AMOR DE Perdição - uma questão de género: Narratário/ Narratária
Por Maria José Domingues
Reler
Amor de Perdição foi um exercício complexo, em confronto com a leitura
de superfície da adolescência.
A
obra não se cinge à história dos amores de Teresa e Simão. Nela está inscrito o
real de Camilo, que disso faz jus. Assim, real e ficção entrelaçam-se num
registo memorialista explícito no subtítulo, Memórias de uma família,
que o autor afirma ser a sua, ainda que tenha usado o determinante indefinido a
anteceder família.
Dois
tempos se cruzam no romance. O tempo da narrativa decorre entre 1779, ano
situador de Domingos Botelho como juiz de Cascais, e 1807. Dentro deste
período, está o tempo da história dos amores de Teresa e Simão, desde as férias
grandes de 1802 até 1807, ano em que Simão partiu para a Índia e o par amoroso morreu.
O tempo da narrativa cruza-se com o tempo do discurso narrativo construído por
Camilo em quinze dias do ano de 1861, enquanto prisioneiro da cadeia da Relação
do Porto. Dois tempos politicamente diversos pelo triunfo do liberalismo e do constitucionalismo
liberal.
Pensando
na sedução do romance do século XIX e procurando uma justificação, talvez a tenha
encontrado no artigo de Barcellos, «Masculinidade e modernidade em Camilo
Castelo Branco»[1].
De
facto, como afirma Barcellos, Camilo assume conscientemente um narrador
amalgamado ao autor, logo, masculino, com um ponto de vista masculino, numa
narrativa que se oferece às leitoras. Uma oferta masculina para um narratário
feminino veicula um desejo de agrado e conquista, muito embora a dedicatória de
Amor de Perdição se dirija a Fontes Pereira de Melo, com texto
justificativo pela oferta.
Na
Introdução, os vocábulos leitor, leitora aparecem, uma primeira vez, a
par, para, depois, surgir no penúltimo parágrafo a definição da mulher, considerada pelo autor a
leitora da sua obra, «a carinhosa amiga de todos os infelizes», e para, no último
parágrafo, dissertar sobre as reações femininas à leitura da obra: as lágrimas
de compaixão e o ódio pelos homens «feitos bárbaros, em nome da sua honra».
Temos, por conseguinte, em Amor de Perdição, um romance do género
masculino, endereçado preferencialmente ao género feminino.
Esse
acontecimento literário surge como natural, tendo em conta a cultura burguesa da
época numa sociedade estruturada com base na cidadania masculina, que dava ao homem
acesso à política, à finança, à universidade e o instituía como ‘cabeça de
casal’, podendo nessa condição comportar-se como um ditador na defesa de
princípios ou da propriedade. São exemplos disso os dois chefes de família:
Domingos Botelho e Tadeu de Albuquerque.
Por
sua vez, à mulher burguesa são negados os direitos de escolha, de acesso à
universidade, de trabalho remunerado, nomeadamente o direito de se apresentar
como escritora. É educada para ser a flor do lar e da sociedade.
Confronte-se
o acima afirmado com a apresentação dos filhos de Domingos Botelho: «Manuel, o
mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e frequenta o segundo ano
jurídico. Simão, que tem quinze anos, estuda humanidades em Coimbra. As três meninas
são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe». Enquanto eles constroem o
saber para exercerem uma profissão, elas são o ‘jardim celeste’ da mãe.
Conclui-se
que a mulher da média e alta sociedade teria tempo suficiente para a leitura de
novelas e romances. Eis então o público a quem a obra se destina
preferencialmente.
Sendo
a obra literária encarada naturalmente como masculina, o autor não precisaria
de trabalhar cuidadosamente esse género, sentido como natural. Quem teria de
ser cuidadosamente trabalhado e chamado à colação seria o género feminino,
sobre o qual o narrador/autor exercia a sedução, considerando a mulher burguesa
a ‘narratária’ por excelência.
Esta
era ainda a perspetiva de Camilo para a receção da sua obra, em 1861, num tempo
em que Madame Bovary de Flaubert já era obra lida desde 1856, na qual
o autor apresenta o adultério e o suicídio de Emma por culpa da educação e da
leitura excessiva de romances e novelas sentimentais. Com problemática afim, em
1878, Eça de Queirós publica O Primo Basílio. Efetivamente, o romance
sentimental evoluía para o realismo, escola que pretendia pintar a realidade
com arte «bela, justa e verdadeira», ensinando e
corrigindo a sociedade, conforme Eça defendera na conferência «O
Realismo como nova expressão da arte», em 12 de Junho de 1871.
Março,
mês da MULHER
[1] «Masculinidade
e modernidade em Camilo Castelo Branco», in Leituras do Desejo em Camilo
Castelo Branco, organização de Sérgio Guimarães de Sousa, José Cândido de
Oliveira Martins, pp. 97-114,
Opera Omnia, Guimarães, 2010.