Tendo
lido Cem Anos de Solidão e alguns trabalhos académicos sobre a referida
obra de Gabriel Garcia Marques, surgiu, em alguns deles, a referência
comparativa com a tragédia de Sófocles, Édipo Rei.
Refletindo
sobre o assunto, surge em primeira instância o tema do incesto comum às duas
obras.
É
certo que o romance coloca as personagens incestuosas quando adultas a praticar
o ato incestuoso livre e deliberadamente com conhecimento da informação sobre
as consequências na procriação, uma vez que a personagem Úrsula, transversal à saga
dos Buendía nos seus cem anos, vai avisando que o procriado pode nascer com
rabo de porco. Após cem anos, nasce finalmente a criança de rabo de porco, filha
da relação entre a tia e o sobrinho, cumprindo-se a profecia da tetra e penta-avó Úrsula.
Pelo
contrário, o incesto, em Édipo Rei, acontece sem que o protagonista
saiba da relação de parentesco com sua esposa e mãe, Jocasta. Disso, Édipo está
completamente inocente. Ele conhecia apenas como seus pais aqueles que o
aceitaram como filho legítimo. Por isso, fugira daquela que considerava ser a
sua terra natal, Corinto, após consulta do oráculo de Delfos que vaticinava que
ele casaria com a mãe depois de matar o pai. Assustado, não regressa a Corinto,
para que a profecia não se cumpra. O segredo da sua origem está na base da
tragédia.
Se o
tema do incesto é tratado de forma diferente nas duas obras, o tema da profecia
tem semelhanças de tratamento.
A
profecia tem uma relação direta com o tempo uno, no qual passado, presente e
futuro coexistem. Esse é o tempo que se estipula para a divindade.
No
caso de Édipo Rei, a profecia provém do deus Apolo e situa-se, portanto,
no plano divino. E é nesse plano que a família de Laio, pai de Édipo, está a
ser castigada. Laio, rei de Tebas, cometera crimes graves: traíra o anfitrião
que o hospedara, raptando-lhe o filho jovem a fim de praticar pederastia. A
dinastia dos Labdácias, a que Laio pertencia, já anteriormente tinha praticado
outros crimes contra os deuses e também por isso estava a ser castigada através
de Édipo.
Em Cem
Anos de Solidão, a profecia está escrita em sânscrito nos pergaminhos do
cigano Melquíades e é descodificada, após cem anos da saga dos Buendía, por
Aureliano Babilonia. Essa profecia une o fim de vida do primeiro pai de
família, José Arcádio, casado com Úrsula, sua prima, ao do seu último
descendente, Aureliano, recém-nascido, filho de Aureliano Babilonia e de sua
tia, Amaranta Úrsula, falecida no parto.
Em
desespero, o último pai Buendía, Aureliano Babilonia, após o parto fatídico e a
verificação de que a criança tem rabo de porco, facto subestimado pela
parteira, deita a criança na alcofa e sai de casa em busca de conforto.
Regressa tarde, no momento em que as formigas vermelhas, praga daquela casa,
tomaram já posse definitiva do corpo do bebé. É então que recorda a «epígrafe
dos pergaminhos ordenada no tempo e no espaço dos homens», isto é, a profecia
contida nos livros de Melquíades: «O primeiro da estirpe está amarrado a uma
árvore e o último está a ser comido pelas formigas».
Aureliano,
naquele momento, tomou consciência do valor dos pergaminhos e debruçou-se sobre
eles: «era a história da família escrita por Melquíades […] com cem anos de
antecedência». Acontece que aquele era o instante em que passado, presente e
futuro se encontravam. O tempo uno continha toda a saga dos Buendía e a
história de Macondo, de modo a que tudo se unia «até engendrar o animal mitológico que havia de
por termo à estirpe». Também era o fim de Macondo e de Aureliano, uma vez que
«a cidade dos espelhos (ou de miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada
da memória dos homens no momento em que Aureliano Buendía acabasse de decifrar
os pergaminhos».
Outra
questão se pode colocar ao ler estas duas obras: o sofrimento das vítimas
inocentes por causa dos erros cometidos por antepassados. Fala-se, então, de
«personalidade corporativa», que Ariel Valdés explica ser um princípio presente
no Antigo Testamento: «segundo este princípio, cada pessoa é parte de uma
família, de um clã, de uma tribo. E os prémios e castigos divinos não eram
dados de acordo com o comportamento do indivíduo, mas da sua família ou grupo»
. De
acordo com a tragédia de Sófocles, os gregos antigos seriam do mesmo parecer,
uma vez que Édipo é castigado pelos deuses por crimes dos antepassados.
No
caso de Cem Anos de Solidão, a última criança sofre as consequências do
incesto, mas, sobretudo, ela é vítima mortal do desleixo parental do património
que vinha sendo devorado pelas formigas vermelhas.
Cem
Anos de Solidão é a mais recente das obras referidas e certamente que
Gabriel Garcia Marques conhecia a tragédia de Sófocles e a Bíblia,
intertextualmente presente, ao longo da obra.
Outubro
de 2017-10-22
Maria
José Domingues