quarta-feira, 31 de julho de 2013

CLARABOIA de José Saramago (uma leitura crítica)




Sou uma leitora da obra de José Saramago.
Num primeiro momento, a obra gerada nos anos cinquenta do século passado, a segunda obra do autor, não me interessou de imediato, embora não a esquecesse por a desejar. Encontrei-a há dias com 60% de desconto na feira do livro do Continente e nem hesitei em comprá-la e em lê-la de imediato. A obra de Saramago implica estudo, atenção, registo. Estamos perante um autor que é um óptimo observador e um grande leitor.
Era minha intenção alinhar as imperfeições desta obra face ao aperfeiçoamento contínuo processado na sua carreira de escritor. Confesso que pouco anotei, perante a construção bem estruturada da narrativa, em prédio de rés-do-chão e dois andares, onde vivem seis agregados familiares. Em alternância, assiste-se à rotina e ao quebrar da mesma de cada um dos grupos humanos. Destaca-se a personagem Silvestre todo José Saramago, no amor, na solidariedade e na esperança num futuro melhor. Esperança que se vai esvaindo na obra saramaguiana, se atendermos ao final desesperançoso da sua obra. E recordo Caim em homicídio colectivo, para ficar frente a frente com deus, perante o qual só sente revolta.
Silvestre teria sido construído em homenagem ao avô Jerónimo Hilário, a quem a obra é dedicada. Se assim não é, foi assim que eu senti que fosse.
Com a intenção de encontrar imperfeições e perfeições fui lendo a obra e fazendo os registos que se seguem:
  1. O título CLARABOIA é uma palavra bem sonante e de grande significado na obra. O narrador como que espreita pela clarabóia do prédio de seis inquilinos, para penetrar no âmago da sociedade portuguesa dos anos 50, na qual, para subir economicamente, era preciso uma ‘palavrinha’ de alguém a alguém de maior importância, senão não se sairia de cepa torta. Essa ‘palavrinha’ podia levar consigo alguém como Lídia ou Maria Cláudia. A sociedade, aparentemente inocente. era de uma perversidade hipócrita e maledicente. Abrem-se excepções na sociedade para aqueles que trabalham e estudam/lêem, tendo como ideal a esperança de uma sociedade melhor.
  2. A personagem Silvestre, o sapateiro, surge bem delineada, apenas com um senão que me levou a parar e a estudar o assunto da descrição das pernas do sapateiro adjectivadas de «enfezadas», para, depois, com espanto, surgirem altas, ainda que excessivamente magras. O referido adjectivo conduz o imaginário do leitor para pernas pouco desenvolvidas no que respeita ao osso insuficientemente mineralizado, pelo que não poderiam ser altas e de osso bem desenvolvido. Penso que o problema das pernas do sapateiro estaria na musculação atrofiada pela posição do ofício. Enquanto o tronco se desenvolveria pelo trabalho braçal, os músculos das pernas ir-se-iam atrofiando na posição de sentado.
  3. O retrato da gorda Mariana traduz o olhar amoroso, a que o autor nos habituou no tratamento da mulher amada. E o sentimento amoroso do casal, Silvestre e Mariana, é cuidadosamente tratado em gestos atentos e em palavras reveladoras de uma relação amorosa saudável, cheia de graça e de sensibilidade.
  4. O corpo da menina Isaura parece-me sofrer de excesso de adjectivação com desnecessária adversativa (p.17): «esguio e magro, mas flexível e elegante». Em meu entender, bastaria: esguio, flexível e elegante; ou apenas: esguio e flexível.
  5. Destaca-se o cenário lisboeta com rio e neblina nos olhos e no sonho da costureira Isaura, por onde viaja uma fragata de descrição primorosa na sua mobilidade. Fez-me lembrar Pessoa.
  6. O narrador não aprecia mulheres grandes: «demasiado grande para mulher», a propósito da vizinha Justina (p.22), que vivia em casa com «atmosfera de túmulo» (39), acompanhada do gato e do marido jornalista, baixo e atarracado. Pelo silêncio de sua casa, Justina acompanha todos os ruídos do prédio - uma 'clarabóia' auditiva.
  7. As mulheres sedutoras, a sensual Lídia e a jovem e bela Maria Cláudia, são empurradas pelas progenitoras para escravas sexuais de homem rico, numa visão comercial da maternidade.
  8. Lídia lê Os Maias para preencher o ócio, «interessadíssima no mundo fútil e inconsequente de Os Maias» (p.37) e sublinha uma frase de Maria Eduarda a Carlos: «além de ter o corpo adormecido, o seu corpo permaneceu sempre frio, frio como o mármore». Talvez possamos ler na primeira citação a opinião do autor sobre a referida obra de Eça de Queirós.
  9. Isaura lê todas as noites. O narrador refere a leitura de A Religiosa de Diderot (86) e transcreve a parte em que a madre superiora tenta seduzir Susana – talvez o nome escolhido por Diderot para a personagem seja referência intertextual ao episódio bíblico de ‘a casta Susana’ (133-140). A obra lida viria a desempenhar um papel importante no autoconhecimento de Isaura: a sua homossexualidade descoberta quase em simultâneo por ela e pela irmã assediada enquanto dormia. Segue-se a zanga das duas irmãs e a inquietação curiosa das duas mulheres mais velhas.
  10. O culto da música clássica faz-se em casa de Isaura e Adriana com dificuldade em entender os que ouvem música ligeira, o caso de Maria Cláudia. Assiste-se à discussão sobre o bom e o mau, o bem e o mal – relativismo ou certeza (88-91).
  11. Em oposição ao tardio Caim, encontrámos a personagem Abel, que se hospeda em casa do sapateiro. Abel vai reler Os Irmãos Karamazov de Fiodor Dostoievski, para esclarecer «alguns juízos resultantes da primeira leitura» – considera esse acto um trabalho (117). Silvestre e Abel, um encontro de caracteres interessante como estratégia que permite a apresentação e o desenvolvimento de ideias políticas e sociais. Saliente-se o decadentismo de Abel formulado na pergunta «para quê», à qual os poetas tentaram dar resposta na poesia do final do século XIX e princípio do séc. XX – refira-se Eugénio de Castro com resposta de Fernando Pessoa e o poema «Para quê» de Afonso Lopes Vieira. Abel queria descobrir o sentido oculto da vida, contudo, a isso, já Pessoa respondera: «mas o sentido oculto da vida é não ter a vida sentido oculto nenhum». Enquanto Silvestre defende a utilidade da acção, Abel responde com Fernando Pessoa: «Queriam-me casado, fútil e tributável?», para referir a gratuitidade da poesia em geral e da pessoana em especial (267). Dir-se-ia que o autor aprecia essa poesia como arte, mas, para a sua arte, opta pela utilidade, pela escrita defensora da ideologia socialista, já esboçada neste romance pela voz de Silvestre, herdeiro dos livros de outro Abel, o falecido Abel Nogueira, socialista autodidacta. A consciência da inutilidade é apresentada como o calcanhar de Aquiles do jovem Abel.
  1. «De Espanha nem bom vento nem bom casamento»: apresenta-se o casal infeliz do português Emílio com a espanhola Cármen, cujas falas são escritas em castelhano, mostrando domínio dessa língua por parte do autor. A confirmação nesta narrativa do aforismo não pode deixar de despertar um sorriso no leitor de hoje, por saber que Saramago encontrou o amor e a felicidade junto da espanhola Pilar.
  2. A construção do vocativo: «Mas, oh, homem, quem te diz que não é o caso do senhor Morais?» (p. 252) e «oh, sociedade» (p.272) – aquele «oh» deveria ser o ‘ó’ do vocativo. E ficaria: ‘Mas, ó homem,’, ‘ó sociedade’.
  3. Como leitora de Saramago aprecio muito o processo de desconstrução das expressões feitas. Acontece que neste segundo romance dos longínquos anos 50, Saramago já desfaz a expressão  «cortar as pernas» (p.255), distanciando-se através do olhar de um estrangeiro imaginário que estivesse a ouvir e a ver a cena.
Conclusões:
  1. Tal como nos romances seguintes, Saramago revela um extraordinário poder de observação na descrição dos ambientes e das personagens..
  2. Exemplar tratamento do universo masculino e feminino nos anos 50:
    1. os homens ou mulheres ‘homadas’ preocupados com o dinheiro e as mulheres prestando-lhes contas quer estejam ou não em dependência económica.
    2. Os casais desavindos em urgência de divórcio, antes que pratiquem um crime.
    3. O papel do amor autêntico capaz da transfiguração em personagens com vidas úteis, pautadas pela construção esperançosa de um mundo melhor.
    4. A paternidade e a maternidade apresentadas como estragadoras do filho (Henrique) ou das filhas (Lídia e Maria Cláudia) – relação complicada entre pais e filhos, talvez, por isso, a referência à obra Os Irmãos Karamazov.
  1. A importância dos media nos anos 50:
    1. A rádio na família de Adriana para a música clássica; na família Anselmo para música ligeira, fado e noticiário.
    2. A importância do jornal para o sapateiro, que o lia de ponta a ponta, e para Anselmo, a quem interessava sobretudo para a estatística do futebol.
    3. A importância do livro e das bibliotecas: a sabedoria, a cultura geral, a citação sobretudo de Fernando Pessoa, mas também de Shakespeare. A influência da obra literária para o autoconhecimento – o caso de Isaura com A Religiosa de Diderot.

Apreciei deveras a obra. Nascida em 1944, considero Clarabóia um belíssimo retrato social com a brecha necessária para o amor e a esperança.O prémio está em amar, transfigurar e construir na esperança de que o mundo venha a ser melhor. Veja-se para terminar o pequeno excerto assinalado na contracapa, tradutor do ideal do futuro prémio Nobel:
«- Vivemos entre homens, Ajudemos os homens.
- E que faz o senhor para isso?
- Conserto-lhes os sapatos. Já que nada mais posso fazer agora

Maria José Domingues