O SÓ de António Nobre em Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga
Entre
António Nobre e Maria Ondina Braga, que pode haver de comum? - perguntar-se-á. Apenas
falaremos daquilo que os une. Os dois escritores enveredaram
pela escrita rememorativa do eu. Essa escolha cria problemas ao próprio eu: eu
de autor, eu-lírico, eu-narrador,
eu-personagem. Ao mesmo tempo, inaugura um discurso de devassa daquilo que o eu
guarda na memória. Por isso, há que selecionar e transfigurar o real
memorizado.
Creio que, para Maria Ondina, António Nobre foi um ótimo companheiro, na sua solidão e no preenchimento dela pela construção dos textos que se transformaram em obra.
As epígrafes do SÓ introduzem textos de Maria Ondina em Vidas Vencidas.
O texto «Luiza», um texto dramático, tem como epígrafe uma estrofe do poema «António»:
Creio que, para Maria Ondina, António Nobre foi um ótimo companheiro, na sua solidão e no preenchimento dela pela construção dos textos que se transformaram em obra.
As epígrafes do SÓ introduzem textos de Maria Ondina em Vidas Vencidas.
O texto «Luiza», um texto dramático, tem como epígrafe uma estrofe do poema «António»:
A Prima doidinha por montes andava,[1]
À Lua, em vigília!
Olhai-me, Doutores! há doidos, há lava,
Na minha família...
À Lua, em vigília!
Olhai-me, Doutores! há doidos, há lava,
Na minha família...
Esta epígrafe dá força psicológica, para que se escreva a
história de Luiza, pois em todas as famílias houve e há situações
constrangedoras, mas que precisam de ser contadas. No caso da loucura da tia
Luiza, criada pela avó, bisavó da narradora, estamos perante a ditadura familiar de
uma mulher mais velha e poderosa sobre uma outra mais nova e frágil. Situação
geracional muito frequente, mesmo entre mães e filhas. O cerne da situação
narrada aponta para uma realidade social frequente até, pelo menos, meados do
século XX. Refiro-me à colocação de filhos em casa de avós, de padrinhos, de
tios, de famílias abastadas, por casais com muitos filhos e com dificuldades
económicas. Esta deslocação do seio familiar revela-se dramática no caso da
personagem Luiza e tem como consequência posterior a sua loucura.
No texto «Rua de S. Vicente», a narradora descreve essa rua a
caminho do liceu e a caminho do cemitério, recordando-a, no quarto interior da
sua memória, como «uma rua soturna» de «casas funerárias, enterros, homens e
mulheres de preto». Maria Ondina escolheu para epígrafe os seguintes versos de
António Nobre, da fala da Esperança, no poema «À Toa»:
Morri, irmãos! Mas lá ficaram
minhas vestes,
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.[2]
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.[2]
Com
esta epígrafe, a tónica é colocada naquilo que se deixa, depois da vida
vencida. As vestes de que fala António Nobre seriam os seus versos, que ele
considerou os mais tristes que se fizeram em Portugal. Também Maria Ondina
escreve melancolicamente, por vezes, com a tristeza que flui pela sua rua de S.
Vicente com três paragens: a do liceu, de que não guarda boas recordações; a do
cemitério, no Dia dos Fiéis Defuntos, menos triste, com «passeata pelo
campo-santo» a ver as fotografias e a ler os epitáfios; a da Doçaria de S.
Vicente, em prova de vida, saboreando os lêvedos.
O
percurso da casa da Avenida Central até ao cemitério talvez possa ser
considerado o símbolo da viagem dos seres humanos do nascimento até à morte.
Pelo caminho, encontra-se de tudo, os professores, as colegas, os enlutados, a
louca, a enfarruscada, as lojas variadas, desde a farmácia à funerária. Mas
prevalece a morte que sempre vence a vida.