Maria Ondina Braga, Vidas Vencidas – Clube de
Leitura
Como leitores, reflitamos por momentos no processo
de criação e de comunicação literárias. É certo que o autor constrói a obra,
mas, sem o leitor, a obra não se cumpre. Logo, os leitores são aqueles que
completam o circuito comunicativo da obra literária.
No que respeita ao processo de criação e comunicação
literárias, a autora, Maria Ondina Braga, que escreve na primeira pessoa – a
escrita do eu –, vai dando alguma informação sobre esse processo, no interior
da sua obra. Em Vidas Vencidas[1]
estamos perante pequenas narrativas avulsas de cariz autobiográfico, em forma
de memórias, unidas pela mesma narradora autodiegética, isto é, a narradora da
história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa
história.
Quem
narra? A autora tem consciência de que o
«eu-narradora», sujeito da enunciação, é uma entidade diversa do «eu –
personagem», protagonista do passado que está a ser contado, uma vez que a
narradora é mais velha e distante dos acontecimentos que conta e a personagem
vive esses momentos, como menina, adolescente ou adulta. A este respeito, Maria
Ondina explica o seu processo criativo, em Estátua de Sal, p.77: «Quem fala
é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um
atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir». Escrita
dolorosa, a escrita do eu - “Isto de contar a vida é sempre mais triste
que vivê-la”- terá afirmado.
Então,
por que escreve?
Ao longo de Vidas Vencidas vai desvendando a razão do seu escrever:
Ao longo de Vidas Vencidas vai desvendando a razão do seu escrever:
- Pela necessidade de renascer: «Sou como a fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que, do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias» (p.86).
- Por herança: «penso que dela [de minha mãe] herdei o jeito de contar histórias. Meio verídicas, meio fantásticas» (p.23).
- Por força das histórias familiares orais sobre ouvintes: «Um dia, comentaram eu ter na família personagens de romance. Devido a isso, decerto, é que me ponho agora aqui a contar obscuros casos» (p.21).
- Por uma promessa feita a si própria: «a de me encontrar com os meus mortos. Meus mortos, meus maiores» (p.137).
- Por perseverança no cumprimento de máximas significativas: «escrita rememorativa», não a suspende, não a risca, «creio que é devido a uma frase do professor de Latim no liceu que frequentei em Braga, […] Sá de Miranda o seu nome. […]de Pôncio Pilatos, a tal frase […] Quod scripsi, scripsi» (p.136).
- Penso que, para além de motivos não apontados, escreve também pela mesma razão por que partira de Braga: «por uma prova que a mim mesma impus, uma porfia…» (p.67). Quanta coragem foi necessária a uma mulher portuguesa e bracarense daquela época realizar a odisseia e a demanda da escrita do eu.
Para quem escreve?
Maria Ondina pergunta-se para
quem inventa as histórias – ela sente a necessidade do leitor. A receção da
mensagem faz parte do processo comunicativo.
Valorizando a receção da obra pela leitura
silenciosa e oral e pela recitação, no texto «A Mãe», declara que «jamais
deixaria de ler histórias ou inventá-las para quem quer que fosse». Aqui está
formalizada a necessidade da existência do leitor. De seguida, surge a
dúvida: «E se ninguém me lê?». E responde que inventará histórias nem
que seja «para a minha própria sombra». E pergunta-se: «Mas que queria
dizer “para a minha própria sombra?”. Para mim mesma, naturalmente. No caso de
não ter ninguém capaz de me ouvir, capaz de me ler…»; e num lamento:
«Uma coisa assim, louvado seja! Tal os cães a latir em desafio à cara completa
e mágica da Lua? Ou ao eco dos seus latidos? Como quer que fosse, uma segurança
a nossa própria sombra. Uma segurança e um segredo» (p.28).
Pode sossegar a autora, nós e
muitos outros lemos a obra, no caso, «Vidas Vencidas», na certeza de que
o processo ‘escrever para ser lido’ se vai cumprindo, desde que se publique.
Braga, 3 de Abril de 2014
Maria José Domingues
Maria José Domingues
[1] Vidas
Vencidas, Maria Ondina Braga,1998, editora Caminho.