sábado, 12 de março de 2016

Tabucchi e Pessoa



António Tabucchi - Os Últimos três dias de Fernando Pessoa – um delírio
1ª edição , Éditions Seuil, 1994
2ª edição, Quetzal, 1995

O protagonista é Fernando Pessoa em plena crise hepática, entre 28 e 30 de Novembro de 1935.
Num primeiro momento, «28 de Novembro de 1935 - A minha vida foi mais forte do que eu», Pessoa, muito consciente, prepara a sua ida para o hospital. As primeiras personagens são reais: o senhor Manacés[1] – o seu barbeiro -, a porteira, os seus amigos – Francisco Gouveia e Armando Teixeira Rebelo – e o seu patrão – Moitinho de Almeida. Os três últimos acompanham-no no táxi rumo ao hospital S. Luis dos Franceses[2].
Segue-se «A hora dos fantasmas», meia-noite. O primeiro fantasma é Álvaro de Campos, a quem Pessoa absolve por Álvaro declarar ter amado, pois só o amor o torna humano.
Depois chega Caeiro com uma revelação: «Sou o seu pai». E Pessoa esclarece: «Fui eu que o elegi como pai e Mestre».

No segundo dia, «29 de Novembro de 1935 - A alguns quilómetros de Lisboa», as visitas fantasmagóricas continuam e é a vez do heterónimo Ricardo Reis, que afinal não fora para o Brasil e ficara em Azeitão. Segue-se a visita do semi-heterónimo Bernardo Soares[3] com a receita da «lagosta suada à moda de Peniche» e o seu deslumbramento com Cascais e com o convite de D. Pedro.

No terceiro dia, «30 de Novembro de 1935 - Também eu esqueci a morte», é a vez da visita de António Mora, retratado à semelhança da figura do Dr. Gama Nobre com quem se unifica, internado na Casa de Saúde de Cascais, de acordo com o texto nº 229 da obra Pessoa por Conhecer II de Teresa Rita Lopes, dentro do ponto «2.9. A militância neopagã de A. Mora». Contudo, o «velho de aspeto nobre» não recitava o lamento de Prometeu, mas os primeiros versos traduzidos de «Dead by Water» de T. S. Eliot[4] (1888-1965) - «Flebas o fenício morto há quinze dias, esqueceu o grito das gaivotas e as vagas profundas do mar» - e acrescenta: «para me anunciar a sua sorte, ó grande Fernando». A «sorte» engloba a morte e a ressurreição pela poesia e pela força da natureza cíclica. Todavia, Pessoa revela-se, num primeiro momento, mais preocupado com a obra do visitante, O Regresso dos Deuses. Mora responde que ninguém publicará a obra de um louco, sobretudo depois da morte de Pessoa. Este sossega-o com o baú dos papéis onde tudo está guardado e com o crítico que os virá a trabalhar - «um homem cheio de sensibilidade e de cultura que se chama Coelho». Com estas palavras o autor homenageia o pessoano por excelência, Jacinto do Prado Coelho.
A obra termina com António Mora a assistir à morte de Pessoa, recitando parte da lamentação de Prometeu de Ésquilo (tal como surge no texto 229, acima referido):

«Ó céu divino, velozes ventos alados, nascentes dos rios, sorriso inumerável das ondas marinhas, terra, mãe universal, a vós invoco, e ao globo do sol que tudo vê, vede a que estou sujeito».

«Eram exactamente vinte horas e trinta» do dia 30 de Novembro de 1935.

Esta obra  pode ser lida como uma obra dramática em três atos, os três dias da crise fatal, trazendo à boca de cena Fernando Pessoa em diálogo com as suas criações fictícias mais relevantes, por isso, ela tem sido representada por várias companhias de Teatro.


[1] « Manassés, segundo António [seu filho], era mais do que barbeiro do Senhor Pessoa, era também seu amigo e confidente.» , in “O barbeiro de Fernando Pessoa” de Jorge Adelar Finatto  - http://ofazedordeauroras.blogspot.pt/2010/04/o-barbeiro-de-fernando-pessoa.html.

[2] Sónia Louro, na sua obra Fernando Pessoa – romance (2014), retoma estas personagens para a construção do mesmo momento da vida de Pessoa.
[3] Bernardo Soares, Devaneio entre Cascais e Lisboa. L. do D «Devaneio entre Cascais e Lisboa».
[4] T. S. Eliot (1888-1965), prémio Nobel em 1948.

2 comentários:

  1. Entre o Sono e Sonho

    Entre o sono e sonho,

    Entre mim e o que em mim

    É o quem eu me suponho

    Corre um rio sem fim.



    Passou por outras margens,

    Diversas mais além,

    Naquelas várias viagens

    Que todo o rio tem.


    Chegou onde hoje habito

    A casa que hoje sou.

    Passa, se eu me medito;

    Se desperto, passou.



    E quem me sinto e morre

    No que me liga a mim

    Dorme onde o rio corre —

    Esse rio sem fim.


    Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


    Depois de ter lido alguns comentários
    ao livro de António Tabucchi, um amante de Pessoa, os três últimos dias de Pessoa, antes da sua morte, com uma crise hepática, decidi procurar um poema de um dos mais brilhantes pensadores portugueses e do mundo. De sempre. Que usou a poesia, uma arte, muito completa e complexa, para transmitir a sua visão filosófica do mundo. E, como ninguém o fez, retratou a condição humana. Podemos dizer que Pessoa mergulhando no mais profundo do seu EU, encontrou nele próprio, todos os EUS do mundo. Mais: teve de esbarrar no muro do Outro. E criou o seu método, criativo, quanto ele, de desvendar esse insondável mistério do que faz o homem, do que quer, para onde vai e caminha. Para que serve viver? Vive-se ou trabalha-se, ou sonha-se ou dorme-se. Ou ama-se, ou viaja-se, ou caminha-se em direção a um horizonte, que lá chegado, outro encontrará. E, assim, sucessivamente. Esse método criativo de ter personagens que incarnam a substância das suas reflexões filosóficas, foi pioneiro na heteronomia. Precisava para se desnudar. Já que Pessoa se sentia, como um conjunto de pessoas, todas iguais e todas diferentes. E foi fonte de inspiração, para quantos dele se abeiram, Fernando é uma pessoa incomum, e que apaixonou: Poetas, filósofos, sociólogos, músicos, compositores, pintores, como aconteceu com António Tabucchi. Viu-se obrigado a escrever antes da sua morte. Ao mais alto nível da ficção. O que valeria o seu livro ser fonte para a dramaturgia.
    A Plêiade de "Outros" criados por ele, alinham-se num cortejo para lhe trazer uma oferenda. Na hora da morte. E Pessoa, responde a cada oferenda, porque cada um é ele-próprio. E vivemos, com Tabucchi a fantasia e o questionamento sobre a Morte e A Vida. E a Viagem-Vida.

    Fui procurar um poema. E entre o Sono e o Sonho, fascinou-me.
    Em quatro quadras, o,poeta desvenda-se:
    E reaparece a questão de ser poeta e filósofo. E a imagem do rio que nele corre! E as margens. E as viagens que todo o rio tem.
    Dorme onde o rio corre, esse rio que corre sem fim...

    "E quem me sinto e morre

    No que me liga a mim

    Dorme onde o rio corre —

    Esse rio sem fim."

    E como o rio, sem fim é este

    dizer,sem nada dizer, deixando tudo

    por dizer, para que outros, leigos ou

    não, o possam tentar dizer é decifrar.

    01abril
    Margaridaa

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Margarida,
      Este blog agradece a permanência ao teu olhar de leitora atenta e crítica, filosofando a favor da humanidade expressa pela escrita.
      A claridade da tua visão do mundo incentiva-o.
      Pelo diálogo intertextual que vai acontecendo, talvez possa afirmar que o «aprender até morrer» é nosso.

      Eliminar