A questão de género em Mar me quer de Mia Couto
1.
A beleza feminina de Luarmina tratada
como um mal maior
A beleza de Luarmina fez morrer sua mãe de desgosto. Maldizia
a beleza da filha e certa noite tentou golpear-lhe o rosto. A razão do penar da
mãe era a loucura dos homens «que abutreavam em redor da casa» por causa da
beleza da filha. Depois da morte da mãe, Luarmina foi enviada para a Missão:
«Havia que arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro». Por fora, foi
acumulando gordura «por razões de angústia», para «esconder a tristeza, ou seria
para esconder a beleza pecaminosa? Este é um conceito presente na mulher
serpente demoníaca que enfeitiça o homem – pobre homem frágil, que as religiões
protegem. Por que o protegem? Por ser ele o que faz e desfaz as leis e as
religiões? São os homens que estão no centro do poder religioso. O poder
religioso é masculino. Deus, Jeová, Alá, ainda que possam surgir sem corpo, são
do género masculino e representados como tal.
A beleza de Luarmina, que enfeitiçara Agualberto Salvo-Erro,
caiu à água transformadora do destino dos apaixonados para sempre. É como se
Luarmina renascesse na figura de mulher gorda e engordurada, regressada ao
local onde o seu amado vivera, mas depois do casal ter morrido. Contudo, existe
uma foto, a prova da sua grande beleza, que ela renega, virando a foto ao
contrário, para que Zeca, filho de Agualberto, não a observe. Apesar da
gordura, Zeca persegue-a com o seu desejo sexual que acende na sua presença e
arde em sua ausência. O poder de Luarmina está para além da beleza.
2.
A fidelidade da mulher esposa (de
Agualberto) e mãe (de Zeca Perpétuo)
Esta mulher não tem nome, apenas é nomeada como «minha mãe».
Ela sabia dos amores de seu marido com a bela jovem do seu barco, mas virava as
costas ao mar, mesmo quando o filho insistia para que ela visse. Ela ocupava-se
com os trabalhos do sustento e nem queria ver nem falar sobre o assunto. No dia
do afogamento da amada, Agualberto passou o dia mergulhado no mar,
procurando-a. Quando todos o julgavam perdido, ele sai das águas e sua mulher
«avançou e se perfilou perante o homem». Ela enfrentava-o e olhava-o de baixo a
cima, mas, quando chegou aos olhos, gritou, pois os olhos dele tinham ficado da
cor do mar. Depois de ele se adentrar, ela perguntava ao filho de onde em onde:
«Essa mulher, outra, será mesmo que morreu de vez?». Todos achavam que sim,
exceto Agualberto, que lhe levava mantimentos ao fundo do mar, até os olhos
perderem completamente a cor. Depois abandonou a casa, deixando a mulher
inconformada fazendo de conta junto do filho que ele viria mais logo ou então
que estava longe e era preciso que Zeca lhe escrevesse. Revela-se nesse ponto
da narrativa o valor da escrita. A mãe quer que seu filho aprenda as letras com
o padre na missão. Também Deus escrevera uma carta no céu estrelado e ela
espera que seu filho venha a ser capaz de lha ler.
Concluo que esta é a mulher ideal para a tradição moçambicana
ou portuguesa. Ela sofre, espera e cala, a pensar no bem de seu filho.
3.
A dança feminina – as
« que dançam ficam sem corpo»
3.1.
Maria Bailarinha
A história desta
personagem surge a propósito do convite para dançar de Zeca a Luarmina. Maria
Bailarinha dançava a pedido ou a moeda, de tal forma que «dava tontura ao
mundo» e desmiolava os homens. Um dia, as suas vestes pegaram fogo e ela
continuou a bailar até que. a um leve toque, se desfez em cinza.
3.2.
Henriquinha – a
mulher gaivota
Zeca descreve sua mulher, Henriquinha, a Luarmina como tendo
sido uma surpresa. Considerava-a uma mulher «compostinha, sem desfeiação seja
em corpo seja em espírito», mas apanha-a em mentira de missa dominical, tempo
aproveitado para uma dança desnudada junto do precipício marinho, no cimo da Duna
Vermelha. Entre o desgosto e o deslumbramento, Zeca empurra-a e ela desaparece: «Empurrei-a. Não
escutei nem grito, nem baque do tombo […] apenas a estridência de gaivota
roçando o barranco». Mais uma mulher desaparecida nas histórias de vida de
Zeca. Neste caso, houve crime de assassinato, mas, como não havia corpo, o
crime de Zeca ficou impune. Todavia, os remorsos estavam dentro de si e
manifestavam-se na perseguição às gaivotas, cujo pio o enervava, levando-o a apedrejá-las.
Dona Luarmina não entendia isso num homem do mar «a abarrotar coração». E cria
uma gaiola para gaivotas, às quais as crianças vinham trazer peixe. O ruído do
«gaivotame» não deixava Zeca sossegar e ele comete um outro crime: chega fogo à
gaiola. No dia seguinte, visita Luarmina para se desculpar e conta-lhe a
história do assassinato de Henriquinha, para explicar o seu horror ao grito das
gaivotas. Luarmina leva-o até à gaiola, onde jaziam as aves queimadas exceto
uma, «toda branca, rendilhando repentinos voos», que ele liberta, talvez libertando-se
do seu remorso por acreditar que Henriquinha se metamorfoseara naquela gaivota.
Neste jardim de Mar me quer, cheirando a mar e a
pétalas de flores mortas, nenhuma das mulheres constrói por suas mãos o seu
destino. Elas são empurradas pela sorte ou pelo homem. A exceção será Luarmina que,
depois da metamorfose, com uma profissão, e não se entregando a Zeca Perpétuo,
sobreviveu à narrativa.
A beleza e a dança surgem como males sociais. A mulher ‘bem
social’ para o homem é a anónima que ‘faz conta’ que não vê os erros do homem e
que, no final da vida dele, o deixa fitar seus olhos, para que morra em paz.
E a sabedoria traduzida em epígrafes pertence ao homem – ao avô
Celestiano. Será que o culto dos antepassados abrange apenas o género masculino?