Cada
leitor, sua leitura…
Pode ler-se a
última obra de Lídia Jorge como um romance, uma vez que pretende ser uma obra
de ficção classificada como romance, o que permite todas as fugas ao real.
Todavia, sabemos pela voz da autora que pretende homenagear os Memoráveis
abrilinos. Entre a realidade e a ficção, a obra passa a ser uma charada da
nomenclatura, pelo facto de a narrativa, nuns casos, apontar diretamente para o
real histórico através de nomeação facilmente identificada, baseada em
estratagemas decodificantes – a profissão (“o antigo embaixador”/ Franco Carlucci), o código militar (Charlie 8 /
Salgueiro Maia) e epítetos mais ou menos identificativos em contexto histórico (“juba
de leão”/ Henry Kissinger, “Oficial de Bronze” ou o “Bronze”/ Vasco Lourenço,
“El Campeador” / Otelo Saraiva de Carvalho) – e, noutros casos, criar nomes que parecem resultar de sínteses de
perfis, no caso de Umbela ou de Ernesto Salamida.
Certo é que,
depois de começar a identificar quem é quem com relativa facilidade, o cérebro
exige a continuação da pesquisa. Isso leva a um exercício infindável na
ressurreição dos Memoráveis, numa época histórica particular.
Se a autora
pretendia que os ressuscitássemos, eis a ressurreição, numa busca pela
Internet, privilegiando a cronologia da Associação 25 de Abril, presidida por
Vasco Lourenço, o preservador do Memorial, e o arquivo da Universidade de
Coimbra, os jornais da época, bem como a obra de Otelo, O Dia Inicial,
as duas obras publicadas pelo General Garcia dos Santos e ainda Carlucci vs Kissinger - Os EUA e a Revolução Portuguesa.
Apesar de todos
os dados recolhidos, a personagem Umbela continua a incógnita. Tendo em
conta o valor metafórico da palavra “umbela”, o epíteto pode significar o
disfarce de uma identidade ou de várias, unidas no mesmo objetivo, tal como na
botânica, na qual umbela é o
termo utilizado para um conjunto de flores de pedicelos iguais que partem do
eixo central, em formato de um guarda-chuva.
Verifique-se
quem pode entrar na composição da personagem Umbela, decompondo-a, a partir da
obra para os factos históricos.
- «Umbela tinha sido um dos oito assaltantes do Rádio Clube» (p.137)
Foi
possível encontrar uma foto in loco dos oito.
«O grupo que tomou o RCP; da esq. para a dir.: Capitão Mendonça de Carvalho, Major Campos Moura, Capitão Santos Silva, Tenente-coronel Sacramento Gomes, Capitão Santos Coelho, Capitão Santos Ferreira e à frente Capitão Correia Pombinho (de barba) e Capitão Santos Coelho (foto do arquivo de Santos Coelho)» (helderalmeidajournalist.wordpress.com/.../nao-sei-se-as-minhas-netas-ter...).
Muito agradeço a postagem desta
foto. Nela se encontram oito militares, contudo, na legenda, apenas encontramos
referidos sete nomes diferentes, uma vez que Santos Coelho está repetido. Verifica-se que falta o nome do major José Manuel Costa
Neves.
Dos
oito nomes, apenas encontrei um Major-General, o
Major-General José Manuel da Costa Neves, que pertenceu ao Conselho da
Revolução e assinou o «Documento dos Nove».A confirmar a identidade poderemos transcrever a afirmação de Umbela: «Porque eu nasci numa cidadezinha de província onde havia uma Mata Real». Certo é que o general Costa Neves nasceu nas Caldas da Rainha, onde existe A mata da rainha Dona Leonor, que confina com o Parque D. Carlos I.
Do Major-General José Manuel da Costa Neves, encontrei os
seguintes artigos muito críticos da corrupção na política: POLÍTICOS SEM
MÁCULA – (1) e (2) – por José Manuel
Costa Neves. Transcrevem-se os agradecimentos - «*Agradecemos ao general José Manuel Costa Neves, à
‘Associação 25 de Abril’ e ao seu boletim oficial REFERENCIAL. a
autorização concedida para afirmação a transcrição do presente artigo»[2]
- e extratos dos artigos, que tiveram como
motivação a afirmação da Dr.ª Cândida Almeida, num curso da Universidade de Verão do PSD:
“os nossos políticos não são corruptos, os nossos dirigentes não são dirigentes
corruptos”. Ao que o general respondeu, escrevendo: «Se calhar não. Mas, tendo
em conta a prosperidade galopante de que muitos dão mostras, em flagrante
contraste com o acelerado empobrecimento da generalidade dos portugueses, lá
que parecem sê-lo, parecem». E, depois de explanar a situação indicadora da corrupção, apela ao acordar do povo:
«Acordar
é imperioso. Os portugueses não podem continuar a assistir, impávida e
serenamente, ao alastramento e consolidação da corrupção impune e impudente
praticada por políticos venais, protegidos e apoiados por clientelas
partidárias pouco escrupulosas. É urgente libertarem-se do estado letárgico em
que se encontram e reagirem, no interesse de todos, contra o actual estado de
coisas. Análises desapaixonadas do que se passa no mundo mostram que a
corrupção está invariavelmente associada ao subdesenvolvimento, à pobreza, à
tirania, à criminalidade violenta e até à guerra. É inquestionável a existência
de uma relação directa entre níveis de corrupção e níveis de pobreza, injustiça
e desigualdade social, numa triste demonstração de que os corruptos medram à
custa da miséria que a sua ambição insaciável, mesquinha e sórdida, semeia à
sua volta. […] Varrer dos cargos públicos toda essa gentalha que apenas procura
servir-se do Estado, que é de todos nós, em vez de o servir, é uma ciclópica e
difícil tarefa, sobretudo numa sociedade que, para além de culturalmente
tolerante com os abusos do poder, dispõe de um sistema democrático com uma
componente participativa praticamente inexistente e uma componente
representativa ferreamente dominada por estruturas partidárias, cujo comportamento
muito tem contribuído para inquinar o funcionamento da democracia, desvalorizar
o serviço público e promover a irresponsabilidade e incompetência no aparelho
do Estado».
Todavia, nestes
textos, não se trata de uma ofensa de honra pessoal. O general está sentido por uma ofensa ao
povo português, perante a qual considera necessário e urgente reagir.
Talvez
por isso, Umbela deva albergar mais alguém pessoalmente magoado na honra, para que se
responda à pergunta: «Porque estava tão sentido o general?». E a resposta
poderia ser o nome do general Amadeu Garcia dos Santos - um militar de Abril
que tratou das transmissões do Posto de Comando da Pontinha e trabalhou na
contenção do 25 de Novembro, tendo sido Secretário de Estado das Obras Públicas,
entre 1974-1976, desempenhado o cargo de Chefe do Estado-Maior do Exército
(CEME) de 27/01/81 a 22/11/1983, data em que foi exonerado por Eanes, por exigência de
Mário Soares, sem explicações e sem recolocação. Esse facto político altamente
constrangedor e lesador, manteve-se durante anos, até que, a 3 de
Novembro de 1988, o general pôs uma ação de responsabilidade civil contra o Estado Português,
que acabou, em Novembro de 1992, com a passagem do general à reserva sem indemnização. Isto não vem na narrativa ficcional, mas pertence à narrativa
histórica, elaborada pelo general, na obra publicada em 2011, Memórias
Políticas: um pouco do que vivi – também por isso a mão direita estaria
escondida, ela seria a sua arma, não empunhando uma Walther, mas brandindo a
escrita[3].
Nessa obra, ele conta o que se passou, em 1997 - «1998» (p.157): por convite do
engenheiro Cravinho, Ministro do governo de António Guterres, Garcia dos Santos aceita dirigir a
Junta Autónoma das Estradas, para pôr ordem na casa. Descobriu
desvio de dinheiros e pôs os nomes aos bois, salvaguardando os nomes das
fontes. Fez as propostas de limpeza, que Cravinho encravou. O General pediu a
demissão em Junho de 1998 e deu uma entrevista ao Expresso, a 3 de
Outubro de 98, na qual denunciou a situação e a corrupção encontrada. As
declarações do general, levaram-no a uma audição no gabinete do PGR, Cunha Rodrigues, e ainda a uma comissão parlamentar de
inquérito. O Tribunal Criminal de Lisboa sentenciou o pagamento de 135 mil escudos por crime de
desobediência qualificada, pela recusa de dar os nomes dos empreiteiros que o
tinham informado da existência de desvios de dinheiro da JAE, incluindo a resposta ao quem e para quem.
Terminada a leitura da sentença, Garcia dos Santos manifestou o seu
descontentamento em relação ao desfecho deste caso. «"A realidade é esta:
ainda não vi nenhum dos corruptos da JAE ser condenado. Dizem que há processos
na Procuradoria-Geral da República. Se há, não sei. Já saí da JAE há quase dois
anos e até hoje ainda não conheci ninguém condenado", sublinhou. Em
comentário à pena que lhe foi aplicada - 135 mil escudos -, Garcia dos Santos
diz ser talvez o "maior louvor" que teve na vida, porque foi punido
por ter cumprido a palavra dada, que assumiu até "às últimas
consequências"»[4].
Concluí que o general Costa Neves e o general Garcia dos Santos são homens que lutam contra a corrupção, pelos ideais de ABRIL. Poderiam estar ficcionados como chefes militares daquela «coluna militar, que tinha por objetivo as portas do Tribunal da Boa Hora, nome de código Cairo, que ainda não chegou ao seu destino» (p.191).
Concluí que o general Costa Neves e o general Garcia dos Santos são homens que lutam contra a corrupção, pelos ideais de ABRIL. Poderiam estar ficcionados como chefes militares daquela «coluna militar, que tinha por objetivo as portas do Tribunal da Boa Hora, nome de código Cairo, que ainda não chegou ao seu destino» (p.191).
Em
Os Memoráveis, Umbela afirma que é a sua honra que está ferida e que tem
de ser lavada, para isso vai pôr processos e mover ações, pelos milhares que
não o podem fazer e que «não podem esperar». E «a revolução de há trinta anos
vai ganhar» (p.165). Poder-se-á dizer que estamos perante o herói anticorrupção,
por quem o povo clama.
(a continuar)
Maria
José Domingues
[1] Nas marinhas, exércitos ou força aéreas de alguns países, a
designação é utilizada como título da função de chefe ou subchefe de estado-maior.
[3] Em 2013, o General
publica Apontamentos Políticos: Eanes
e os Partidos.
[4] http://www.publico.pt/sociedade/noticia/garcia-dos-santos-condenado-a-multa-de-135-contos-