domingo, 15 de fevereiro de 2015

ALABARDAS de José Saramago



ALABARDAS de José Saramago
Notas de leitura

Veja-se o poder da escrita saramaguiana na ótica do aprender até morrer, pois o que interessa é a busca da sabedoria na sua infinitude.
Apesar de ser leitora assídua da obra de Saramago, ela consegue surpreender-me sempre pela temática. Neste caso, as armas de guerra.

Gosto de Saramago e do seu poder de comunicação. Quero saber o facto motivador da obra e ele comunica-o:
a)      «Uma velha preocupação minha (por que nunca houve uma greve numa fábrica de armamento) deu pé a uma ideia complementar que, precisamente, permitirá o tratamento ficcional do tema».
b)      Uma bomba não explode na Guerra Civil de Espanha e contém uma mensagem escrita a dizer isso mesmo: esta bomba não explodirá.
c)      Em L’Espoir, André Malraux refere a homenagem prestada em Milão aos operários mortos por terem sabotado obuses.

A obra homenageará os atos sabotadores da indústria de morte.

1.      O título
1.1. Do caderno de José Saramago:

«26-12-2009
Dois meses sem escrever. Por este andar, talvez haja livro em 2020… Entretanto a epígrafe será
Alabardas, alabardas,
Espingardas, espingardas.

É de Gil Vicente, da tragicomédia Exortação da Guerra.»

Os dois versos referidos pertencem à fala da Rainha Pentesileia, incitando os portugueses a abandonarem os prazeres da paz e a entregarem-se à guerra:
«Oh! Deixai de edificar /tantas câmaras dobradas, / muy pintadas e douradas, / que he gastar sem prestar. / Alabardas, alabardas!/ Espingardas, espingardas! / Não queirais ser Genoeses, / senam muyto Portugueses, / e morar em casas pardas».

Não deixa de ser curioso que o boicote à guerra, homenageado no seu texto, se faça sob o título do apelo à guerra: «Alabardas, alabardas! / Espingardas, espingardas!».

1.2.  

a)     Da Enciclopédia Verbo: «Alabarda (do al. Helmbarte, literalmente, machado de capacete) – Hist. Arma de haste, em que se combinavam a lança  e o machado […] quando foram organizadas tropas apeadas regulares, começaram a ser dotadas com esta arma, que assim apareceu, primeiro,  nos princípios do séc. XIV, na Suíça e na Alemanha».
b)     Da Enciclopédia Verbo: «Quando se introduziu na 2ª metade do séc. XIV o uso das armas  de fogo portáteis, foi dado o nome de espingarda a uma forma alterada dos trons de mão, ou a outras armas de fogo, não muito pesadas».
Wikipédia, a enciclopédia livre: «Espingarda é o nome genérico dado a armas de fogo portáteis usadas em Portugal no início do século XVI. O termo espingarda já convive com o nome arcabuz em meados do século, como no caso do regimento de Tomé de Souza (1548), que determinava que os capitães hereditários eram obrigados a ter “vinte arcabuzes ou espingardas”».

2.      A narrativa
2.1.  Personagens e armas pesadas

O protagonista é o homem comum, de nome bem estudado - artur paz semedo (paz com medo, paz sem medo). Tendo como primeiro apelido Paz, trabalha há mais de 20 anos numa fábrica de armamento, ainda que seja na secção de faturação. Tal profissão duradoura levou sua pacifista mulher a separar-se dele.
Também o nome da fábrica de armamento é perfeito para o assunto: Belona – nome  da deusa romana da guerra (bellum) com o templo mais antigo no campo de Marte, tendo em frente a columna bellica, uma pedra vermelha usada para as declarações de guerra. Remonta-se assim à Antiguidade para que estejamos cientes de que o ser humano é belicoso. Rembrant pintou a deusa e Rodin esculpiu-a:


Fabrico de armas existe desde sempre. A guerra e a paz coabitam no ser humano. No caso do casal protagonista, ficou a pacifista para um lado e o Paz, trabalhador na fábrica Belona, para outro. Separados, comunicam via telefone e correio eletrónico, Esse diálogo fomenta a construção da narrativa.
Cada um dos nomes de identidade gera linhas de escrita com halo de humor. A mulher pacifista de nome Berta, muda seu nome para Felícia. Pois como poderia uma pacifista chamar-se Berta, ao tomar conhecimento de que a Grande Berta mais famosa foi um enorme e devastador canhão alemão, usado para bombardear Paris, na 1ª guerra mundial.


E se Berta é um canhão potente, o «órgão de Estaline», referido na página 14, é uma peça de artilharia usada na segunda guerra mundial pelo exército vermelho: um lançador de foguetes múltiplos de baixo custo e grande mobilidade.




O sonho de Paz Semedo era trabalhar na faturação das armas pesadas. Sabia-se que a fábrica belona s.a. estava em vias de construir um tanque de guerra, inspirado no Merkava (em hebraico: מרכבה) que é o principal tanque das Forças de Defesa de Israel.


3.      Narrativas bélicas
O protagonista, apaixonado por armas pesadas, também é entusiasta de filmes de guerra, sem os quais não pode passar. No clímax da narrativa fílmica, ele encarna a própria deusa Belona, diz-nos Saramago.
O filme fulcral é «L’Espoir» de André Malraux, a que assistiu como homem simples capaz de lhe oferecer suas lágrimas. Apesar de não ser homem de grandes leituras, decidiu procurar o livro. Tendo encontrado dois, um em português outro em francês, em alfarrabista, adquiriu-os e fez a sua leitura bilingue. A guerra civil de Espanha vivida por Malraux é o assunto da narrativa. Quase no final da obra, «paz semedo» emperra na referência à homenagem prestada «aos operários fuzilados em Milão por terem sabotado obuses». Reagiu com intolerância de amante de armas: tiveram o que mereciam. Sentira como se fosse uma ofensa pessoal. E decidiu falar sobre o assunto com a ex-companheira. A pacifista, após discordâncias expectáveis, sugeriu-lhe uma investigação sobre a venda de armas para a Espanha, entre trinta e seis e trinta e nove, os anos da guerra civil. Ele pediu a devida licença ao administrador-filho, que a nega, num primeiro momento, mas que a concede depois de falar com o ex-administrador, seu pai. Este recorda problemas na fábrica ligados à guerra civil de Espanha: uma greve em organização, sabotagens e a intervenção da polícia política, que fez desaparecer alguns operários.
 Triunfante, artur paz semedo tem finalmente licença para iniciar a investigação de documentos dos anos trinta do século XX. E comunica a novidade a Felícia, que, satisfeita, usa a 1º pessoa do plural: «é muito mais do que esperávamos». Saramago valoriza o casal que se estimula na ação. E não é por acaso que, depois da conversa de casal, Artur «sentiu de repente uma fome de lobo».

3. A fábrica de armas: da entrada às catacumbas

Estamos perante a descrição de um edifício que nos surge como real e, por isso, vamos procurar informação e encontramos a fábrica lisboeta Braço de Prata, como o local onde trabalha artur paz semedo. Segundo as palavras de Pilar Del Rio: “José escolheu esta fábrica porque era muito importante na época em que estava a funcionar e porque se lembrava dela, dos operários, da fachada”.
Artur paz semedo desce à cave, onde se estende o arquivo histórico, bem guardado por dois homens: o chefe Arsénio e o ajudante Sesinando. O acesso não é facilitado apenas com documento de livre-trânsito. É preciso uma declaração com a ordem do trabalho a fazer. Burocracia resolvida e com a ajuda de Sesinando, o trabalho de paz semedo inicia-se com sucesso e é reconhecido pelo administrador, que, por essa altura, passa a desejar ser chamado de engenheiro.

4.      A 22 de Fevereiro de 2010, José Saramago escreve no seu caderno sobre o assunto, pela última vez, faz cinco anos:

«As ideias aparecem quando são necessárias. Que o administrador-delegado, que passará a ser mencionado apenas como engenheiro, tenha pensado em escrever a história da empresa, talvez faça sair a narrativa do marasmo que a ameaçava e é o melhor que poderia ter-me acontecido. Veremos se se confirma.»


Bem haja, José Saramago.

Maria José Domingues


3 comentários:

  1. Mais uma vez, no Aprender até Morrer, posso dizer que a escolha do título do blogue de Maria José Domingues é, em toda a sua dimensão, notável. Não só porque desce às raízes populares do saber de experiência feito, como também, pela vastíssima gama de temas que, nos últimos anos, nele, blogue, tem partilhado. E, partilhar é, talvez, um dos registos fundamentais desta sua apurada escrita, com um sabor a rigor, como é uma das suas características.
    E, desta forma, se cumpre o desiderato deste blogue, aprender até morrer. Comigo, cumpre-se, aprendo.
    No tema versado, não podia deixar de me fascinar. Ao tratar-se de uma visitação por um dos últimos livros, já a título póstumo, editado em outubro de 2014, de José Saramago, um dos nossos maiores escritores e que, para mim, é, foi, o escritor que melhor, através de uma escrita, com contundência, rigor, verdade, coerência, pôs a nu, as misérias deste país, a hipocrisia, o conformismo, a corrupção, a violência, a indiferença, a questão do Poder, dos Poderes, sejam políticos, religiosos, económicos e financeiros, E, um dos seus atributos da sua escrita, para além, do rigor, da investigação em que se baseia, para a sua ficção, com elevada maestria de uma arte, literária, interventiva, é o sarcasmo e humor. Que nos faz meditar. Rir, mas, sobretudo, indignar.
    Neste tema do seu último livro, que li, logo após ter sido editado, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, preparado nos anos que antecederam a sua morte, é um tema que não poderia faltar no conjunto da obra de Saramago: o tema da guerra que desde sempre, evidenciou a crueldade humana e, especialmente, o armamento e o tráfico que lhe está associado, com ligações a interesses espúrios e que revelam a miséria humana, o expoente máximo da violência: matar. E mostrar o poder no que tem de mais vil.
    É apaixonante a escolha e a caraterização das personagens: Artur Paz Semedo e a sua companheira, Felícia. O desenlace da separação foi inevitável, pelas convicções de cada um, reveladas no seu antagonismo.
    Não só, mais uma vez, o humor se regista nos telefonemas que, entre ambos, acontecem, fazendo-nos sorrir, mas refletir, retirando-nos da nossa penosa iliteracia, ao fazer-nos percorrer um caminho a rebentar de saberes, até Braço de Prata, em Lisboa, a fábrica produtora dos poderosos armamentos. E de suas ligações com a Guerra Civil de Espanha.
    E a velha preocupação por Saramago, trazida, para esta obra, com emoção. E, como tão bem expressa a Maria José, quando abre o tema:

    a) «Uma velha preocupação minha (por que nunca houve uma greve numa fábrica de armamento) deu pé a uma ideia complementar que, precisamente, permitirá o tratamento ficcional do tema».
    b) Uma bomba não explode na Guerra Civil de Espanha e contém uma mensagem escrita a dizer isso mesmo: esta bomba não explodirá.
    c) Em L’Espoir, André Malraux refere a homenagem prestada em Milão aos operários mortos por terem sabotado obuses.

    "A obra homenageará os atos sabotadores da indústria de morte."

    Muito mais haveria a dizer, sobre esta obra que, mais uma vez, nos oferece momentos de reflexão, sobre a verdade e a transparência, um grande desígnio e desafio, para todas e todos, cidadãs e cidadãos que, atentos, procuram o exercício do poder da Cidadania. E não o enjeitam.
    Termino com o que disse Pilar
    del Río, na edição de Setembro da revista Blimunda da Fundação José Saramago, sobre este livro, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas como um romance sobre as armas e a responsabilidade cívica.

    "As personagens que povoam o livro têm discursos e contradições elaboradas a partir do convencimento de que não ver é mais rentável do que ver – ou de que a indiferença é mais cómoda que a acção – e da necessidade do conhecimento e da intervenção para não ser cúmplice com o despropósito da violência. José Saramago escreveu um romance de personagens e situações que se confrontam com a realidade, tantas vezes mais obstinada que as pessoas, por isso não ver faz-se tão dramático.”

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    1. O teu comentário crítico, Guida, valoriza o tema, num saber mais que o blogue «aprender até morrer» tem como objetivo principal.
      Bem hajas pela tua generosa participação.

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  2. Agostinho Dominguesmaio 04, 2015

    Se ler é, etimologicamente, juntar letras, compreender um texto implica a sua decifração integral. O apontamento da Maria José esclarece elementos essenciais para a compreensão. Antes do mais, é significativa a aproximação, por contraste, à Exortação da Guerra de Gil Vicente, onde o pacifista Saramago colhe o título para a sua ficção. Evocar Gil Vicente faz sentido não só pela encomenda do título, mas ainda porque o espírito bélico da Exortação da Guerra é manifesta excepção em Mestre Gil, que não pôde escapar inteiramente a "fazer o jeito" ao patrão D. Manuel I. Mas os esclarecimentos de Maria José não se ficam por aí. A explicação de máquinas de guerra, devidamente ilustradas com imagens, ajuda a compreender o texto saramaguiano. Este texto sobre um outro texto facilita a leitura, ao mesmo tempo que estimula a ler o romancista engajé com os ideais humanistas.

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