domingo, 22 de outubro de 2017

Édipo Rei e Cem Anos de Solidão




Tendo lido Cem Anos de Solidão e alguns trabalhos académicos sobre a referida obra de Gabriel Garcia Marques, surgiu, em alguns deles, a referência comparativa com a tragédia de Sófocles, Édipo Rei.
Refletindo sobre o assunto, surge em primeira instância o tema do incesto comum às duas obras.
É certo que o romance coloca as personagens incestuosas quando adultas a praticar o ato incestuoso livre e deliberadamente com conhecimento da informação sobre as consequências na procriação, uma vez que a personagem Úrsula, transversal à saga dos Buendía nos seus cem anos, vai avisando que o procriado pode nascer com rabo de porco. Após cem anos, nasce finalmente a criança de rabo de porco, filha da relação entre a tia e o sobrinho, cumprindo-se a profecia da  tetra e penta-avó Úrsula.
Pelo contrário, o incesto, em Édipo Rei, acontece sem que o protagonista saiba da relação de parentesco com sua esposa e mãe, Jocasta. Disso, Édipo está completamente inocente. Ele conhecia apenas como seus pais aqueles que o aceitaram como filho legítimo. Por isso, fugira daquela que considerava ser a sua terra natal, Corinto, após consulta do oráculo de Delfos que vaticinava que ele casaria com a mãe depois de matar o pai. Assustado, não regressa a Corinto, para que a profecia não se cumpra. O segredo da sua origem está na base da tragédia.

Se o tema do incesto é tratado de forma diferente nas duas obras, o tema da profecia tem semelhanças de tratamento.
A profecia tem uma relação direta com o tempo uno, no qual passado, presente e futuro coexistem. Esse é o tempo que se estipula para a divindade.
No caso de Édipo Rei, a profecia provém do deus Apolo e situa-se, portanto, no plano divino. E é nesse plano que a família de Laio, pai de Édipo, está a ser castigada. Laio, rei de Tebas, cometera crimes graves: traíra o anfitrião que o hospedara, raptando-lhe o filho jovem a fim de praticar pederastia. A dinastia dos Labdácias, a que Laio pertencia, já anteriormente tinha praticado outros crimes contra os deuses e também por isso estava a ser castigada através de Édipo.
Em Cem Anos de Solidão, a profecia está escrita em sânscrito nos pergaminhos do cigano Melquíades e é descodificada, após cem anos da saga dos Buendía, por Aureliano Babilonia. Essa profecia une o fim de vida do primeiro pai de família, José Arcádio, casado com Úrsula, sua prima, ao do seu último descendente, Aureliano, recém-nascido, filho de Aureliano Babilonia e de sua tia, Amaranta Úrsula, falecida no parto.
Em desespero, o último pai Buendía, Aureliano Babilonia, após o parto fatídico e a verificação de que a criança tem rabo de porco, facto subestimado pela parteira, deita a criança na alcofa e sai de casa em busca de conforto. Regressa tarde, no momento em que as formigas vermelhas, praga daquela casa, tomaram já posse definitiva do corpo do bebé. É então que recorda a «epígrafe dos pergaminhos ordenada no tempo e no espaço dos homens», isto é, a profecia contida nos livros de Melquíades: «O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está a ser comido pelas formigas».
Aureliano, naquele momento, tomou consciência do valor dos pergaminhos e debruçou-se sobre eles: «era a história da família escrita por Melquíades […] com cem anos de antecedência». Acontece que aquele era o instante em que passado, presente e futuro se encontravam. O tempo uno continha toda a saga dos Buendía e a história de Macondo, de modo a que tudo se unia «até  engendrar o animal mitológico que havia de por termo à estirpe». Também era o fim de Macondo e de Aureliano, uma vez que «a cidade dos espelhos (ou de miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no momento em que Aureliano Buendía acabasse de decifrar os pergaminhos».

Outra questão se pode colocar ao ler estas duas obras: o sofrimento das vítimas inocentes por causa dos erros cometidos por antepassados. Fala-se, então, de «personalidade corporativa», que Ariel Valdés explica ser um princípio presente no Antigo Testamento: «segundo este princípio, cada pessoa é parte de uma família, de um clã, de uma tribo. E os prémios e castigos divinos não eram dados de acordo com o comportamento do indivíduo, mas da sua família ou grupo»[1]. De acordo com a tragédia de Sófocles, os gregos antigos seriam do mesmo parecer, uma vez que Édipo é castigado pelos deuses por crimes dos antepassados.
No caso de Cem Anos de Solidão, a última criança sofre as consequências do incesto, mas, sobretudo, ela é vítima mortal do desleixo parental do património que vinha sendo devorado pelas formigas vermelhas.

Cem Anos de Solidão é a mais recente das obras referidas e certamente que Gabriel Garcia Marques conhecia a tragédia de Sófocles e a Bíblia, intertextualmente presente, ao longo da obra.
Outubro de 2017-10-22
Maria José Domingues











[1] Valdés, Ariel Álvarez, «Job foi atormentado por Deus com doenças?», in Revista Bíblica, n.º372, setembro-outubro 2017.

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