domingo, 12 de novembro de 2017

A paisagem estado de alma



I
-Escreve – grita a voz à mão escrevinhadora.
A paisagem é outoniça em conformidade com o estado de alma.
- Ariel e Pessoa – sussurra a voz. – Apaga, acabaste de ler os Esteiros e o gozo a essa tirada do intelectual face às cheias do Ribatejo.

Fogos em outono estival. Arde a paisagem.
- Então? Arde o estado ou arde a alma?

II
-Não era esse o caminho de abertura. Apaga. O texto não pode ser datado, Há outonos sem fogos. Os cinzentos apagadores. Os que geram a saudade dos outonos quentes e solarengos de belas cores. Claro, sem fogos. Apenas belos.

Estados de alma outonais.

12 de novembro de 2017

domingo, 22 de outubro de 2017

Fernando Pessoa e Sá-Carneiro – diálogo em poema





Segundo Cabral Martins, a amizade dos dois poetas é em si um facto poético. Lendo a correspondência e os poemas nela referidos verifica-se o diálogo entre Paris e Lisboa.
Sobre o diálogo do poema Partida de Sá-Carneiro e o poema Pauis de Pessoa, publiquei o estudo intertextual (https://issuu.com/clepul/docs/copia_a964b913f8816b) para concluir que o poema de Pessoa é uma resposta à poesia «natural» do amigo, estabelecendo-se o confronto entre poesia «artificial» e a poesia «natural». E passo a citar:

Com efeito, Sá-Carneiro levantou a questão do artificialismo da poesia pessoana, na carta de 26 de Fevereiro de 1913, quando, ao enviar a poesia Partida ao amigo, lhe pede «que não se assuste nem com o título nem com as primeiras quadras naturais»; e, mais adiante, acrescenta que aqueles «não são versos escritos por um poeta» e, por isso, «são maus versos», mas gosta deles porque «os encontra verdadeiros» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 45-46). Nessa tirada, Sá-Carneiro, ao afirmar fazer e gostar de fazer poesia natural, assumida como a verdade, põe em dicotomia implícita: poesia natural versus poesia artificial. […] Depreende-se das palavras de Sá-Carneiro que os dois conheciam as opções estético-literárias mútuas e que Mário de Sá-Carneiro conhecia bem a oposição que Pessoa fazia ao neo-romantismo do natural e da verdade da poesia lírica nacional. […] Nesse contexto literário do neo-romantismo português, os artigos pessoanos de 1912 sugeriam como passar da poesia neo-romântica para a nova poesia portuguesa, e o poema Pauis de 1913 punha em prática o que fora teorizado, sob a forma da poesia artificial de obscuridade deliberada[1].


[1] Recorde-se o que Lausberg escreve a propósito da «obscuritas» e das suas duas variantes: «a obscuritas sem direcção surge especialmente, por meio da mixtura verborum, que é considerada […] na poesia […] como um meio para obter o estranhamento»; a obscuritas, indecisa quanto à direcção, […] como licença […] é utilizada a favor da táctica do discurso (com a finalidade da dissimulatio), nas sentenças oraculares» (LAUSBERG, H., 1966: 137). Segundo parece, Fernando Pessoa serviu-se à vontade deste processo, porque, estando na sua posse, o aplicou de acordo com a intencionalidade de obscuridade.

Édipo Rei e Cem Anos de Solidão




Tendo lido Cem Anos de Solidão e alguns trabalhos académicos sobre a referida obra de Gabriel Garcia Marques, surgiu, em alguns deles, a referência comparativa com a tragédia de Sófocles, Édipo Rei.
Refletindo sobre o assunto, surge em primeira instância o tema do incesto comum às duas obras.
É certo que o romance coloca as personagens incestuosas quando adultas a praticar o ato incestuoso livre e deliberadamente com conhecimento da informação sobre as consequências na procriação, uma vez que a personagem Úrsula, transversal à saga dos Buendía nos seus cem anos, vai avisando que o procriado pode nascer com rabo de porco. Após cem anos, nasce finalmente a criança de rabo de porco, filha da relação entre a tia e o sobrinho, cumprindo-se a profecia da  tetra e penta-avó Úrsula.
Pelo contrário, o incesto, em Édipo Rei, acontece sem que o protagonista saiba da relação de parentesco com sua esposa e mãe, Jocasta. Disso, Édipo está completamente inocente. Ele conhecia apenas como seus pais aqueles que o aceitaram como filho legítimo. Por isso, fugira daquela que considerava ser a sua terra natal, Corinto, após consulta do oráculo de Delfos que vaticinava que ele casaria com a mãe depois de matar o pai. Assustado, não regressa a Corinto, para que a profecia não se cumpra. O segredo da sua origem está na base da tragédia.

Se o tema do incesto é tratado de forma diferente nas duas obras, o tema da profecia tem semelhanças de tratamento.
A profecia tem uma relação direta com o tempo uno, no qual passado, presente e futuro coexistem. Esse é o tempo que se estipula para a divindade.
No caso de Édipo Rei, a profecia provém do deus Apolo e situa-se, portanto, no plano divino. E é nesse plano que a família de Laio, pai de Édipo, está a ser castigada. Laio, rei de Tebas, cometera crimes graves: traíra o anfitrião que o hospedara, raptando-lhe o filho jovem a fim de praticar pederastia. A dinastia dos Labdácias, a que Laio pertencia, já anteriormente tinha praticado outros crimes contra os deuses e também por isso estava a ser castigada através de Édipo.
Em Cem Anos de Solidão, a profecia está escrita em sânscrito nos pergaminhos do cigano Melquíades e é descodificada, após cem anos da saga dos Buendía, por Aureliano Babilonia. Essa profecia une o fim de vida do primeiro pai de família, José Arcádio, casado com Úrsula, sua prima, ao do seu último descendente, Aureliano, recém-nascido, filho de Aureliano Babilonia e de sua tia, Amaranta Úrsula, falecida no parto.
Em desespero, o último pai Buendía, Aureliano Babilonia, após o parto fatídico e a verificação de que a criança tem rabo de porco, facto subestimado pela parteira, deita a criança na alcofa e sai de casa em busca de conforto. Regressa tarde, no momento em que as formigas vermelhas, praga daquela casa, tomaram já posse definitiva do corpo do bebé. É então que recorda a «epígrafe dos pergaminhos ordenada no tempo e no espaço dos homens», isto é, a profecia contida nos livros de Melquíades: «O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está a ser comido pelas formigas».
Aureliano, naquele momento, tomou consciência do valor dos pergaminhos e debruçou-se sobre eles: «era a história da família escrita por Melquíades […] com cem anos de antecedência». Acontece que aquele era o instante em que passado, presente e futuro se encontravam. O tempo uno continha toda a saga dos Buendía e a história de Macondo, de modo a que tudo se unia «até  engendrar o animal mitológico que havia de por termo à estirpe». Também era o fim de Macondo e de Aureliano, uma vez que «a cidade dos espelhos (ou de miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no momento em que Aureliano Buendía acabasse de decifrar os pergaminhos».

Outra questão se pode colocar ao ler estas duas obras: o sofrimento das vítimas inocentes por causa dos erros cometidos por antepassados. Fala-se, então, de «personalidade corporativa», que Ariel Valdés explica ser um princípio presente no Antigo Testamento: «segundo este princípio, cada pessoa é parte de uma família, de um clã, de uma tribo. E os prémios e castigos divinos não eram dados de acordo com o comportamento do indivíduo, mas da sua família ou grupo»[1]. De acordo com a tragédia de Sófocles, os gregos antigos seriam do mesmo parecer, uma vez que Édipo é castigado pelos deuses por crimes dos antepassados.
No caso de Cem Anos de Solidão, a última criança sofre as consequências do incesto, mas, sobretudo, ela é vítima mortal do desleixo parental do património que vinha sendo devorado pelas formigas vermelhas.

Cem Anos de Solidão é a mais recente das obras referidas e certamente que Gabriel Garcia Marques conhecia a tragédia de Sófocles e a Bíblia, intertextualmente presente, ao longo da obra.
Outubro de 2017-10-22
Maria José Domingues











[1] Valdés, Ariel Álvarez, «Job foi atormentado por Deus com doenças?», in Revista Bíblica, n.º372, setembro-outubro 2017.

domingo, 1 de outubro de 2017

CEIFEIRA .- FERNANDO PESSOA


Fernando Pessoa, a15 de janeiro de 1915, escreve uma longa carta ao amigo açoriano Armando Cortes-Rodrigues, à qual anexa «Ela canta, pobre ceifeira» e mais onze poemas.

Sobre o envio dos poemas, informa:
   «Mando-lhe alguns versos meus... Leia-os e guarde-os para si... A seu Pai, se quiser, pode ler, mas não espalhe porque são inéditos. Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira onde consegui dar a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito

  Ah, poder ser tu, sendo eu!
  Ter a tua alegre inconsciência
  E a consciência disso!...

e, enfim, esta poesia toda» ( Fernando Pessoa, 1959 - Cartas a Armando Cortes-Rodrigues, Editorial Inquérito, p.78).

Desta forma, Pessoa parece identificar «a nota paúlica» com a expressão poética da alteridade, formulada poeticamente em Pauis, poema datado de 29 de março de 1913 e publicado no primeiro número da revista A Renascença, em 1914.


Sobre a alteridade, Fernando Guimarães (GUIMARÃES, F., 1990: 56). esclarece que «alguns poetas e escritores românticos […] concorreram dum modo extremamente decisivo para o aparecimento duma poética da alteridade, a qual […] atingirá o seu momento mais alto com o Pós-Simbolismo e o Modernismo […]». Salienta o papel da «consciência, sobretudo no caso da poesia, de que, em relação ao autor, há uma sobreposição de personae, de máscaras», tornando-se «uma das obsessões da literatura que […] começa renovadoramente a afirmar-se nas primeiras décadas deste século». Destaca Fernando Pessoa, «que levou até às últimas consequências a distanciação e a ambígua multiplicidade da pessoa do autor mediante um analitismo que será uma das soluções mais conseguidas da própria impersonalidade artística» (Domingues, Maria José, 2007, Fernando Pessoa e «A Nova Poesia Portuguesa»: da teoria à concretização poética em Pauis).