Numa época em que se reivindica o direito a uma boa morte –
eutanásia sob a forma de suicídio assistido, morte assistida –, penso no suicídio
de Mário de Sá-Carneiro há cem anos. Esse doloroso suicídio acontece aos vinte
e cinco anos do escritor e, apesar de muito pensado por muito ser escrito, foi um
horror de sofrimento causado pela escolha da substância letal: arseniato de estricnina.
Esse suicídio não foi assistido, mas, depois da ingestão da substância letal, foi
presenciado por José Araújo, a convite do próprio Sá-Carneiro, conforme carta
de Araújo a Fernando Pessoa.
Focam-se geralmente dois acontecimentos trágicos na vida de
Sá-Carneiro: a orfandade materna aos dois anos e o suicídio do seu melhor amigo
e colega, Tomás Cabreira Júnior, com um tiro de pistola, no pátio do Liceu de
S. Domingos/Camões, às 10 horas do dia 9 de janeiro de 1911.
A estes dois
factos, acrescem problemas psicológicos, familiares e de dinheiro; este último,
causado por uma vida cara de escritor dândi em Paris, a expensas do pai.
O tema «suicídio» é tratado desde cedo. Em novembro de
1908, escreve Páginas dum suicida. Lourenço Furtado, a personagem
suicida, deixara sobre a secretária um escrito sobre a morte como aquilo que
resta na modernidade por e para explorar:
«Não há dúvida: a única coisa
interessante que existe actualmente na vida, é a morte!...Pois bem, serei eu
o primeiro explorador dessa região misteriosa, completamente desconhecida…».
A 1 de Outubro de 1911,
escreve o poema dedicado à memória de Tomás Cabreira Júnior, intitulado A um
suicida. Esse poema termina assim:
«…Mas tu ainda alcançaste alguma coisa:
a morte,
E
há tantos como eu que não alcançam nada…».
O sofrimento interior acompanha Mário de Sá-Carneiro ao
longo da sua curta vida e tem expressão na sua obra, nomeadamente, nas cartas de
1912 a 1916 a Fernando Pessoa, que ele sabe não perder escritos. Ele conta com
o guardador de papéis e expressa essa noção em certas cartas.
Com este trabalho pretendo fazer o levantamento da “zoina”
suicida nas cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, os dois amigos escritores
e cofundadores da primeira vanguarda literária portuguesa com registo na
revista Orpheu, assinando os dois como diretores o nº 2 da revista. Para
isso, leio Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa de Manuela
Parreira da Silva, Assírio e Alvim, Lisboa, 2001, de onde extraio as citações.
1. 1912 - «um dia senti, na verdade senti cheio de orgulho, que me chegara finalmente a força necessária para desaparecer»
Na carta de Paris, nº6, de 16 de novembro de 1912, uma das
primeiras cartas longas a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro faz, pela primeira vez, referência
ao seu estado de alma:
«Vê Você, eu sofro porque sinto próxima a hora em que o
recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas. Talvez não me
compreenda nestas palavras, mas eu não tenho paciência nem força para lhe falar
mais detalhadamente: Em suma não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu
futuro. Já tomei várias decisões desde que aqui estou e um dia senti, na
verdade senti cheio de orgulho, que me chegara finalmente a força necessária
para desaparecer. Ilusão dourada! Na manhã seguinte essa força remediável tinha
desaparecido. E então resolvi voltar para Lisboa, sepultar dentro de mim ambições
e orgulhos. Mas não tive também força para o fazer. Sorria-me Paris e, lá ao
longe, um fiozinho de esperança que todas as aspirações dentro de mim me
fizeram ver como um facho resplandecente».
Na carta de 2 de dezembro, nº 8, escreve:
«No “desaparecer” da minha carta havia, é certo, um revólver
apontado aos ouvidos; mas havia também outra coisa. É que eu, quando busco,
acho duas formas de desaparecer: uma fácil e brutal – a água profunda, o
estampido de uma pistola – outra suave e difícil: a sufocação de todos os
ideais, de todas as ânsias – o despojo de tudo quanto de belo, de precioso
existe em nós. Ah! quantas vezes tenho um desejo violento de conseguir este
“desaparecimento”! Mas como? Como?... E a dor, a raiva concentrada,
despedaçadora e uivante que se me encapelaria em todo o ser, na hora do
triunfo!...
E o outro
desaparecimento é horrível, e ambos eles são egoístas – torpe um, cobarde o
outro.
Depois,
coisa interessante, quando eu medito no suicídio, o que trago disso é um
doloroso pesar de ter de morrer forçosamente mesmo que não me suicide».
2. 1913 - «Eu sou daqueles que vão até ao fim»
Na carta de 21 de janeiro de
1913, a propósito de uma «provável desilusão» até «à prova real dessa
desilusão», Sá-Carneiro explica por que razão não recuou a tempo:
«É que eu se começo a beber um copo de fel, hei-de
forçosamente bebê-lo até ao fim. Eu sou daqueles que vão até ao fim.
Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo
tratá-la num dos meus contos, mas a vida é uma triste coisa. Os atos da minha
existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos deste
triste fardo. E coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim».
2. 1. «Felizmente ando agora com forças literárias»
As cartas de 1913 apresentam o
destinador das cartas em grande atividade criativa traduzida em produto
literário:
«Felizmente ando agora com forças
literárias» (carta de 26 de fevereiro).
«Actualmente atravesso talvez a melhor quadra da minha
vida literária» (carta de 10 de março).
Verifico que, depois de um 1913 muito ativo e realizador, a
“zoina” é progressivamente agravada, tendo como agravantes a relação com o pai
e a falta de dinheiro.
3. -1914 - «eu toco o fim – um fim embandeirado, mas em todo o caso um limite»
Como início de crise psicológica agravada com morte à
vista, selecionei a reveladora carta de Paris, de 13 de Julho de 1914
(pp.122-128). Depois de declarar a grande amizade ao interlocutor, escreve:
«Creia, meu querido Fernando Pessoa, percamos por completo as ilusões:
eu toco o fim – um fim embandeirado, mas em todo o caso um limite. Acabei já –
acabei após a minha chegada aqui. Hoje sou o embalsamento de mim próprio».
Mais
adiante apresenta o facto causador do mal-estar:
«[…] depois eu sou uma criança – tantas vezes lho gritei – e
a criança hoje vê a sua idade terminada, bem terminada – terminada há muito,
mas só hoje, depois da partida do meu Pai para a África, da casa desfeita, terminada
em ilusão. Para trás de mim, existe o irremediável¸ o que nunca mais, nunca
mais se pode repetir mesmo em miragem. Meu Amigo, nunca mais terei quem
arrume as minhas roupas na gaveta, e quem de noite me aconchegue a roupa… alguém que me faça isto e
tenha assistido à minha infância… Estou só - dos outros – só de mim para
sempre. […].
Meu amigo, creia-me, tudo quanto doravante eu hoje escrever
são escritos póstumos. Infelizmente não me engano […]. Não lhe dizia tanta vez
que não “me via” como uma obra muito longa? […] Mas, mais do que nunca
acredito, o suicídio… pelo menos o suicídio moral… Acabarei talvez em corpo
exilado da minha alma. Mas creio menos nesta hipótese. […]».
Toda essa carta é uma revelação comovedora de estado de
alma de orfandade agravada pela partida do pai para Moçambique como diretor dos
portos e caminhos-de-ferro.
Mas também é nessa carta que ele esclarece a amizade com
Fernando Pessoa, depois de lhe elogiar a obra:
«Não são declarações de amor: mas tudo isto, toda esta
sumptuosidade e depois a grande alma que
você é, fazem-me ser tão seu amigo quanto eu posso ser de alguém: encher-me de
ternuras, gostar, como ao meu pai, de encostar a minha cabeça ao seu braço – e
de o ter aqui, ao pé de mim, como gostaria de ter o meu Pai, a minha Ama ou
qualquer objecto, qualquer bicho querido da minha infância».
A 18 de julho, escreve: o «estado de alma é o mesmo:
entretanto como vê vou trabalhando, que é o principal».
A 6 de agosto, identifica-se com Paris e Europa em guerra:
«Estou horrivelmente desgraçado de alma – num nervosismo constante, vibrante
e aniquilador. Horas de inquietação ziguezagueada as que vivo – mas de
inquietação de mim próprio. Entanto talvez de mim próprio: como um pedaço de
Europa».
De Barcelona, a 29 de agosto, declara ao amigo:
«Estou mal em Paris, estou mal em Barcelona – estarei
horrivelmente mal em Lisboa. […] Cada vez me convenço mais de que não posso
passar sem Paris. Mas o meu Paris hoje é um desaparecido como eu. Porque é
verdade: eu, creia, desapareci de mim, de todo. Não lhe disse nos primeiros
tempos em que estive em Paris este ano que chegara o meu fim? Pois mais do
[que] nunca creio que disse bem».
4. 1915 - Regresso a Lisboa e lançamento do Orpheu
Mário de Sá-Carneiro parte de
Barcelona a 8 de setembro rumo a Lisboa, onde permanece até 11 de Julho de 1915.
Através de curtas e médias mensagens a Fernando Pessoa, é possível acompanhar a
marcação de encontros literários e as diligências que antecedem o lançamento da
revista trimestral Orpheu 1 e Orpheu 2, durante a estada de Sá-Carneiro na
capital portuguesa, em março e em junho. O primeiro número da revista provoca
grande escândalo, conforme carta de Pessoa a Cortes-Rodrigues: «Foi um
triunfo absoluto, especialmente com o reclame que A Capital nos fez
com uma tareia na 1.ª página, um artigo de duas colunas».
4.1. Partida precipitada para Paris
Sá-Carneiro parte precipitadamente
de Lisboa a 11 de julho de 1915 e a 16 escreve a Pessoa pedindo-lhe
encarecidamente que nada lhe conte sobre o que se diz em Lisboa acerca da sua
vida particular: «Não quero saber nada, absolutamente nada. […] Faça como se
nenhuma dessas trapalhadas tenha existido. Fale-me só de si, de questões
literárias, do Orfeu, etc.!». Em nota a esta carta, Manuela Parreira da
Silva admite que uma discussão com a futura madrasta pudesse ter estado na base
desse enigma. Ela discordava profundamente do tipo de vida de Sá-Carneiro. De
salientar que, a partir do tal acontecimento enigmático, ele não volta a
Lisboa.
No mês de julho, as cartas, de 16, 17, 22, 26, 27 e 28, incidem
na necessidade urgente até 12 de agosto do dinheiro proveniente da venda da
obra Céu em fogo. A carta de 2 de agosto é lancinante:
«E agora oiça, oiça por amor de Deus – em nome dos seus
ideais – suplico-lhe de joelhos! Vá à livraria logo que receba esta. Averigue o
que se passa».
No dia 11 de agosto acusa a receção do cheque de 60 francos
enviado pela livraria.
4.2. O Orpheu III - fim
A carta do «último dia» de agosto de 1915 é dedicada
à organização da revista, em resposta à carta de Pessoa. Planeia a revista e
recomenda que deveria entrar no prelo «o mais tardar em outubro». Apesar do
ânimo construtor do Orpheu III, a carta termina com o sentir de «um
peso de mândria», traduzido da seguinte forma.
«Em P.S.
este “mimoso” poema:
A minha
alma fugiu pela torre Eiffel acima,
- A
verdade é esta, não nos criemos mais ilusões –
Fugiu,
mas foi apanhada pela antena da T.S.F.
Que a
transmitiu pelas ondas hertzianas…
(Em todo
ocaso que belo fim para a minha alma!...)»
Dentro do mesmo estado de «mândria», envia, a 6 de
Setembro, o poema «Serradura», no qual desenvolve o mote contido na primeira
quadra:
A minha
vida sentou-se
E não há
quem a levante,
Que
desde o Poente ao Levante
A minha
vida fartou-se.
A carta «dolorosa» de 13 de setembro de 1915 anuncia:
«Temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu».
A conta
tipográfica do Orfeu II fora de 560 mil réis e o pai declarara por carta
não financiar mais a revista. O aparecimento do n.º 3 seria visto como um ato
de insubordinação ao pai que lhe exigira o afastamento e lhe concedia a
permissão de ficar em Paris com uma mensalidade de 250 francos. Sá-Carneiro termina
a carta pedindo desculpa e acrescenta:
«Tudo isto é muito triste, meu querido amigo. Pura miséria! Que
destino horrível este de não ter dinheiro. Mas nada podemos fazer. Logo…»
Na carta de dezoito de Setembro, Sá-Carneiro continua a
lamentar o desgosto pelo fim do Orfeu, mas sobretudo o desgosto
provocado a Pessoa.
Na carta de 25 do mesmo mês, conclui-se que Pessoa não
considera a revista acabada, mas à espera de oportunidade para ser publicada. Sá-Carneiro
informa que Rita-Pintor admite poder financiá-la e acrescenta: «Claro que
Santa-Rita “maître” do Orfeu acho pior que a morte. Entretanto
você resolverá tudo». Acaba insistindo com Pessoa para que vá à livraria
buscar o dinheiro da revista e lho envie com urgência («rasgaram-se-me as
ceroulas, chove muito; tive de comprar ceroulas e botas»). As restantes cartas de
setembro abordam sobretudo a questão do dinheiro.
As cartas dos últimos meses de 1915 mostram um Sá-Carneiro
literariamente ativo a tratar do assunto Orfeu e a pedir ao amigo
diligências para resolver várias situações, nomeadamente, as financeiras, junto
do Augusto da Livraria. Excetua-se a carta do fim do ano, 29 de Dezembro, na
qual refere desarranjos físicos e psíquicos:
«Uma
vertigem de aborrecimento – um comboio expresso de anquilose. Aborrecimento na
alma, por todo o corpo: e o que é pior: nos intestinos. Borbulhas na testa e no
pescoço. Tudo isto, juro-lhe, provocado pelo meu estado de alma impossível, e
cada vez mais sem remédio».
5. Cartas da antevéspera do suicídio - 1916
5. 1. Escrever – a melhor terapia
No
ano de 1916, a primeira carta a Fernando Pessoa é de 8 de janeiro. Sá-Carneiro
conta com a organização do amigo ao pedir-lhe o resumo, enviado em carta de 23
de agosto de 1915, da «Novela Romântica», que quisera e volta a querer escrever,
como sendo o escrever «a melhor terapêutica» e «único remédio»:
«Cada vez posso menos deixar de ser Eu
– e cada vez sofro mais por ser Eu».
5.2. A doidice
Em carta de 13 de janeiro, confessa ao
amigo:
«[…] Porque
creia, meu pobre Amigo: eu estou doido. Agora é que já não há dúvidas. Se
lhe disser o contrário numa carta próxima e se lhe falar como dantes – você não
acredite – tudo isso acabou: o Sá-Carneiro está doido. Doidice que pode passear
nas ruas – claro. Mas doidice. […] Agora só manicómio. […] Não sinto já a terra
firme debaixo dos meus pés. Dá-me a impressão que sulco nevoeiro: um nevoeiro
negro de cidade fabril que me enfarrusca […]».
As
cartas até 18 de fevereiro revelam que a crise se mantém sem se agudizar. A do
dia 3 refere que «continua e continuará tudo na mesma até que eu desapareça
por algum alçapão de estoiro – mas o melhor é não pensarmos mais nisso»!».
Ocupa-se, entretanto, na construção de «Novela Romântica», sobre a qual troca
impressões com Pessoa.
5.3. «A zoina silva sobre mim despedaçadoramente»
Carta
de 18 de fevereiro:
«[…] A zoina silva sobre mim despedaçadoramente.
Fiz ontem um disparate sem nome: como se rasgasse uma nota de mil francos:
talvez depois lhe conte – psicologia arrevesada e brutalidade sem nome. Hoje,
numa necessidade de dar murros e pinotes não em resultado do que fiz ontem mas
em resultado disso e de mil outras pequenas coisas – nova loucura: um telegrama
ao meu pai pedindo 1000 francos para partir para Lisboa. É como dantes, em
minha casa, quando partia os pratos. Não sei ainda se mandarei o telegrama. Já
o tenho escrito – mas não sei nada. Não sei se partirei. Não sei nada. Perdoe
[…]».
Carta do dia 19:
« […] No entretanto não mandei
o telegrama a meu Pai. Mas continuo a não saber nada. Mais calmo, nem por isso
o vendaval deixa de silvar. […] Você não fale a ninguém da minha possível (mas
ainda improvável) partida para Lisboa. Tanto mais que, em tudo isto, há uma
perturbadora história de cartas que dizem que eu não parto».
Carta do dia 21:
« […] Ça ne
va pas du tout – mas em todo o caso vai um pouco melhor. Não telegrafei ao meu
Pai: mas ideia e partida não estão ainda – hélas - postas de parte. A minha
vida de alma e corpo e o mais continua desorganizada. Mas não se assuste. Isto
há de ter uma solução qualquer. Não nada de factos – claro – é tudo
distúrbio pela alma … e bolsa […]».
5.4. Amadrastado - «sopra a Zoina sempre, sempre»
A carta do dia 22 de fevereiro vem revelar
os problemas no seio da família, a partir do segundo casamento paterno, a
juntar à «inquietação eterna, um medo fixo» peculiares. Esse casamento
realizara-se a 4 de novembro de 1915, depois de dez anos de vida em comum. A
madrasta, Maria Cardoso Peixoto, não concordava com a vida ociosa do enteado. A
relação entre enteado e madrasta é estranha, pois as «Cartas a Maria» revelam
uma cumplicidade e uma ternura especial, enquanto nesta carta fica claro que a aproximação seria impossível. No momento, Maria estava com o marido em Lourenço
Marques, daí talvez a ideia do regresso a Lisboa. Todavia a questão é complexa:
«Gostaria até de partir para Lisboa – se não tivesse pena de me ir
embora de Paris: Mas eu nem sei se ao meu Pai convêm a minha partida para
aí. Com efeito isso pode trazer novas complicações: a pessoa que o meu amigo
sabe – eu conheço-a bem – não quererá por forma alguma que eu entre em casa
dela. Ia para o hotel, claro. Mas havia de ir ver a minha Ama. […] A minha
tristeza não tem limites, a criança triste chora em mim - ascendem as saudades
de ternura – sopra a Zoina sempre, sempre. […]»
5.5. «A Zoina, a grande Zoina sempre!»
No mês de março de 1916, Mário de Sá-Carneiro, em Paris,
lutava mais uma vez com a falta de dinheiro. A fim de receber algum, escreve ao
amigo Fernando Pessoa uma carta, datada do dia 5, a pedir-lhe que procure a sua
Ama, a quem envia carta a ser entregue pelo amigo, para que ela lhe entregue um
cordão que Pessoa empenharia «pelo maior preço que lhe derem» e Sá-Carneiro indica
o endereço da casa de penhores. Desse pedido,
nomeado como «sale affaire», pede mil desculpas e acrescenta: «Perdoe-me
ainda isto: se tiver muita necessidade de 5000 reis (as suas crises habituais)
tenho muito prazer em lhos emprestar. Desculpe-me mas eu sou sempre franco».
Ainda acrescenta que se o assunto não puder ser resolvido com a Ama, que Pessoa
procure o Avô a pedir-lhe o envio de 200 francos. Sublinha a urgência referindo
que o caso é «da maior importância», «quase de vida ou de morte».
No
dia 7, através de um postal, reforça o pedido do dinheiro.
No
dia 15, confirma a receção do dinheiro, agradece ao amigo e pede-lhe que «não
se assuste em todo o caso nem se deixe de assustar» e acrescenta:
«Cá irei. Não tenha medo, juro-lhe. Mas não sei coisa
nenhuma».
Acrescenta
ainda que vai deixar de escrever cartas, apenas postais, mas o amigo que as
escreva na certeza de que ele não poderá responder.
6. Cartas de véspera
6. 1. Carta de Fernando Pessoa de 14 de
Março de 1916:
Meu
querido Sá-Carneiro:
Escrevo-lhe
hoje por uma necessidade sentimental — uma ânsia aflita de falar consigo. Como
de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje no
fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num
daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um
muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a
de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos
portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça.
Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da
alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a
criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve
brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de
lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida
sabe a valer isto.
No jardim
que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os
balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e
assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para
esquecer a hora.
Pouco mais
ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à
veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a
vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo
muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não
estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e
que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas
você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide
ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o
verde nas folhas.
Foi por isto
que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento
sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que se
não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à
máquina, para inserir frases e esgares dela no «Livro do Desassossego». Mas
isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa
inevitabilidade com que a sinto.
As últimas
notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes
disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma
caricatura casual.
Isto não é
bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo
astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor
será sentir?
Milhares
de abraços do seu, sempre muito seu
Fernando
Pessoa
P. S. —
Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei
amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu
psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a
sua histeroneurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas
na consciência de si próprio que dele são tão características...
Você acha-me razão, não é verdade?[1]
Você acha-me razão, não é verdade?[1]
6. 2. Resposta de Mário de Sá-Carneiro - «Infelizmente a Zoina silva cada vez mais forte»
Paris
- Março 1916
Dia 24
Dia 24
Meu Querido Amigo,
Recebi
a sua admirável carta. Que Alma, que Estrela, que Oiro! Infelizmente a Zoina
silva cada vez mais forte – lisonjeira, meu Deus, lisonjeira toda mosqueada a
loiro e roxo: por isso mesmo cada vez mais Cobra – cada vez maior, mais
perigosa. Não sei onde isto vai parar – será possível que as engrenagens me não
esmaguem? Mas é tão belo fazer asneiras:
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo…
Contra nós e contra o mundo…
E
pensar que tudo seria tão fácil, tão fácil, tão sem perigo se não fosse o
eterno «dinheiro» … Então talvez que não fosse belo porque não seria perigoso.
Enfim não sei nada… Não lhe posso escrever. É tudo. Mas juro-lhe que senti em
toda a minha ternura a sua admirável carta. Perdoe-me. É como se estivesse
bêbado. Adeus, Escreva sempre. Mil abraços, mil e toda a Alma do seu, sempre
seu
Mário
de Sá Carneiro
6.3. Carta
sobre o suicídio, últimas disposições sobre os seus versos e despedida –
31 de março de 1916
31 de março de 1916
Meu Querido Amigo,
A menos de um
milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de
Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É
assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que
sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu
querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em
verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me
mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou
melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a
qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer
o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo
durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o
histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão.
Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas,
mas não tenho dinheiro. Contava
firmemente com certa soma que pedira ao meu Pai há 15 dias. […]
Segunda-feira preciso irremediavelmente de 500 francos. Como a menos de um milagre
eles não podem chegar… aí tem o meu querido Amigo. É mesquinho: mas é assim. E
lembrar-me que se não fosse a questão material eu podia ser tão feliz – tudo
tão fácil… Que se lhe há-de fazer… Mais tarde ou mais cedo, pela eterna questão
pecuniária, isto tinha que suceder. Não me lastimo portanto. E os astros
tiveram razão… Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil
anos me separam de amanhã. Só me espanta, em face de mim, a tranquilidade das
coisas… que vejo mais nítidas, em melhor determinados relevos porque as devo
deixar brevemente. Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã)
registadamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que
você poderá dispor para todos os fins como se fosse seu. Pode fazer
publicar os versos em volume, em
revistas etc. Deve juntar aquela quadra: «Quando eu morrer batam em
latas etc. Perdoe-me não lhe dizer mais nada: mas não só me falta o tempo e a
cabeça como acho belo levar comigo alguma coisa que ninguém sabe ao certo, senão eu. Não me perdi por ninguém, perdi-me
por mim, mas fiel aos meus versos:
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo…
Contra nós e contra o mundo…
Atapetei-a
sobretudo contra mim – mas que me importa se eram tão densos os tapetes, tão
roxos, tão de luxo e festa…
Você e
meu pai são as únicas duas pessoas a quem escrevo. Mas dê por mim um abraço ao Vitoriano
e outro ao José Pacheco. Todo o meu afecto e a minha gratidão por você, meu
querido Fernando Pessoa num longo, num interminável abraço de Alma.
[…]
Veja lá: mesmo para
os Astros, diga-me potins, fale-me do sensacionismo…
Adeus.
Se não conseguir
arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente deito-me para debaixo do «metro»…
Não se zangue comigo.
6.4. Ainda um «Adeus»
Adeus, meu Querido
Fernando Pessoa
É hoje
segunda-feira 3 que morro atirando-me para debaixo do «metro» (ou melhor do
Nord-Sud) na estação de Pigalle. Mandei-lhe ontem o meu caderno de versos mas
sem selos. Peço-lhe que faça o possível por pagar a multa se ele aí chegar.
Caso contrário, não faz grande diferença pois você tem todos os meus versos nas
minhas cartas. Vá comunicar ao meu Avô a notícia da minha morte – e vá também
ter com a minha Ama â Praça dos Restauradores. Diga-lhe que me lembro muito
dela neste último momento e que lhe mando um grande, grande beijo. Diga ao meu
Avô também que o abraço muito.
Adeus.
seu pobre
Mário de
Sá-Carneiro
P.S.
Envio-lhe com
última recordação a minha carta de estudante da Faculdade de Direito de Paris –
o bom tempo – com o meu retrato. Um grande abraço. Adeus
6.5. «um compasso de espera»
·
«Sem efeito as minhas cartas até nova
ordem – as coisas não correm senão cada vez pior. Mas houve um compasso de
espera. Até sábado».
Paris 4 abril 1916»
·
Telegrama com data de chegada ao correio de Lisboa: 6 de
abril:
«Bien – Carneiro»
6.6. Carta de Sá-Carneiro sobre o suicídio frustrado
Paris, Abril de 1916
Dia 4
Meu Querido Amigo
Neste enredo formidável de coisas
trágicas e até picarescas não sei desenvencilhar-me para lhe fixar certos
detalhes. Olhe, guinchos e cambalhotas sempre – e sempre, afinal, a Estrela de
encontrar pessoas que estão para me aturar. O milagre não se produziu,
pois não se podia produzir – o meu Pai não tendo recebido o telegrama como já
sei. Assim ontem de manhã deixei tranquilamente a personagem feminina[2]
destes sarilhos a dormir, bem certa de que pelo meio-dia regressaria a
sua casa com mil francos… Saí para escrever um pneumático longuíssimo, onde
contava tudo e anunciava o meu suicídio às 2 ½ na estação de
Pigalle (Nord-Sud). E que lhe deixaria o meu «stylo» na caixa de certo café,
como última recordação. Efectivamente preparei tudo para a minha “morte”. […]
Depois fui para deixar a caneta… e dizem-me que M.lle fulana muito aflita
andava à minha procura… […] Resolvi então – embora já tivesse comprado bilhete
– esperar até encontrá-la… De modo que quando a pobre rapariga mais uma vez
aflitíssima me procurava encontra-me a tomar um boc e a consultar o botin num
café… Eram 4 horas… Contou-me então que destacara a irmã para a estação do
Note-Sul, e que fora ao consulado português entretanto, donde voltava… Agora
aqui aparece, quando menos se espera, quem? O Orfeu – meu amigo – o Orfeu!... Os cônsules receberam-na risonhamente… que
não fizesse caso… que sabiam muito bem quem eu era…… que certa revista de
doidos da qual eu fora chefe etc…. e que era um détraqué, dum grupo de tarados,
embrutecidos pela cocaína e outras drogas (sic)… hein, há-de concordar que isto é de
primeira ordem! Enfim… Ficou muito contente por me encontrar – descompôs-me
claro e foi arranjar dinheiro visto que eu o não tinha… Antes disso fiz outra
cena: quis partir um copo – eu – na minha cara. Ela agarrou-me a tempo a mão.
Não obstante rachei um beiço… Uma beleza como você vê… Arranjou-me também
dinheiro para mandar novo telegrama ao meu Pai – e em suma até receber resposta
será ela que – não sei como: isto é: demais o sei – me arranjará o dinheiro,
Veja você que coisa tão contrária à minha “sorte”, à minha psicologia… Agora já
não é blague se se disser que eu vivi à custa de uma mulher…Lindo hein?
Um encanto… O termo de tudo isto: Mistério… Talvez ainda o metro… Mas não faça
caso… Ui, que praga! Perdoe todos os sustos por que o fiz passar (Venho de
resto de enviar-lhe um telegrama a sossegá-lo). Imagine que a rapariga teve que
arranjar 60 francos que gastámos em dois dias num restaurante e café pois na 2ª
feira eu garantira arranjar dinheiro… (não olhara a despesas porque me mataria).
Há-de concordar que tenho sorte em topar
sempre com criaturas que não me mandam passear – e que no fundo gostam de mim
pela minha Zoina… Porque a verdade é esta:
é a única coisa que me torna interessante. Você não acha? […]
6. 7. Penúltimas cartas de Sá-Carneiro a Pessoa: a crise para além do dinheiro.
· 17 de Abril
«Não
tenho nervos para lhe escrever, bem entendido. A minha doença moral é terrível
– diversa e novamente complicada a cada instante. O dinheiro não é tudo. Hoje,
por exemplo, tenho dinheiro. Mas você compreende que vivo uma das minhas
personagens – eu próprio, minha personagem – como uma das minhas personagens.
De forma que se pode ser belo, é trucidante. E o pior é que é muito belo: de
maneira que nem o meu admirável egoísmo me pode desta vez salvar. Ainda tenho
uma esperança – mas não me parece. Não sei onde isto há-de ir parar. Porque
a minha situação é insustentável. Um horror. Perturbante, arrepiante o
que me conta do seu estado de alma nos meus dias agudos. Mas natural.»
Depois, envia versos de uma poesia inacabada
de agosto de 1915, considerando-os profecia do que lhe está a acontecer. Essas
quadras criam uma personagem feminina.
«Começava
assim:
Ah, que te esquecesses sempre das
horas
Polindo as unhas –
A impaciente das morbidezas louras
Enquanto ao espelho te compunhas…
Polindo as unhas –
A impaciente das morbidezas louras
Enquanto ao espelho te compunhas…
[...]
Pois bem: previram a personagem real da minha vida de hoje
estes versos. […] E note: aqui não há amor, não há afecto: e o desejo é até a mínima
prisão: Mas há o quebranto – quebranto para mim – que os meus versos
longinquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me – suplico-lhe – uma
longa carta: e diga se mede bem o perigo, se me compreende. É um horror, um
horror – porque é um grifado sortilégio. Porque é que eu se devia encontrar
alguém: fui encontrar alguém – ainda que noutros vértices – igual a mim
próprio? Não sei nada. Tenha pena de mim: escreva-me imediatamente uma grande
carta».
· 18 de abril de 1916
Esta é a última
carta de Sá-Carneiro, transcrita na obra de Manuela Parreira da Siva, contudo
ela informa o não aparecimento até então da carta de
despedida, escrita no dia 26 de acordo com informação de José Araújo.
Na carta de 18,
pede ao amigo que lhe escreva muito e afirma:
[…]
Só o meu egoísmo me podia salvar. Mas tenho tanto medo da ausência. Depois –
para tudo perder, não valia a pena tanto escoucear. Doido! Doido! Doido! Tenha
muita pena de mim. E no fundo tanta cambalhota. E vexames. Que fiz do meu pobre
Orgulho? Veja o meu horóscopo. É agora, mais do que nunca, o momento. Diga. Não
tenha medo. Estou com cuidado no meu caderno de versos. […].
7. Data do suicídio – 26 de abril de 1916
7.1. A última carta de Pessoa ao amigo
Nesse mesmo dia, Fernando Pessoa
escrevia-lhe a carta que o amigo já não receberia. Nela se desculpava pelo atraso em escrever, justificando-se.
7.2. José Araújo e o suicídio de Mário de Sá-Carneiro
José Araújo surge na carta de 8 de
fevereiro de 1916, a propósito de uma cena num café, onde Sá-Carneiro lia
as primeiras páginas de A Confissão de Lúcio «a um rapaz Araújo de
que lhe falarei mais circunstanciadamente, pois é uma ligeira sensibilidade
sensacionista». Manuela Parreira da Silva, em nota à carta, esclarece que
José de Araújo era um comerciante português a exercer em Paris. Um «iletrado»,
mas «amigo» de Sá-Carneiro, segundo carta de Carlos Ferreira a Pessoa.
É
José Araújo quem comunica o suicídio a Fernando Pessoa, em carta de 27 de
abril, tendo esta por objetivo fazer chegar às mãos de Pessoa a última carta do
amigo. Araújo promete-lhe uma carta onde tudo será explicado.
Essa será a carta de 10 de maio de 1916, na qual conta
como fez amizade, havia seis meses, com Sá-Carneiro e se tornaram amigos
íntimos. Refere que, no mês de Março, o poeta se interessara, «infelizmente»,
por uma rapariga, que o fizera mudar muito. Era com ele que o poeta desabafava:
«que não podia continuar assim, impossível, impossível, aquela mulher; um
mistério, um horror, e por aqui fora muito nervoso, e contava-me que se tinha
passado». Num parêntesis, informa que Sá-Carneiro «tomava estricnina em grandes
doses». Depois, passa a contar o sucedido no dia 26 de abril, reproduzindo o
convite de Sá-Carneiro: «- Araújo preciso que você vá hoje a minha casa às 8h. em
ponto, sem falta». Ele, à hora (penso que as 8 horas serão 20 horas), entrou no quarto e viu-o deitado, perguntou
se lhe doía a cabeça e a resposta foi a informação de que acabara de tomar
cinco frascos de estricnina. Araújo saiu em busca de auxílio e ao regressar afirma ter presenciado «a coisa mais horrível que se pode
imaginar». Mário de Sá-Carneiro agonizava em agonia horrível que tal
substância provoca. Segundo Araújo, morrera às 8hs (20hs.) e 20 minutos.
Sá-Carneiro tivera o cuidado de declarar por escrito o suicídio
por vontade própria e deixara cartas de despedida para o pai, para a «rapariga»
e para os amigos: Pessoa, Carlos Ferreira e Araújo.
Conta os pormenores fúnebres e informa que o funeral
se realizou no dia 29 e que foi enterrado no cemitério de Patin, em sepultura
alugada por cinco anos renováveis.
Marina Tavares Dias, em Cronologia da Vida e Obra de Mário de Sá-Carneiro[3], informa que essa sepultura já não existe desde 1949. E mais acrescenta que não existe documento oficial comprovativo da morte de Sá-Carneiro.
Marina Tavares Dias, em Cronologia da Vida e Obra de Mário de Sá-Carneiro[3], informa que essa sepultura já não existe desde 1949. E mais acrescenta que não existe documento oficial comprovativo da morte de Sá-Carneiro.
6. Conclusão
A correspondência entre Mário de
Sá-Carneiro e Fernando Pessoa é fundamental para a construção da obra dos dois
escritores. A obra de Pessoa absorve Paris, a cidade das artes, através das
cartas do amigo. Existe um jogo cúmplice por parte de Pessoa que gosta de
“pregar partidas” a Sá-Carneiro, metendo certas ideias do amigo nos seus poemas
ou respondendo-lhe com novo poema ou mesmo com a criação de heterónimo. A
intertextualidade funciona.
Por sua vez, Sá-Carneiro aprecia a
opinião crítica de Pessoa e, por isso, faz passar parte da sua obra pelo seu olhar.
Ao nível literário, poderíamos
considerá-los jograis, que, a distância, vão dialogando poeticamente em
amplificação, desenvolvendo uma modalidade textual expressa por Pessoa nos
seguintes versos: «Como
éramos só um falando! Nós / Éramos como um diálogo numa alma».
Para
além do assunto literatura - mais ou menos presente nas cartas de Sá-Carneiro e
elas próprias documentos literários guardados por Pessoa -, lemos nelas o
testemunho do sofrimento de Mário, desesperado com frequência por falta de
dinheiro e, por vezes, por falta de ânimo. Verifica-se que ele, no seu egoísmo,
não poupa o amigo que o lê e sofre sem lhe poder valer a não ser por cartas e
pelas muitas diligências de que Sá-Carneiro o incumbe.
A
morte como tema de pensamento é próprio dos seres humanos, todos a ela
condenados, mas especialmente daqueles que tiveram de enfrentar a morte de alguém muito próximo demasiado
cedo. No caso de Sá-Carneiro: a mãe aos dois anos, a avó
paterna pelos sete, e dois jovens amigos com quem literariamente trabalhara:
Cabreira Júnior, por suicídio, e Ponce de Leão, com gripe pneumónica.
No
que respeita ao assunto suicídio nas cartas, pude concluir o seguinte:
- O primeiro registo aparece logo na carta número seis, sob a forma de “desaparecimento”, e data de 16 de novembro de 1912. Tem desenvolvimento, na carta número oito, que fala de suicídio e morte, como assuntos muito pensados, revelando amor à vida, pelo dolorosos pesar de forçosamente ter de morrer um dia.
- O facto de se assumir como pertencente àqueles que bebem o copo de fel até ao fim prepara o interlocutor para o desfecho da sua vida.
- A produção literária resultante do seu trabalho intelectual é a força que o move em 1913. Ele tem consciência de que o trabalho literário é a melhor e a única terapia.
- As relações familiares são tema frequente nas cartas ao amigo. A carta de 13 de julho de 1914 regista o fim de uma etapa aconchegada da sua vida, no momento em que a casa se desfaz com a partida do pai para África. Nessa carta admite como fim do seu penar o suicídio físico ou apenas moral.
- A primeira guerra mundial surge nas suas cartas como um horror, identificando-se com Paris em guerra. Passa por Barcelona, com registo em carta da paúlica Sagrada Família de Gaudi, e regressa a Lisboa. Aí vive momentos literários notáveis e faz-se o lançamento dos dois números da revista Orpheu, em março e junho de 1915.
- A interrupção da estada em Lisboa fez-se abruptamente por acontecimento enigmático de que nem quer ouvir falar. Esse acontecimento, segundo Manuela Parreira da Silva, terá tido como epicentro a futura madrasta, logo, como consequência, afetará a relação com o pai, do qual depende emocional e financeiramente. No que respeita a finanças, também a revista dele depende, uma vez que seu pai pagara os dois números do Orpheu. De Paris chegam cartas que expressam a necessidade urgente do dinheiro proveniente da venda da revista. Entretanto, as cartas tratam da organização do Orpheu 3.
- A carta de 13 de setembro de 1915 traduz uma machadada nos sonhos artísticos do grupo do Orpheu: o pai de Sá-Carneiro deixara de financiar a revista. Mário conformava-se, uma vez que o pai lhe permitia ficar em Paris com uma mesada de 250 francos. Preocupava-o a reação do amigo Pessoa.
- Com a consciência de que a terapia passava pelo trabalho literário, Sá-Carneiro ia gerindo a sua «doidice» até referir ter feito um «disparate sem nome», que o levava ao desejo paradoxal de partir para Lisboa sem querer partir ou mesmo sem poder partir, atendendo ao acontecimento enigmático que o fizera partir de Lisboa em Julho de 1915. Confirma-se que esse acontecimento tinha a ver com aquela que, desde novembro de 1915, era oficialmente sua madrasta.
- Nas cartas de 1916, a zoina silva e vai aos poucos despedaçando esse homem de 25 anos, que perdera o porto de abrigo. A ideia de suicídio vai tomando forma - o «metro» ou a estricnina, que, segundo José Araújo, ia consumindo «em grandes doses».
- Numa das últimas cartas, Mário aponta as razões do suicídio, afirmando que «o dinheiro não é tudo», mas existe também a «doença moral» que «é terrível – diversa e novamente complicada a cada instante». Talvez relacionado com a crise moral esteja o encontro com uma rapariga, que lhe surge como a personagem feminina profetizada num poema de agosto de 1915. José Araújo, na carta a Fernando Pessoa, responsabiliza essa rapariga pelo final trágico do escritor.
Todavia, Sá-Carneiro tem
outra opinião:
Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal
tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia
nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma:
eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado
por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não
há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer.
Depois
de ler o sofrimento deste escritor suicidário na primeira década do século XX,
pode perguntar-se que poderia ter sido feito para evitar o suicídio.
A
resposta fácil por óbvia seria a resolução do pagamento adequado ao escritor.
Pelas cartas, conclui-se que o escritor ganhava apenas a sua parte quando o
livro ou a revista eram vendidos. O escritor tinha grande despesa na edição –
560 mil reis o Orpheu 2 – e depois verifica-se que o pagamento retardado é feito de
acordo com as vendas, ficando as sobras ao desbarato («nem dez reis dariam
pelos Orfeus» - escreveu ele, a respeito dos sobrantes).
Para além disso, a
escolha da substância letal precisaria de esclarecimento de alguém que pudesse
ajudar a uma escolha para uma boa morte. Ainda hoje, passado um século, o suicidário se encontra sem
ajuda médica legal para atingir o seu fim. Apenas a Suíça e o estado norte-americano
do Oregon permitem legalmente o suicídio assistido, não sendo preciso o estado de
saúde terminal.
Por sua vez a World Medical Association Marbella/Espanha – 1992, informa:
O suicídio medicamente
assistido, assim como a eutanásia,
é eticamente inadequado e deve ser condenado pela profissão médica. Quando a
assistência do médico é intencional e dirigida deliberadamente para
possibilitar que um indivíduo termine com a sua própria vida, o médico atua de
forma eticamente inadequada. Entretanto, o direito de recusar um tratamento
médico é um direito básico do paciente e o médico não atua de forma eticamente
inadequada, mesmo que o respeito a este desejo resulte na morte do paciente[4].
Daqui se pode concluir que
o suicídio continua a funcionar dolorosamente em solidão, por força da lei e da ética.
Não foi por acaso que José
Araújo, verificando que Mário de Sá-Carneiro estava a morrer vítima de suicídio,
foi diretamente à polícia buscar socorro médico, trazendo dois agentes,
que o acompanharam ao quarto do escritor agonizante. Segundo Araújo, esses
agentes vinham ajudá-lo a transportar o poeta para um automóvel, a fim de o
levarem para o hospital. Quando chegaram ao quarto, Araújo afirma:
«[…]
foi então que presenciei a coisa mais horrível que se pode imaginar. Sá-Carneiro agonizava congestionado numa
ânsia horrível, todo contorcido, as mãos enclavinhadas, momentos depois
expirava».
Estando todos condenados à morte, é preciso e urgente organizar a arte de bem morrer.
29 de abril de 2016 (centenário do funeral de Mário de Sá-Carneiro - «modesto, mas decente, não se disse nada, pois não o podíamos mesmo fazer»)
Maria José Domingues
Bibliografia
ativa:
Silva,
Manuela Parreira da (1999). Fernando Pessoa Correspondência
(1905-1922), Assírio e Alvim, Lisboa.
Silva,
Manuela Parreira da (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a
Fernando Pessoa, Assírio e Alvim, Lisboa.
Bibliografia
passiva:
Dias Marina Tavares (1990) - Mário de
Sá-Carneiro, 1890 -1916, Presidência do Conselho de Ministros, Secretaria
de Estado da Cultura, Biblioteca Nacional, Lisboa.
1401-v_PDF/b-11401-v_PDF_24-C-R0150/b-11401-v_0000_capa-3_t24-C-R0150.pdf
Sá-Carneiro, Mário (1985) – Obra Poética, introdução, organização e notas de António Quadros, livros de bolso Europa-América.
Martins, Fernando Cabral (2010) - Mário de Sá-Carneiro - Verso e Prosa, Assírio e Alvim, Lisboa.
World
Psychiatric Association. Physicians, patients, society: human rigths and
professional responsabilities of physicians. Amsterdam: WPA, 1996:55-6.
http://www.lusosofia.net/textos/20130604-domingues_maria_jose_fernando_pessoa_e_a_nova_poesia_portuguesa.pdf
[1]
Apenas se conhecem duas cartas de Pessoa a Sá-Carneiro: esta (transcrita a partir do Arquivo Pessoa - http://arquivopessoa.net/textos) e a de 26 de Abrilde 1916.
[2]
Em nota a esta carta, Manuela Parreira da Silva escreve: «A rapariga referida
acompanhou os últimos tempos de Mário de Sá-Carneiro. Conhecida como Helena, o
seu verdadeiro nome seria Renée».
[3]
Artigo publicado em Mário de Sá-Carneiro, 1890 -1916, Presidência do
Conselho de Ministros, Secretaria de Estado da Cultura, Biblioteca Nacional,
Lisboa, 1990.
1401-v_PDF/b-11401-v_PDF_24-C-R0150/b-11401-v_0000_capa-3_t24-C-R0150.pdf
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