1. Pessoa admirador de
Shakespeare
Fernando
Pessoa, 1913 - «Quem quisesse resumir numa palavra a característica
principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A
arte moderna é arte de sonho.»
Shakespeare:
·
PRÓSPERO
(obra - A Tempestade)
«[…]
O nosso
entretenimento acabou. Estes actores,
Como já te
tinha dito, são todos espíritos,
Esvaíram-se no
ar como finos vapores;
E, tal como é
ilusória esta visão,
Também as altas
torres, os palácios soberbos,
Os templos
solenes e mesmo este grande globo
E todos os que
o ocupem, se desvanecerão,
Sem deixar um
só rasto, tal como os espíritos
Se dissolveram
no ar. A matéria que nos compõe
É igual à dos
sonhos[1];
e a nossa curta vida cercada por um sono. Sinto-me vexado. […]»
(tradução de
Fátima Vieira)
·
HAMLET Monólogo
de Hamlet:
“Ser ou não ser, eis a questão! O que será
mais nobre para o espírito humano: sofrer os ataques e as frechadas da fortuna
adversa, ou pegar em armas contra um mar de dores e, enfrentando-as, pôr-lhes
termo? Morrer… dormir; mais nada! E dizer que se acaba com as penas do coração
e os mil choques de que é herdeira a carne! Eis um fim a desejar ardentemente! Morrer
… dormir! Dormir… Sonhar talvez! Aí é que está o problema! Porque há que
pensar nos sonhos que virão neste sono eterno, quando nos libertarmos desta
mortal crisálida! É este raciocínio que nos leva à desgraça de uma vida tão
longa! […]»
William Shakespeare
(Tradução de Ricardo
Alberty, Hamlet, in Shakespeare II, Verbo, Lisboa, São Paulo,
1975, p.102).
2. Alguns textos programáticos de Fernando Pessoa que iluminam a leitura do
poema Tabacaria,
- considerando que o poema atinge o equilíbrio perfeito entre poesia subjetiva e poesia objetiva:
«A NOVA POESIA PORTUGUESA NO SEU ASPECTO PSICOLÓGICO» ( artigos publicados na revista A Águia, em 1912):
«[…] Perscrutemos qual a estética da nova poesia portuguesa.
A primeira constatação analítica que o raciocínio faz ante a nossa poesia de hoje é que o seu arcaboiço espiritual é composto de três elementos — vago, subtileza e complexidade. São vagas, subtis e complexas as expressões características do seu verso, e a sua ideação é, portanto, do mesmo triplo carácter.
[…]O simbolismo é vago e subtil; complexo, porém, não é. É-o a nossa actual poesia; é, por sinal a poesia mais espiritualmente complexa que tem havido, excedendo, e de muito, a única outra poesia realmente complexa — a da Renascença, e, muito especialmente, do período isabeliano inglês. O característico principal da ideação complexa — o encontrar em tudo um além — é justamente a mais notável e original feição da nova poesia portuguesa.
[…]Mas a nossa poesia de hoje é, como acima dissemos, mais do que subjectiva. Absolutamente subjectivo é o simbolismo: daí o seu desequilíbrio, daí o seu carácter degenerativo, há muito notado por Nordau. A nova poesia portuguesa, porém, apesar de mostrar todos os característicos da poesia de alma, preocupa-se constantemente com a natureza, quase exclusivamente, mesmo, na natureza se inspira. Por isso dizemos que ela é também uma poesia objectiva.
[…] A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que incarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade».
- considerando que Pessoa escolheu o “terceiro caminho”:
«A Arte Moderna é arte de sonho»
(texto de 1913) - «O poeta de sonho é um
melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na
curva [?] de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho: e o
desenvolvimento da música moderno todo, no que valioso e grande, é a composição
suprema de quanto aqui teorizamos. O poeta sonhador, porque sonhador, é até
certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas
que comunicam o sonho. A música é uma delas.
O poeta de sonho é geralmente um visual, um
visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente,
tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é
estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto
mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho).
Havia 3 caminhos a seguir ante este novo estado
civilizacional: […] 3) Metendo esse
ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho — e fugindo da
“Realidade” nesse sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente
português) — que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa
recentíssima poesia» (http://arquivopessoa.net/textos/1415).
3. Álvaro de
Campos mais do que um heterónimo
« […] pus em
Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida» (Carta de
Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935).
Álvaro de
Campos é considerado mais do que um heterónimo pelo facto de ter sido um duplo
de Fernando Pessoa na sua figura, mas mais aguerrido socialmente junto de
Ofélia, no encontro com Gaspar Simões e José Régio e nas entrevistas dadas a
jornais.
O poeta
sensacionista apresenta-se dividido em duas fases separadas no tempo pelo
suicídio do amigo e correligionário de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
em 26 de Abril de 1916. Os dois amigos tinham criado o sensacionismo[2] e
comungaram na paternidade de ORPHEU.
Até 1916,
Álvaro é o engenheiro futurista assanhado das Odes; depois, silencia-se para
apenas aparecer em 1920 a assinar cartas de Ofélia e, a partir de 1923,
regressa outro - o poeta a quem Cabral Martins chamou o Metafísico, «o grande
Campos da grande Tabacaria»[3], poema
considerado por Rémy Hourcade «o mais belo poema do mundo»[4].
Esta fase
metafísica, entre 1928 e 1930, foi de grande produção poética caracterizada
pela interioridade solitária que espreita, por vezes, pelas janelas,
privilegiando as sensações visuais.
Os temas
metafísicos que se encontram no poema Tabacaria são transversais à obra
pessoana. Carlos Filipe Moisés desenvolve, em O Poema e as Máscaras, a «tentativa
de interpretação da poesia de Fernando Pessoa, encetada a partir da análise
exaustiva de um poema». Na «Introdução» da obra, escreve que «a ideia central
diz respeito ao papel de destaque cumprido pelo poema “Tabacaria” no conjunto
da obra de Fernando Pessoa […], por sua configuração fechada e coesa,
verdadeira síntese de uma visão do mundo» e «por constituir uma súmula da
problemática pessoana, não só de Álvaro de Campos, heterónimo que a assina, mas
a problemática de toda a poesia do criador de Mensagem». O projeto de
Moisés «implica a ideia da unidade subjacente à obra de Pessoa, a despeito da
sua aparente diversidade» - tese perfilhada por Jacinto do Prado Coelho e
explanada na sua obra, Unidade e diversidade em Fernando Pessoa. Moisés
cita Prado Coelho, mas também cita Adolfo Casais Monteiro num ponto de
convergência: «essa unidade está na própria estrutura de qualquer dos sentidos
da sua obra, numa orientação fundamental que está em ser ela uma cadeia
ininterrupta de esforços para estabelecer o contacto do homem com o universo».
A referida obra
de Carlos Filipe Moisés elenca a «estrutura e cosmovisão» do poema em seis
itens: «o nada e o mistério; sonho e realidade; projeto existencial; poesia e
inocência; o mito e a máscara; a realidade plausível». Neste esquema insere não
só Tabacaria como toda a poesia ortónima e heterónima[5].
Para Cabral
Martins, o final de 1930 encerra a fase metafísica de Álvaro de Campos e dá início à fase «do
engenheiro aposentado».
4. A construção do Super-Camões
Debruço-me mais uma vez sobre o poema Tabacaria de Álvaro de Campos e encontro as teorias de Fernando Pessoa em ação com a preocupação da busca da referência para a poesia metafísica, assunto tratado por ele nos artigos de 1912, publicados na revista A Águia do movimento Nova Renascença Portuguesa. Nesses artigos, Pessoa expõe a teoria do transcendentalismo panteísta, sobre a qual escrevi, em «Fernando Pessoa e a «nova poesia portuguesa: da teoria à concretização em Pauis»:
Debruço-me mais uma vez sobre o poema Tabacaria de Álvaro de Campos e encontro as teorias de Fernando Pessoa em ação com a preocupação da busca da referência para a poesia metafísica, assunto tratado por ele nos artigos de 1912, publicados na revista A Águia do movimento Nova Renascença Portuguesa. Nesses artigos, Pessoa expõe a teoria do transcendentalismo panteísta, sobre a qual escrevi, em «Fernando Pessoa e a «nova poesia portuguesa: da teoria à concretização em Pauis»:
A
nova poesia portuguesa deveria conjugar a característica do equilíbrio entre
poesia subjectiva e poesia objectiva, resultante da fusão «da poesia da alma e
da natureza», em penetração mútua, com «essa estranha e nítida originalidade»:
«a espiritualização da Natureza e, ao mesmo tempo, a materialização do
Espírito». […] Consciente da problemática que rodeia o termo
«transcendentalismo», Pessoa trabalhou-o no sentido da metafísica e da
subjectividade, mas também da objectividade, em busca do «equilíbrio»[6]
Em Tabacaria, encontro, tal como no
poema Pauis, o «transcendentalismo panteísta» pessoano - espírito e
matéria, matéria e espírito, em fusão, através do enunciado poético,
metafórico, meticulosamente trabalhado, a fim de «emocionalizar uma ideia».
Nesta revisitação, constato que toda a arte
poética teorizada por Fernando Pessoa, em 1912, se processa artisticamente no
poema Tabacaria de Álvaro de Campos.
Assim, vejamos de que forma Álvaro de Campos
procede poeticamente.
A poesia subjetiva, isto é, a «poesia da alma»
está bem presente logo no primeiro verso, ao qual subjaz o paradoxo «ser ou não
ser» hamletiano, que se vai desenvolvendo sobretudo ao longo da sexta estrofe -
«Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou».
Vejamos as três características da poesia
objetiva, apresentadas por Pessoa nos artigos de 1912:
·
a
nitidez traduzida por epigramatismo («frase sintética, vincante, concisa»),
·
a
plasticidade («a fixação expressiva do visto ou ouvido como exterior, não como
sensação, mas como visão ou audição»)
·
e
a imaginação («pensar e sentir por imagens») (FP. AA3: 92-93).
Tendo em conta que imaginar é também reestruturar
campos semânticos até então opostos, assimilando-os entre si, no discurso, para
obter a novidade de uma significação emergente nos termos da frase, constata-se
que, no poema em estudo, a poesia objetiva que se encontra na narrativa - um eu
poético masculino, que se desloca entre a cadeira e as janelas do seu quarto,
pertencente a uma casa enfileirada com outras casas, tendo como paisagem a rua,
onde se situa a tabacaria, que frequenta e, por isso, conhece o dono e
certamente parte da clientela, nomeadamente o Esteves - mais não é que um
quadro imaginário para a construção poemática, servindo de base à enunciação
metafórica.
Vejamos os seguintes versos da terceira estrofe:
[…] tornando-se esta casa e este
lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
A
enunciação metafórica faz-se através do choque do campo semântico das casas que
ladeiam a rua com o campo semântico do comboio, para obter um significado
extra: a caminhada apressada para a morte sem regresso, por oposição à morte
lenta do verso final da segunda estrofe:
«Com o Destino a conduzir a carroça de tudo
pela estrada do nada».
Com essas características da poesia objectiva
em fusão com a poesia subjectiva, segundo Pessoa, a poesia estaria a «caminhar
para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que incarnará esse auge,
realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade. […] Super-Camões lhe chamámos, e
lhe chamaremos, ainda que a comparação implícita, por muito que pareça
favorecer, anteamesquinhe o seu génio, que será, não de grau superior,
mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-primeiro poeta».
Analisando o poema Tabacaria através
destes parâmetros, pode concluir-se que o heterónimo Álvaro de Campos atinge o
«auge» poético, previsto em 1912 por Pessoa nos artigos sobre a «nova poesia
portuguesa». Isto acontece, pelo facto de Pessoa ser um homem que concebe
projetos e os realiza. Nesse ano de 1912, ele projetou que a nova poesia
portuguesa iria construir uma nova renascença portuguesa «em busca de uma Índia
nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os
sonhos são feitos”». E com a citação de Shakespeare, conclui que o verdadeiro e
supremo destino nacional, «de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal
antearremedo, realizar-se-á divinamente» através da poesia.
Maria José Domingues
Maria José Domingues
Bibliografia:
Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado
por Fernando Cabral Martins, Caminho, 2008.
O Poema e as Máscaras, Carlos Filipe Moisés, Almedina,
Coimbra, 1981.
Diversidade
e unidade em Fernando Pessoa, COELHO, Jacinto do Prado (1987) –
,
9.a edição, Lisboa, Editorial Verbo.
http://www.lusosofia.net/textos/20130604-domingues_maria_jose_fernando_pessoa_e_a_nova_poesia_portuguesa.pdf
Os textos do escritor Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimo) foram retirados da pesquisa em http://arquivopessoa.net/ -
Os textos do escritor Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimo) foram retirados da pesquisa em http://arquivopessoa.net/ -
[1] "Nós somos feitos do tecido de que são feitos os
sonhos."- We are such stuff as dreams are made on - "The Tempest"
in: The works of Mr. William Shakespear;: in six volumes. Adorn'd with cuts -
Volume 1, Página 48, William
Shakespeare, Nicholas Rowe - Printed for Jacob Tonson, 1709 - 3324 páginas (https://pt.wikiquote.org/wiki/William_Shakespeare).
Fernando
Pessoa utilize a expressão no final do seu terceiro artigo, «A nova poesia
portuguesa no seu aspeto psicológico»: «E a
nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço,
em naus que são construídas “d’aquilo de que os sonhos são feitos”. E o
seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e
carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente».
[2] «O
Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de
Sá-Carneiro. Provavelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do
movimento e, com certeza, absolutamente inútil determiná-lo. O facto é que
ambos lhe deram início» (Álvaro de Campos, in http://arquivopessoa.net/textos/2821)
[3] Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo
Português, coordenado por Fernando Cabral Martins, Caminho, 2008, p.128.
[4] Pierre Hourcade com Casais
Monteiro e Armand Guibert
traduziram Tabacaria para francês nos anos 50 - Le bureau de tabac
- e Rémy Hourcade considerou esse poema «o mais belo poema do mundo» e voltou a
traduzi-lo nos anos 80 do século passado (http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/viewFile/7190/5188).
[5] Carlos
Filipe Moisés, O Poema e as Máscaras, Almedina, Coimbra, 1981, pp 7-16.
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