Em «Surto e evolução do neo-realismo», secção da «7ª
Época – Época Contemporânea», da autoria de Óscar Lopes, em História da
Literatura Portuguesa, o autor, laconicamente, afirma apenas «que Uma
Abelha na Chuva concentra a sua narração incisiva numa reactualização da
novela camiliana».
Sobre tal assunto impôs-se a reflexão comparativa entre
a suprema novela romântica camiliana Amor de Perdição e a dita
«reactualização» na obra referida de Carlos de Oliveira, um neo-realista.
De imediato, surge o núcleo dramático do par amoroso
como passível de aproximação pela transgressão envolvente: a desobediência ao
pai por parte da filha. De facto, a personagem Teresa de Amor de Perdição
e a personagem Clara de Uma Abelha na Chuva desobedecem à autoridade
paterna. Essa transgressão será punida com a morte dos dois pares amorosos,
sendo o algoz, direto ou indireto, o próprio pai das personagens femininas.
No caso de Uma Abelha na Chuva, temos ainda um
outro par, o desamoroso, Maria dos Prazeres de Alva e Álvaro Silvestre, tendo a
filha obedecido ao pai na aceitação do casamento sem amor, para resolver os
problemas financeiros da família de Alva. Daí resulta o conflito matrimonial da
narrativa principal, na qual encaixa o drama do par amoroso.
Parece evidente que nas duas obras os autores refletiam e
punham em causa o poder paternal sobre as filhas, em vigor quer em 1862 quer em
1954. A luta pela libertação da mulher seria então um dos motes das duas obras,
separadas quase por um século.
Verifique-se também aquilo que separa as duas obras em
questão.
Na novela camiliana, Teresa e Simão pertencem à mesma
classe social, contudo, as duas famílias estão em pé de guerra, tal como
estavam os Capuletos e os Montecchios, em Romeu e Julieta de
Shakespeare. Em Amor de Perdição, é sobre Teresa que a imposição paterna
desencadeia a oposição absoluta à realização do amor com Simão Botelho, conduzindo
este ao crime, à respetiva punição de desterrado, facto que levará não só o par
amoroso à morte, mas também o terceiro elemento amoroso, a filha do povo -
Mariana.
Em Uma Abelha na Chuva, o casal Silvestre, unido,
a contragosto de Maria dos Prazeres, pelo casamento, vive a luta de classes no
seu cotidiano: um conflito permanente entre a nobreza e a pequena burguesia rural
e comercial, representada pelo marido. O desprezo da classe mais alta pela mais
baixa está perfeitamente retratada nas relações do referido casal, mas também
nas relações da burguesia com o povo - o domínio de Álvaro Silvestre sobre
António Oleiro, o abstencionismo do grupo do serão perante o crime e o desprezo
pela morte de Jacinto em confronto com a valorização do estilhaçar da janela da
casa dos Silvestre.
A revolta dos humilhados também está presente na obra.
Álvaro Silvestre destrói os quadros da família nobre da esposa num ato de
rebeldia, expulsando-os, assim, da sala de sua casa. O cocheiro Jacinto,
trocista, conta a Clara os olhares lascivos lançados sobre ele por Maria dos
Prazeres, e os dois riem-se dela – diálogo ouvido por Silvestre e que vai
conduzir à morte de Jacinto. Poder-se-á inferir que, para além de ciúme, também
existe a humilhação de classe a incentivar o desejo da morte do cocheiro.
Finalmente, depois de se saber da morte de Jacinto, alguém de entre a multidão,
talvez o sacristão, apedreja a janela. A este ato é dado grande valor pelos
críticos literários, uma vez que, na obra, simboliza a manifestação primordial,
naquela comunidade, da rebelião popular.
Atendendo às caraterísticas explanadas acerca de Uma
Abelha na chuva, sobressai a questão social com o dinamismo impresso pela luta
de classes, resultado da opressão da classe dominante sobre os dominados. A
expressão desse conteúdo com vista a consciencializar o leitor é um dos
objetivos da escola neo-realista, que a referida obra de Carlos de Oliveira
cumpre. Não era esse o objetivo da obra romântica, por isso, essa questão não
entra em Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco.
Longe do romantismo, a obra de Carlos de Oliveira também
se afasta do primeiro neo-realismo praticado por Alves Redol, que, acerca de Gaibéus
(1939) – a primeira obra neo-realista -, afirmara:
“Este romance não pretende ficar na
literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano
fixado no Ribatejo, Depois disso, será o que os outros entenderem...”
Pelo contrário, a Carlos de Oliveira, na construção de Uma Abelha na Chuva,
interessa
tanto o conteúdo como a forma da obra literária, vista como arte maior.
6 de setembro
Maria José Domingues