perseguindo-a cruelmente e ostracizando-a, num atropelo aos direitos humanos.
No que ao discurso respeita, os dois
autores servem-se da linguagem corrente com à vontade, sempre que dela
necessitam, sem evitar o palavrão ou a vulgaridade. No caso de O Filho de
Mil Homens, essa linguagem agudiza-se no caso do «maricas», para quem a
sociedade era e ainda é implacável. Através dessa linguagem, o autor consegue criar imagens
terríficas, agudizadas pela relação de amor/desamor da mãe para com o seu filho
Antonino. A voz implacável é a voz do povo que ordena à mãe que o mate, ou que, no caso da anã, entre dentes, lhe
deseja a morte.
Então pensa-se na fala de Maria, em Frei
Luís de Sousa de Garrett, para a pôr em causa: - Voz de povo, voz de Deus,
minha senhora mãe». Muitas vezes, a voz do povo é apenas a voz da
tradição, que serve de síntese a um
passado a modificar para melhor em termos de direitos humanos para todos, sem
exceção.
1 de maio de 2015
Maria José Domingues