Mote: «Vida e morte o que são?»
Na
continuação do artigo anterior, no qual se analisa a classificação feita por
Óscar Lopes a Uma Abelha na Chuva,
este texto tem por objetivo apresentar alguns dos aspetos literários que
ultrapassam a «reactualização da novela camiliana». Esta curta e lacónica
definição pode ser lida como se o ortodoxo autor da Época Contemporânea
da História da Literatura Portuguesa, afastasse a referida obra do cânone
neo-realista. Penso que isto se deve ao facto de a simbologia aplicada por
Carlos de Oliveira criar ambiguidades e dificuldades de leitura ao narratário,
entidade alargada e focada pelos neorrealistas com vista à consciencialização
do valor da luta de classes como dinamizador da transformação da História na
direção de uma sociedade sem classes. Sobre esse objetivo neorrealista aplicado
à obra, a imagem da colmeia não é paradigmática, uma vez que a sociedade que
habita a colmeia é organicamente estática. Talvez Carlos de Oliveira quisesse ambiguamente
transmitir que, de facto, apesar da luta de classes sempre existente na
dinâmica social, o ser humano cria estruturas semelhantes às da abelha, nas
quais a organização social regulada é considerada indispensável e aquele que
não obedece às regras da colmeia corre risco de vida. E isto aconteceria em
qualquer ditadura - em Portugal ou na URSS.
Muitos
são os símbolos que percorrem a obra, desde os símbolos universais como a água
e a abelha[1]
até a certos nomes próprios, como o irónico nome Maria dos Prazeres ou o de Jacinto,
nome de conotação mitológica.
O
narrador exterior à ação conta a história, mas pode tornar-se muito próximo da
personagem e até dialogar com ela («voz obsidiante» em Silvestre), no relato
dos pensamentos que preenchem os momentos de silêncio.
Numa focagem dos símbolos, percorre-se toda a
obra pelos quatro dias em que decorre a ação principal, uma ação de tempo
curto, próprio da tragédia clássica, com a qual a obra tem afinidades.
1º Dia – Os Silvestres
A viagem
Prevenido
a partir do título, o leitor entra na colmeia global que é a aldeia de
Montouro, tendo como antecâmara a vila de Corgos, nos três primeiros capítulos.
Antes
da abelha, aparece o símbolo da água, na chuva forte de «uma tarde invernosa de Outubro», que
acompanha a chegada da personagem tempestuosa: Maria dos Prazeres de Alva…
Silvestre. Porém, nos dois capítulos anteriores, já conhecera o leitor a
personagem enlameada do marido: Álvaro Silvestre. E onde há lama há água
turva, tão turva como a consciência da personagem, revelada ao exigir a
publicação da autodenúncia no jornal da terra e ao escondê-la no momento em que
surge a esposa.
Como
abelhas protegidas, o casal regressa à colmeia na charrete, em viagem
tumultuosa, sob «a chuva miúda», pelos barrocais enlameados, mas também em
viagem na corrente dos pensamentos de Maria dos Prazeres. E, nessa corrente,
passava o desejo físico dela pelo belo cocheiro, Jacinto - «homem de oiro» -, e
a repugnância pelo marido, e passava também, por meio da analepse, como se de
uma «fonte» brotasse, a sua infância nobre e, depois, já longe da fonte,
o seu casamento sem amor com a pequeno-burguesia, por obrigação filial -
«sangue por dinheiro» e «a chuva caía, caía com certeza, no passado e
agora». Com interrupções, «a água da memória» continuava a correr,
aproveitando para informar, com desprezo de classe, por que razão estava
Silvestre roído pelo pecado - «Rói-o o pecado como rói o musgo a concha
da lapa». E a etapa final da viagem, já com a égua ferida, é conduzida
pelo «incêndio» que lavrava dentro dela. Arrancara o chicote das mãos do
cocheiro e «malhou» sem dó nem piedade no lombo do animal, acordando Álvaro
Silvestre, que «emergiu do seu meio sono» e viu a mulher «com as lágrimas em
baga pela cara, os cabelos soltos, manchada do oiro baço da luz […], bela, quase terrível: -Acaba,
acaba, acaba, acaba…». Mais tarde, ao serão, o marido, em estado de
semi-embriaguês, vê-la-á como «uma amazona galopando através das labaredas».
À
luz do cânone do neo-realismo, vemos nos seis primeiros capítulos as três classes
sociais representadas, sob a agressividade do tempo - a chuvada, a morrinha
e os lameiros. Verifica-se que ainda domina a nobreza decadente
(representada por Maria dos Prazeres de Alva) cruzada com a burguesia
(representada por Silvestre), sendo esta última a classe dominante na República
e no Estado Novo. O povo, representado por Jacinto, o ruivo cocheiro, surge, em
efígie de oiro, a prestar serviço à classe dominante. O nome do cocheiro não é
escolhido ao acaso, pode ser visto como uma referência à cultura clássica e sua
mitologia, na qual, Jacinto é o nome do belo jovem companheiro e amigo do deus
Apolo, que, por acidente, num jogo, o mata com o disco. Junta-se a esta
história mítica outra que conta ter sido Zéfiro, o vento do Ocidente, também
apaixonado pelo jovem, o causador da sua morte ao desviar o disco, por ciúme da
preferência do jovem por Apolo. Também o cocheiro Jacinto será morto pelo ciúme
de Silvestre, acrescido da ambição de António Oleiro.
O
serão
À
viagem segue-se o serão, que traz esclarecimentos à metáfora titular, no que
respeita à abelha.
A
introdução das novas personagens, a nata social, faz-se por ordem de chegada.
Em primeiro lugar, chega o representante do clero, o padre Abel e dona Violante
– sua irmã ou concubina - a quem são dedicados o sétimo e o oitavo capítulos; a
meio do serão, chega a professora, «D. Cláudia, pálida e medrosa»; por fim,
chega o médico e eterno namorado da professora, o dr. Neto, um sábio e
diligente apicultor. Zelava pelos doentes e pelas abelhas - «bichinhos
sábios comedores de pólen, simbolizavam no doce destilar dos favos o que a
Vida, a Natureza, Deus ou lá o que era, podia arrancar de belo e saboroso ao
tempo».
O
dr. Neto é o filósofo do grupo dominador, dono de uma «filosofia nascida de
três ou quatro jeiras de quintal, assente em realidades vivas, botânicas e
animais, porque o dr. Neto amava a realidade e só daí é que partia para as abstrações,
simbologias camponesas em que o mel, por exemplo, quase alcançava o teor
de uma perfeição».
Discorrendo
sobre «Vida e morte o que são?», Neto recorre ao exemplo das abelhas «para
partir do simples para o complexo» e acrescenta «após a fecundação o destino
dos machos é a morte». Note-se que no grupo do serão não há machos
fecundadores, logo, eles estão a salvo da morte na narrativa. O macho
fecundador será Jacinto, morto à paulada e lançado nas águas do mar.
Enquanto
seroavam, Silvestre, o único do grupo que tinha por obrigação ser «macho
fecundador», embriagava-se lentamente e imaginava, em prolepse, a sua morte, o
velório, o funeral e a destruição do corpo, ficando-se com a pergunta: «E a
alma?». Estranhas visões surgiram na sua mente. Via a mulher como amazona
galopando através das labaredas infernais e atrás cavalgavam os outros
convidados do serão. Tinha-lhe medo, porém, mais tarde, após a saída das
visitas, o álcool deu-lhe forças para lhe atirar à cara que estava farto da
nobreza que lhe viera comer as sopas. Ela, arrogante, considera a sua linguagem
a de um cocheiro e conta que seu pai, perante a linguagem rude do seu cocheiro,
o chicoteara, mas que os seus mortos já «não empunham chicotes». É o momento da
rebelião classista de Silvestre, partindo os quadros da nobreza de Alva
pendente nas paredes do seu escritório - «vidros estilhaçados acordavam um som
agudo pela sombra». No futuro do tempo da narrativa, haverá mais um vidro
estilhaçado, o da janela da casa do casal Silvestre, prenunciador da rebelião
do povo.
2º Dia – A
revelação
Madrugada - estilhaços, abelhas e água
A
ação inicia-se na madrugada com um passeio matinal de Álvaro Silvestre, que passa
pela olaria de mestre António, cego, que trocara a olaria de objetos úteis pela
de santeiro. Ouvindo risos, espreitou o palheiro e deu-se a revelação fatídica:
Clara, a filha do Oleiro, e Jacinto amavam-se alegremente na palha do curral e
conversavam. Assim, Silvestre ficou a saber que Clara estava grávida e com
problemas sérios em revelar ao pai o seu estado e o desejo de casamento, pela
contrariedade do sonho do pai em casá-la com um lavrador rico; ficou a saber pela
boca do cocheiro que Maria dos Prazeres o «comia com os olhos». E, mais uma
vez, há estilhaços, agora, interiores: «na sua confusão interior a voz do ruivo
bateu como um calhau no vidro»; «crescia da sonolência em que viera,
subitamente estilhaçada pelas palavras do cocheiro».
No
regresso a casa, de novo a questão «Vida e morte o que são?» e surgem-lhe na
memória as respostas do serão, segundo os católicos, «vida e morte são o que
são, a vontade criadora de Deus resolveu-se e criou», segundo o apicultor -
«sabe-se que depois da fecundação o destino do macho é a morte».
A
cena dos amantes continua, no curral, como no presépio - «a vaca, o jumento» -,
após o afastamento de Silvestre. Jacinto pronuncia-se acerca da pequena
burguesia rural, a propósito do lavrador rico desejado para marido de Clara por
mestre António: «Bons para afogar no poço com dois pedregulhos amarrados
às canelas» - indício trágico na narrativa.
Entretanto,
Silvestre senta-se e recorda a pureza da infância idílica com as pombas e a fonte
de «água múrmura, coada pelo berço do areal. Bebiam todos dela, chapinhavam num
daqueles regatos breves que as chuvadas de inverno faziam transbordar do tanque
de pedra carcomida. Cantavam». Esta água recordada limpou-lhe a alma e ele
pôde pela última vez olhar a terra natal «respirar o ar transfigurado das
manhãs infantis» e «tudo lhe pareceu cândido e simples como outrora, quando na
concha do céu a claridade nascia com a sua brancura de espuma».
A
recordação da infância, em analepse, cessou rapidamente e «o desespero sem
remédio que espreitava dentro dele irrompeu de novo» e «a voz obsidiante
persistia: quando quiseres matar a tua sede, lavar o sarro desta
noite, das conversas tidas, das palavras ouvidas, a água secará de vez».
A
vingança
Enlameado,
vexado ao ver o ruivo, entra em casa, para sair rumo à mercearia, onde Lourenço,
o caixeiro, está a abrir as portadas. São nove horas. Silvestre entra no
escritório e luta contra o sono. Surge no seu espírito a síntese dos
acontecimentos nefastos do conhecimento do leitor e a «voz obsidiante»
aponta-lhe «um chão para os seus cardos» - Jacinto. «Concentrou no ruivo toda a
força do seu pensamento; era ali que tinha que teimar, até meter o ombro numa
fresta da porta e arrombar o quarto sufocante em que jazia».
Álvaro
Silvestre era duplo na sua interioridade. Avisa o narrador que ele, até aqui,
tem mostrado a sua consciência dúbia, temerosa e enlameada, mas que ele pode
ter a estatura de um gigante quando «no recesso da alma» surge «o homem
voluntarioso» e «sem escrúpulos», ainda que «efémero». Talvez essa duplicidade
possa explicar «a voz obsidiante» que o atormenta.
Assim,
surge o ato de vingança perpetrado por Silvestre, o «voluntarioso» e «sem
escrúpulos». E manda chamar o cego oleiro a quem declara: «a sua filha
desgraçou-se». Jacinto tinha sido entregue cobardemente. O cego declarou que o
cocheiro iria dançar na corda bamba e «aprender quantas cabaças de água
são precisas para matar a sede no inferno».
O
oleiro prepara o assassinato de Jacinto, aliciando Marcelo, o seu empregado,
com a dádiva de Clara, por quem ele se apaixonara, para o ajudar a consumar o
crime à paulada, fazendo depois desaparecer o corpo do ruivo nas águas do mar.
O
crime é consumado e a caminhada com o corpo sobre o burro até ao mar é feita debaixo
de chuva intensa, transformada em tempestade na proximidade marítima. Mais uma
vez temos o tempo/clima adverso às personagens e aos seus atos. E a voz que se
faz ouvir junto do oleiro faz pensar a certos críticos na voz do diabo: «Cheira
a iodo, o que é normal, mas também cheira a enxofre, já notou?; não pergunte
porquê, estando eu aqui, precisa de perguntar?».
3º
Dia – A denúncia
Clara
acorda com o sino matinal. Jacinto não comparecera no palheiro. Noite em
branco. Preparou o pequeno-almoço. Ninguém em casa. Nem o burro. «Indício sobre
indício, a suspeita encorpava». Viu-os chegar, cobertos de lama. «Mataram-no,
meu Deus, mataram-no» - os gritos de Clara alertaram o povo. Silvestre ouviu,
mas a casa ficara silenciosa e ele adormeceu para acordar assumindo a culpa
apenas na sua consciência: «Mataram-no e o culpado sou eu». E correu à
garrafeira a enfrascar-se. Chegava o aglomerado do povo com o regedor à frente
ao pátio da casa dos Silvestres. O pânico apodera-se dele e conta o sucedido à
mulher. Fala ao regedor e ele diz estar ali para dar contas do sucedido ao cocheiro
e que quer inspecionar o quarto dele. Depois da inspeção, Maria dos Prazeres
expulsa-os a todos do pátio e alguém apedreja a vidraça, estilhaçando o vidro, assunto
muito comentado ao serão.
[«Nenhum
dos íntimos da casa presenciou os acontecimentos da manhã» - conta o
narrador, no início do capítulo XXXII, com ironia literária e política, talvez
com a intenção autoral de criticar o abstencionismo político em geral e o dos
escritores presencistas em especial. É conhecida a polémica literária e
política entre os escritores neorrealistas, conotados com o comunismo e politicamente
empenhados na oposição ao Estado Novo, e os escritores presencistas – revista
Presença – considerados abstencionistas políticos.]
Todavia,
os íntimos da casa «seroaram» como habitualmente na casa dos Silvestres,
comentando os acontecimentos e opinando contra o povo - «mancebias, arruaças,
assassínio» -, sob o olhar do dr. Neto que os via desfigurados pelas chamas e
«vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros; todos eles fabricam fel, abelhas
cegas, obcecadas». Propõe então um provérbio: «ver cada um com os olhos que
tem». Ironicamente, diz que deve ter cataratas, porque «de conjetura em
conjetura, está quase a admitir que a morte de Jacinto é tão importante como as
janelas estilhaçadas». Este comentário é ambíguo, pois pode ser interpretado
como a menorização do assassínio de um filho do povo pela classe dominante e
pode ser interpretado politicamente como o embrião da luta de classes por parte
do povo – o acordar do povo.
Álvaro
Silvestre, em estado letárgico, ouve o nome do irmão pronunciado pelo padre e
isso recorda-lhe o que fora fazer a Corgos, denunciar-se a si e a sua mulher
como ladrões; mete a mão ao bolso e lá está o papel amarfanhado com o texto que
desejara ver publicado no jornal - «tinha voltado ao ponto de partida, traçando
um círculo vão». Ergueu-se de repente com a garrafa vazia na mão e desatou aos
gritos: «-Onde é que há brandy nesta casa?».
4º
Dia – Domingo – o alvoroço
No
largo da aldeia o povo alvoroçado comentava o crime e já sabia que a revelação
dos amores de Clara e Jacinto fora feita por Álvaro Silvestre, acusado pelo
caixeiro Lourenço. O padre na homilia prega contra o boato, em defesa do amigo
Silvério.
O
dr Neto, após as consultas, tece a sua filosofia de apicultor. Acusava-se de
ter pintado e repintado «a colmeia dos Silvestres», «sem atender que lá
dentro o enxame apodrecia». Pensou em Clara e preocupou-se. Dirigiu-se à
casa do oleiro, mas não chegou a tempo de salvar Clara que se suicidara no poço.
De regresso a casa, a chuva caía e ele abrigou-se olhando as colmeias, que
batizara de Cidade mais o nome de uma cor. «E viu uma abelha voar da Cidade
Verde» e, logo, apanhada pela chuva, «deu com as asas em terra e uma bátega
mais forte espezinhou-a».
Interpreta-se
a Cidade Verde como sendo a colmeia popular, na esperança de que o povo, face à
tragédia, acorde para alcançar o poder ainda distante e construir um mundo
novo. O autor transmite a noção de que se estava no dealbar dessa construção
(em 1953) e que talvez não tenha sido vã a morte do casal. Contudo, na colmeia,
a morte da obreira é superada e tudo continua a funcionar rotineiramente. E a
morte do zângão, após fecundar a rainha, é a regra na colmeia. Parece haver um
certo desespero autoral, transmitido através do símbolo da colmeia, perante o
imobilismo salazarento de Portugal.
Desde
o símbolo da água da fonte cristalina da infância até à conspurcação lamacenta progressiva
da adultícia, temos a chuva adversa nos momentos cruciais da narrativa e, no final
trágico, o mar e o poço. Porém, se a água é fonte de vida, do mar e do poço nascerá
a voz da revolta do povo alvoroçado – talvez se possa ler assim a mensagem neorrealista
da obra.
Outro
aspeto importante a meu ver é a falta de procriação das personagens. Na colmeia
apodrecida, o casal Silvestre não tem filhos; o casal Neto e Cláudia não casa e
não procria; António tem uma filha que acaba por matar, ainda que indiretamente;
Clara está grávida e suicida-se, levando o filho no ventre. Não existe procriação.
A explicação pode estar presente na resposta à pergunta «Vida e morte o que
são?». Eis a pergunta feita pelo filósofo apicultor, com efeito atormentador em
Álvaro Silvestre e em qualquer ser humano consciente. Na obra há a resposta centrada
em Deus, própria dos católicos, e a do apicultor, afirmando a morte do macho após
o ato procriador, na colmeia. Quem quer procriar dentro da predestinação de nascidos
para morrer? Carlos de Oliveira talvez não soubesse que profetizava a baixa populacional
numa sociedade consciente dessa problemática existencial.
Setembro
2015
Mª
José Domingues