quinta-feira, 30 de abril de 2015

«Explicação do país de Abril», segundo Manuel Alegre - de Abril de 1385 a Abril de 1974



 «Explicação do país de Abril», segundo MANUEL ALEGRE - DE ABRIL DE 1385 A ABRIL de 1974

Manuel Alegre escreve «Explicação do país de Abril», antes do 25 de Abril de 1974, na obra Praça da Canção, com 1ª edição em 1965. Curioso é notar que o poeta pré-anunciou o país de Abril nove anos antes da Revolução de Abril de 1974. Havia que encontrar a razão da profecia abrilina, ainda que se possa considerar o verdadeiro poeta capaz de antevisão e de profecia.
Pesquisando a História de Portugal, encontra-se, na Crónica d’El Rei D. João I, a revolução narrada por Fernão Lopes, tendo como ponto alto a aclamação do Mestre de Avis a Rei, nas cortes de Coimbra de 6 de Abril de 1385, sendo que esse rei, o da Boa Memória, nascera a 11 de Abril de 1357 – um rei abrilino. Mas não é tanto o Mestre que comparece na boa memória do poeta, no poema «Crónica de Abril (Segundo Fernão Lopes)», em Atlântico, de 1981, mas antes a narrativa extraordinária da sublevação do povo português, em prol da independência nacional nas páginas inesquecíveis do cronista, cruzada com a crónica da revolução do 25 de Abril de 1974.

1.    CRÓNICA DE ABRIL
(Segundo Fernão Lopes
)

A rosa a espada o Tempo a lua cheia
entre Abril e Abril memória e ato
este oculto invisível coração.
E a trote dos cavalos os blindados
(quem me acorda no meio do meu sono?)
«Lisboa está tomada». A rosa e a espada.
Subitamente às três da madrugada.

Andando o Povo levantado andando
Álvaro Pais de rua em rua: «Acudam
ao Mestre cá ele é filho d’El-rei. D.
Pedro
». Entre Abril e Abril. Memória e ato.
Verás florir as armas: lua cheia.

Saiu de Santarém o Capitão
já o Mestre matou o Conde Andeiro
e Álvaro Pais nas ruas cavalgando:
Matam o Mestre nos Paços da Rainha.

E o microfone às três e tal. E as gentes
que isto ouviam saíam pelas ruas
a ver que coisa era. E começando

a falar uns com outros começavam
a tomar armas. «Aqui Posto de
Comando»
. E soavam vozes de arruído
pela cidade. E assim como viúva
que rei não tinha se moveram todos
com mão armada. E Álvaro Pais gritando:
«Acudamos ao Mestre meus amigos
Acudamos que o matam sem porquê.»


E o rouxinol cantou. Ouvi dizer
que na torre soaram badaladas.
O doce cheiro a terra. O respirar
da amada. «E sobre cada povo (Nietzche)
está suspensa uma tábua de valores».
Verás florir o Tempo. A rosa e a espada.
Nel mezzo del camin di nostra vita.
Subitamente às três da madrugada.

E começava a gente de juntar-se
e tanta que era estranha de se ver.
Não cabiam nas ruas principais
cada um desejando ser primeiro
e todos feitos d’um só coração.

Não sei se a História tem um fio se
não tem. Mas já de Santarém partiu
o Capitão. De negro vem vestido
em cima da Chaimite. Ouves? É o trote
das lagartas. Cavalos e cavalos.

O exército da noite e seus blindados.
Ó com quanto cuidado e diligência
escrever verdade sem outra mistura.


Andando o Povo levantado andando
um Major aos seus homens perguntando:
«Adere ou não adere? É só. Mais nada
E o segundo-sargento perfilando-se:
«Há vinte anos que espero este momento

Verás florir o Tempo. E as armas de-
sabrochadas: às três da madrugada
.

Soem às vezes altos feitos ter
começo por pessoas cujo azo
nenhum povo podia imaginar.
E pois assim aveio que em Lisboa

um cidadão chamado Álvaro Pais:

«Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?»
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
Mas isto já ninguém o queria crer.

Continuidade. Descontinuidade.
E o que é rutura? E a História? Um caos de acasos.
Kairos (dizem os gregos). Conjunturas
favoráveis.
                     Verás florir as armas
.

E já o Capitão entra na Praça
andando o Povo levantado andando
apoiando a coluna quando avança
para cercar o Carmo às doze e trinta.

Traziam uns carqueja e outros lenha
alguns pediam escadas e bradavam
que viesse lume para porem fogo
e queimarem o traidor e a aleivosa.

E em tudo isto era o tumulto assim
tão grande que uns aos outros não se ouviam
e não determinavam coisa alguma
.

E o trote dos cavalos os blindados.
(Quem te acorda no meio do teu sono?)
Verás florir o Tempo: rosa e espada.
Subitamente às três da madrugada.

De cortinas corridas está o Carmo.
Da torre da Chaimite uma rajada
saltam vidros e cal da frontaria
e o tempo vai correndo sem resposta.


E não parava gente de juntar-se.

«Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?»
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
«Se está vivo mostrai-o e vê-lo-emos.»

E a gente não parava de juntar-se.
Quem fechou estas portas? perguntavam.

E já o blindado toma posição.
O Capitão olha o relógio e conta
e antes que diga três irrompem vivas.

Verás florir o Tempo: espada e rosa.


Já saiu a cavalo Álvaro Pais
já o Mestre matou o Conde Andeiro
está caído no Paço trespassado
ó Lisboa prezada venham ver
o Capitão em cima do blindado
Arraial Arraial. E então o Mestre
assomando à varanda a todos diz:
«Amigos sossegai: estou vivo e são.»

E o rouxinol cantou. Olhai as armas
desabrochadas. Cravo a cravo (ouvi
dizer). Andando o Povo levantado
.

E não vereis na crónica senão
(sem falsidade) a certidão da História.
              
Manuel Alegre, Atlântico, 1981

2.    As onze quadras do poema EXPLICAÇÃO DO PAÍS DE ABRIL de 1965 foram reduzidas a oito (a azul) pelo poeta, na revisão textual que fez para a antologia País de Abril, de 2014. O poema transcrito é o da obra Praça da Canção:

EXPLICAÇÃO DO PAÍS DE ABRIL

País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.

Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.

País de Abril fica na mágoa de o sabermos perto
e todavia rodeado de fronteiras
País de Abril tem verdes vinhas todavia
estão cercados de muros os caminhos da vindima

Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência
decretada.

País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos como veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.

País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.

Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.

País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.

Os amantes não podem de mãos dadas
encher as ruas de maçãs e barcos
amar não podem os amantes que o amor
tem estranhas sentinelas no País de Abril.

País de Abril tem estranhas sentinelas.
Todavia seus ventos ensinam aos homens
que não se pode proibir os homens de viver.
País de Abril tem ventos ilegais.

Mais ensinam que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.

Praça da Canção, 1965





Nota a posteriori: No Expresso de 1 de Abril de 2017, no futuro do texto publicado em 2015, Manuel Alegre justifica certas coincidências poéticas, nomeadamente, o poema «Romance de uma árvore à beira do caminho» em homenagem ao médico Ferreira Soares, vítima do fascismo e tio-avô de Catarina Martins: «é mais uma coisa que não se explica». A isto o texto do Expresso acrescenta: «como não se explica ter escrito sobre um país de Abril anos antes do 25 de Abril. Faz parte da magia da poesia, da sua vidência, da convicção de que "a poesia nunca erra", como disse ao abandonar o cemitério onde está sepultado o médico», a quem fora prestar homenagem no cinquentenário da obra O Canto e as armas (1967), na qual se encontra o poema.