domingo, 6 de setembro de 2015

Uma Abelha na Chuva – «uma reactualização da novela camiliana»?



Em «Surto e evolução do neo-realismo», secção da «7ª Época – Época Contemporânea», da autoria de Óscar Lopes, em História da Literatura Portuguesa, o autor, laconicamente, afirma apenas «que Uma Abelha na Chuva concentra a sua narração incisiva numa reactualização da novela camiliana».
Sobre tal assunto impôs-se a reflexão comparativa entre a suprema novela romântica camiliana Amor de Perdição e a dita «reactualização» na obra referida de Carlos de Oliveira, um neo-realista.
De imediato, surge o núcleo dramático do par amoroso como passível de aproximação pela transgressão envolvente: a desobediência ao pai por parte da filha. De facto, a personagem Teresa de Amor de Perdição e a personagem Clara de Uma Abelha na Chuva desobedecem à autoridade paterna. Essa transgressão será punida com a morte dos dois pares amorosos, sendo o algoz, direto ou indireto, o próprio pai das personagens femininas.
No caso de Uma Abelha na Chuva, temos ainda um outro par, o desamoroso, Maria dos Prazeres de Alva e Álvaro Silvestre, tendo a filha obedecido ao pai na aceitação do casamento sem amor, para resolver os problemas financeiros da família de Alva. Daí resulta o conflito matrimonial da narrativa principal, na qual encaixa o drama do par amoroso.
Parece evidente que nas duas obras os autores refletiam e punham em causa o poder paternal sobre as filhas, em vigor quer em 1862 quer em 1954. A luta pela libertação da mulher seria então um dos motes das duas obras, separadas quase por um século.

Verifique-se também aquilo que separa as duas obras em questão.

Na novela camiliana, Teresa e Simão pertencem à mesma classe social, contudo, as duas famílias estão em pé de guerra, tal como estavam os Capuletos e os Montecchios, em Romeu e Julieta de Shakespeare. Em Amor de Perdição, é sobre Teresa que a imposição paterna desencadeia a oposição absoluta à realização do amor com Simão Botelho, conduzindo este ao crime, à respetiva punição de desterrado, facto que levará não só o par amoroso à morte, mas também o terceiro elemento amoroso, a filha do povo - Mariana.

Em Uma Abelha na Chuva, o casal Silvestre, unido, a contragosto de Maria dos Prazeres, pelo casamento, vive a luta de classes no seu cotidiano: um conflito permanente entre a nobreza e a pequena burguesia rural e comercial, representada pelo marido. O desprezo da classe mais alta pela mais baixa está perfeitamente retratada nas relações do referido casal, mas também nas relações da burguesia com o povo - o domínio de Álvaro Silvestre sobre António Oleiro, o abstencionismo do grupo do serão perante o crime e o desprezo pela morte de Jacinto em confronto com a valorização do estilhaçar da janela da casa dos Silvestre.
A revolta dos humilhados também está presente na obra. Álvaro Silvestre destrói os quadros da família nobre da esposa num ato de rebeldia, expulsando-os, assim, da sala de sua casa. O cocheiro Jacinto, trocista, conta a Clara os olhares lascivos lançados sobre ele por Maria dos Prazeres, e os dois riem-se dela – diálogo ouvido por Silvestre e que vai conduzir à morte de Jacinto. Poder-se-á inferir que, para além de ciúme, também existe a humilhação de classe a incentivar o desejo da morte do cocheiro. Finalmente, depois de se saber da morte de Jacinto, alguém de entre a multidão, talvez o sacristão, apedreja a janela. A este ato é dado grande valor pelos críticos literários, uma vez que, na obra, simboliza a manifestação primordial, naquela comunidade, da rebelião popular.

Atendendo às caraterísticas explanadas acerca de Uma Abelha na chuva, sobressai a questão social com o dinamismo impresso pela luta de classes, resultado da opressão da classe dominante sobre os dominados. A expressão desse conteúdo com vista a consciencializar o leitor é um dos objetivos da escola neo-realista, que a referida obra de Carlos de Oliveira cumpre. Não era esse o objetivo da obra romântica, por isso, essa questão não entra em Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco.

Longe do romantismo, a obra de Carlos de Oliveira também se afasta do primeiro neo-realismo praticado por Alves Redol, que, acerca de Gaibéus (1939) – a primeira obra neo-realista -, afirmara:

“Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo, Depois disso, será o que os outros entenderem...”

Pelo contrário, a Carlos de Oliveira,  na construção de Uma Abelha na Chuva, interessa tanto o conteúdo como a forma da obra literária, vista como arte maior.

6 de setembro
Maria José Domingues