– Se a culpa morre solteira, quer dizer que ela não casa?
– Eu acho que a culpa ninguém a quer, mas espera-se que ela case com o culpado.
– Casa no civil ou no religioso?
– Sei lá. Nos dois?
– Pois é. Tenho andado a pensar de quem é a culpa de tanto crime de tráfico de influência
– Ah, sim?! E que concluíste?
– Mais ou menos como José Saramago nos tem andado a explicar: a culpa é da religião.
– Então porquê?
– Imagina a situação da promessa a S. Judas Tadeu para passar no exame. O aluno até sabe pouco, mas promete-lhe algo para que ele interceda junto de Deus, para que faça o milagre de o passar. Se passar, terá de cumprir a promessa. Mas pior é quando isso acontece num concurso para aceder a um emprego, passando a perna a outros. E nas promessas vai-se envolvendo toda a corte celestial.
– Mas que interessa isso: milagres são milagres. E isso não se discute.
– Mas a promessa tem que se cumprir no caso do pedido ter sido concedido. Ele é o cordão de ouro para a santa, o dinheiro para o santo, etc.
– Parece-te que do hábito religioso se passou à influência do "padrinho", para interceder por alguém para que o "afilhado" alcance alguma coisa.
– Pensando melhor, já não sei qual terá acontecido primeiro: se o civil, se o religioso.
– Os dois devem ter andado a par. É a condição humana: o ser humano precisa, sente-se inseguro, pede o favor e, se alcança o pretendido, paga. O processo é muito antigo.
– De facto, estou a lembrar-me que, no antigamente, na minha aldeia, a resolução de problemas que transcendia o indivíduo se fazia com cunhas e o pagamento era dar o melhor que se tinha: as trutas, as perdizes, etc. Aos santos ainda era pior, porque havia que enunciar a dádiva no momento da promessa, de acordo com o grau de dificuldade do problema a resolver. E ai de quem não cumprisse o prometido! As histórias dos castigos dos santos eram contadas como notícias reais.
– Falaste nas trutas e eu pensei nos robalos noticiados. E repara na frase da primeira página do DN do dia 17 deste mês: «Se ajudar amigos é tráfico de influências, eu faço-o todos os dias».
– Ajudar os amigos não é crime, desde que não prejudique ninguém. Crime é prejudicar.
– Mas, afinal, o que está a ser julgado?
– Penso que é a mentalidade portuguesa da cunha.
– Ainda bem, já não é sem tempo, para ver se a mudança dos comportamentos inerentes acontece.
– Isso seria óptimo. Se não fosse a hipocrisia dos acusadores, eu teria esperança.