sexta-feira, 29 de setembro de 2017

«A SINCERIDADE TRADUZIDA» DE FERNANDO PESSOA

 «A base de toda a arte é, não a insinceridade, mas a sinceridade traduzida»

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
s. d.
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
 - 236.
Escreve Pessoa: «A base de toda a arte é, não a insinceridade, mas a sinceridade traduzida»  (FP. PETCL: 267).

Essa inovação passa pela capacidade de “sentir no cérebro”, conducente à “sinceridade traduzida”, expressa em poesia, que Pessoa tanto admirava em Mallarmé, Goethe e Shakespeare (LOPES, T. R.., 1977: 240).

Em tempo de poesia dita sincera a que Mário de Sá-Carneiro chamou «natural», Pessoa continua a apresentar a sua arte poética presente em AUTOPSICOGRAFIA e mais uma vez apresentada em ISTO. Por esses poemas perpassam as divergências das opções estético-literárias que geram uma poética pessoana especial, a qual talvez possa ser clarificada a partir da teoria da «tensão Eu-Isto», aplicada por Óscar Lopes a poemas pessoanos, de acordo com um «esquema de Martin Buber», (LOPES, Ó., 1973: 649).
De acordo com essa teoria, Óscar Lopes explica que «a tensão Eu-Isto […] surge como relação entre um sujeito» (neste caso, Fernando Pessoa) «e um objecto» - a poesia da sinceridade caraterística do romantismo e do neo-romantismo e do presentismo - «que o primeiro sente como insuficientemente adequada, sendo aliás essa mesma inadequação que o faz aperceber-se de si como sujeito, […] como dinamismo de uma melhor adequação» (ibidem).
Concluiria que a obra de Fernando Pessoa se constrói e reconstrói dentro do processo de trabalho de Projeto, ultrapassando os obstáculos literários condicionadores que alimentavam o seu génio de polemizador ideológico-literário em textos dialógicos.

A IRONIA de PESSOA

Fernando Pessoa - a ironia

Escreve Óscar Lopes, em Ler e depois, que a poesia de Fernando Pessoa correspondia exatamente à necessidade sentida por ele como leitor a dado momento, pela cisão do sim ou não («ser ou não ser eis a questão» shakespeariana, tão do agrado de Pessoa), pela polifonia e pela ironia dúbia. E valoriza essa «especial ironia que vibra em cada poesia, em cada verso, mas sobretudo no conjunto das obras de Pessoa» e que considera «um momento de consciência».

E afirma Óscar Lopes: «A poesia de Fernando Pessoa é essencialmente irónica», no sentido socrático de «arte de pôr tudo em questão». A principiar pela própria sinceridade poética. Fingir e ser sincero - os dois pólos necessárias da Arte,  numa recepção de leitores dotados de inteligência e sensibilidade.

Óscar Lopes, 1969 - «Fernando Pessoa I. Um momento de consciência», in Ler e Depois crítica e interpretação literária/1,  pp.236-237, Editorial Inova Limitada, Colecção Civilização Portuguesa