segunda-feira, 13 de junho de 2016

Alberto Caeiro - «Da mais alta janela da minha casa/ Com um lenço branco digo adeus/Aos meus versos que partem para a humanidade»



Homenagem a Fernando Pessoa no seu 128º aniversário

Alberto Caeiro
XLVIII - Da mais alta janela da minha casa

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.


s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (3ª ed. 1974. p.69-70).
 - 71.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.

Carta à memória de Fernando Pessoa

«Carta à memória de Fernando Pessoa», em Presença, n.º48, Julho de 1936, de Carlos Queirós[1], (extractos):

[Com a publicação desta carta, pretende-se homenagear Fernando Pessoa, na data do seu 128º aniversário. As notas de rodapé são da responsabilidade do blogue.]
I
Meu querido Fernando: Imagina você a falta que nos faz? Ainda há poucos dias, numa rua onde parámos a falar de si, o Almada me disse: O Fernando faz muita, muita falta! Na mágoa deste desabafo, pareceu-me reconhecer a mesma inconfessada sensação que a sua ausência, algumas vezes, me dá: a de ter feito uma partida que os seus amigos não mereciam. Quase apetece acusá-lo, gritar à sua memória: Você não tinha o direito de nos deixar tão cedo!
Mas o seu mestre Caeiro[2] é quem tinha razão:


Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

 
Na verdade, a fixação da nossa presença física, seja em que forma for, é o que tem menos importância; e vem daí, por certo, o enorme esforço que tenho de fazer para recordar a sua. Não sei que névoa me afasta da próxima realidade dela. É uma imagem embaciada, talvez pela comovida lembrança da sua delicadíssima discrição. O Fernando passou por aqui em bicos de pés, coerente com o conselho dado às companheiras por uma das veladoras do seu "Marinheiro": « – Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes.»

Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes.
Em nada do que você usava se reflectia a fútil premeditação de exibicionismo. No entanto, toda a sua vulgaríssima indumentária, desde o chapéu aos sapatos, era, não sei porquê, espantosamente diversa da de toda a gente. Sei lá que tinha? Uma expressão inconfundível, um jeito especialíssimo, dado por si, sem querer.
Os seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de correcção, acompanhavam sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com todas as palavras. De quando em quando, pequenos risos (risinhos, é que diz bem), de criança triste a quem fazem cócegas, vinham festejar, alegremente, as descobertas do espírito - suas ou alheias, porque o Fernando não sabia reprimir o prazer que lhe causava a graça ou a simples alegria dos seus amigos.
A sua ironia, também de qualidade sui generis, era aguda, intencional, oportuna, mas sempre delicada e transparente, sem crueldades felinas. Nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ela, nem assisti a que fizesse, na susceptibilidade de quem quer que fosse, a mais leve arranhadura. Era como aqueles gatos de boa raça que metem as unhas para dentro, quando brincam...
No acaso dos diálogos - aos quais nunca impunha, ditatorialmente, a direcção do seu espírito -, esperava que coubesse aos outros a sua vez de falarem para os escutar com atenção. Porém, no seu olhar, lia-se qualquer coisa parecido com o receio de que o supusessem perscrutador.
O seu discreto temperamento ajudava-nos pouco o desejo de lhe fazermos qualquer pergunta mais familiar, mais íntima. Como inquirir-lhe da saúde, sem ter medo de magoá-lo em qualquer parte da alma? Era difícil, sabe? Quanto mais perguntar-lhe: Que faz esta noite? Aparece amanhã? Chegava a ter a impressão de devassar-lhe a intimidade, quando o encontrava, às vezes, na rua...
Quando ia só, ou como se o fosse, apesar de não ser o que se chama, em linguagem doméstica, um abstracto ou distraído (pois a sua atenção, por mais repartida que estivesse, era sempre suficiente para apreender o que se passava à sua volta), costumava aflorar aos seus lábios estreitos o sorriso de quem lê uma carta confidencial, amiga e interessante.
Nada em si afastava quem o procurasse; antes pelo contrário - a não ser, a alguns dos mais orgulhosos ou tímidos dos seus amigos, a certeza de que você era incapaz, sem fortes razões justificadas, de procurar fosse quem fosse.
O seu sentimento de intimidade não era fruto de egoísmo nem de vulgar misantropia: era-o, sim, do profundo respeito que o Fernando tinha por si próprio e pelo que nos outros estimava que também fosse respeitável. Daí, a impossibilidade de abrir à curiosidade dos seus mais assíduos companheiros uma fresta por onde pudessem espreitar a sua vida sentimental:
«Não há quem saiba se eu gosto de ti ou não porque eu não fiz de ninguém confidente sobre o assunto.» Esta frase, cujas palavras sublinhadas o foram por si, é de uma das primeiras cartas que o Fernando dirigiu àquela a quem escreveu nove anos mais tarde: «... Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento.»
As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e - o que é extraordinário - como se não fosse poeta. Na evidente espontaneidade dessas cartas, que o Destino quis pôr nas minhas mãos, não se encontra um vestígio de premeditação formal, de voluntária intelectualidade.
Que admirável exemplo de humana integração no organismo da Vida! Lê-se qualquer delas - escolhida, ao acaso, entre as dezenas que a totalidade constitui - e logo nos ocorre esta pergunta, forrada de espanto: Como teria sido possível ao mais poeta dos homens e ao mais intelectual dos poetas portugueses (e, aqui, a palavra portugueses tem uma importância muito especial) libertar a tal ponto o coração da literatura?! (...)
Boa noite, Fernando. Não preciso dizer-lhe que sinto, nem por que sinto saudades suas. Mas não lhe peço que volte. Que temos aqui, que possa interessá-lo ou, o que é mais triste, merecê-lo? Não temos nada, bem sabe, de que você não conheça já melhor do que nós, o vazio sem fundo, a mentira sem remédio, a trágica inutilidade...
O Amigo, de Carlos Queiróz

Fonte dos textos transcritos: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/cqueiros.htm


[1] «José Carlos Queirós Nunes Ribeiro (1907-1949) nasceu em Lisboa e faleceu em Paris. Frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra, tendo colaborado em várias revistas, tais como Presença, e Contemporânea, com poesias e artigos de crítica literária. Recebeu em 1935 o Prémio Antero de Quental do Secretariado de Propaganda Nacional com a obra Desaparecido. Foi director das revistas Panorama (1941) e Litoral (1944). A amizade de Carlos Queirós com Fernando Pessoa levou a que este último tivesse uma relação amorosa com (...) Ofélia Queirós. Obras: Desaparecido (1935), Breve Tratado de Não-Versificação (1948), Homenagem a Fernando Pessoa (ensaio-1936). Toda a sua poesia se encontra no volume póstumo Poesia de Carlos Queirós (1966)»


[2]  O poema citado pertence a «O Guardador de Rebanhos», «Da mais alta janela da minha casa», com o nº XLVIII,.