terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A questão de género em Mar me quer de Mia Couto



A questão de género em Mar me quer de Mia Couto


1.     A beleza feminina de Luarmina tratada como um mal maior
A beleza de Luarmina fez morrer sua mãe de desgosto. Maldizia a beleza da filha e certa noite tentou golpear-lhe o rosto. A razão do penar da mãe era a loucura dos homens «que abutreavam em redor da casa» por causa da beleza da filha. Depois da morte da mãe, Luarmina foi enviada para a Missão: «Havia que arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro». Por fora, foi acumulando gordura «por razões de angústia», para «esconder a tristeza, ou seria para esconder a beleza pecaminosa? Este é um conceito presente na mulher serpente demoníaca que enfeitiça o homem – pobre homem frágil, que as religiões protegem. Por que o protegem? Por ser ele o que faz e desfaz as leis e as religiões? São os homens que estão no centro do poder religioso. O poder religioso é masculino. Deus, Jeová, Alá, ainda que possam surgir sem corpo, são do género masculino e representados como tal.
A beleza de Luarmina, que enfeitiçara Agualberto Salvo-Erro, caiu à água transformadora do destino dos apaixonados para sempre. É como se Luarmina renascesse na figura de mulher gorda e engordurada, regressada ao local onde o seu amado vivera, mas depois do casal ter morrido. Contudo, existe uma foto, a prova da sua grande beleza, que ela renega, virando a foto ao contrário, para que Zeca, filho de Agualberto, não a observe. Apesar da gordura, Zeca persegue-a com o seu desejo sexual que acende na sua presença e arde em sua ausência. O poder de Luarmina está para além da beleza.

2.     A fidelidade da mulher esposa (de Agualberto) e mãe (de Zeca Perpétuo)
Esta mulher não tem nome, apenas é nomeada como «minha mãe». Ela sabia dos amores de seu marido com a bela jovem do seu barco, mas virava as costas ao mar, mesmo quando o filho insistia para que ela visse. Ela ocupava-se com os trabalhos do sustento e nem queria ver nem falar sobre o assunto. No dia do afogamento da amada, Agualberto passou o dia mergulhado no mar, procurando-a. Quando todos o julgavam perdido, ele sai das águas e sua mulher «avançou e se perfilou perante o homem». Ela enfrentava-o e olhava-o de baixo a cima, mas, quando chegou aos olhos, gritou, pois os olhos dele tinham ficado da cor do mar. Depois de ele se adentrar, ela perguntava ao filho de onde em onde: «Essa mulher, outra, será mesmo que morreu de vez?». Todos achavam que sim, exceto Agualberto, que lhe levava mantimentos ao fundo do mar, até os olhos perderem completamente a cor. Depois abandonou a casa, deixando a mulher inconformada fazendo de conta junto do filho que ele viria mais logo ou então que estava longe e era preciso que Zeca lhe escrevesse. Revela-se nesse ponto da narrativa o valor da escrita. A mãe quer que seu filho aprenda as letras com o padre na missão. Também Deus escrevera uma carta no céu estrelado e ela espera que seu filho venha a ser capaz de lha ler.
Concluo que esta é a mulher ideal para a tradição moçambicana ou portuguesa. Ela sofre, espera e cala, a pensar no bem de seu filho.

3.      A dança feminina – as « que dançam ficam sem corpo»
3.1. Maria Bailarinha
A história desta personagem surge a propósito do convite para dançar de Zeca a Luarmina. Maria Bailarinha dançava a pedido ou a moeda, de tal forma que «dava tontura ao mundo» e desmiolava os homens. Um dia, as suas vestes pegaram fogo e ela continuou a bailar até que. a um leve toque, se desfez em cinza.
3.2. Henriquinha – a mulher gaivota
Zeca descreve sua mulher, Henriquinha, a Luarmina como tendo sido uma surpresa. Considerava-a uma mulher «compostinha, sem desfeiação seja em corpo seja em espírito», mas apanha-a em mentira de missa dominical, tempo aproveitado para uma dança desnudada junto do precipício marinho, no cimo da Duna Vermelha. Entre o desgosto e o deslumbramento, Zeca  empurra-a e ela desaparece: «Empurrei-a. Não escutei nem grito, nem baque do tombo […] apenas a estridência de gaivota roçando o barranco». Mais uma mulher desaparecida nas histórias de vida de Zeca. Neste caso, houve crime de assassinato, mas, como não havia corpo, o crime de Zeca ficou impune. Todavia, os remorsos estavam dentro de si e manifestavam-se na perseguição às gaivotas, cujo pio o enervava, levando-o a apedrejá-las. Dona Luarmina não entendia isso num homem do mar «a abarrotar coração». E cria uma gaiola para gaivotas, às quais as crianças vinham trazer peixe. O ruído do «gaivotame» não deixava Zeca sossegar e ele comete um outro crime: chega fogo à gaiola. No dia seguinte, visita Luarmina para se desculpar e conta-lhe a história do assassinato de Henriquinha, para explicar o seu horror ao grito das gaivotas. Luarmina leva-o até à gaiola, onde jaziam as aves queimadas exceto uma, «toda branca, rendilhando repentinos voos», que ele liberta, talvez libertando-se do seu remorso por acreditar que Henriquinha se metamorfoseara naquela gaivota.

Neste jardim de Mar me quer, cheirando a mar e a pétalas de flores mortas, nenhuma das mulheres constrói por suas mãos o seu destino. Elas são empurradas pela sorte ou pelo homem. A exceção será Luarmina que, depois da metamorfose, com uma profissão, e não se entregando a Zeca Perpétuo, sobreviveu à narrativa.
A beleza e a dança surgem como males sociais. A mulher ‘bem social’ para o homem é a anónima que ‘faz conta’ que não vê os erros do homem e que, no final da vida dele, o deixa fitar seus olhos, para que morra em paz.
E a sabedoria traduzida em epígrafes pertence ao homem – ao avô Celestiano. Será que o culto dos antepassados abrange apenas o género masculino?

2 comentários:

  1. Maria José, ao ler esta tua tão bem estruturada análise ao Mar Me Quer, de Mia Couto, centrada em três dimensões, caraterizadoras dos papéis que a mulher, através dos tempos, tem cumprido. Muito bem selecionadas e que, a seguir, transcreverei.
    Senti-me " arrastada"a ler ou a reler, o poeta e o escritor, moçambicano, de forma a intuir e a perceber como na sua obra, seja Poesia ou Prosa Poética, retrata as mulheres, de uma forma tão suprema que, não deixando de nos fazer olhar para essas imagens dadas em palavras certeiras, não só nos faz acarinhá-las, abraçá-las, como também, nos remete para uma atitude de revolta, de indignação, na nossa condição de mulheres e de seres humanos, em primeiro, ao sentirmos no corpo e na alma, a escravização e a submissão, ao masculino. Ao Poder usurpado, em mais uma das suas faces, pelo homem macho, um mito que se expandiu e tal como noutras criações do homem, se transformaram e aceitaram, como verdades únicas.
    Consciente ou não, não sei, Mia Couto, não se afasta de uma das maiores problemáticas dos tempos atuais: a questão de género, a violência de género, a luta emancipatória da Mulher, os feminismos, as diversidades e identidades. Os Poderes.
    Relançando as três dimensões que a Maria José escolheu, do meu ponto de vista, muito contundentes e reveladoras do que acima se disse:

    1. A beleza feminina de Luarmina tratada como um mal maior.
    2. A fidelidade da mulher esposa (de Agualberto) e mãe (de Zeca Perpétuo)
    3. A dança feminina – as « que dançam ficam sem corpo»
    3.1. Maria Bailarinha
    3.2. Henriquinha – a mulher gaivota

    É muito revelador, em todas estas representações no feminino, de quatro mulheres na obra Mar Me Quer, de Mia Couto, onde cada uma é portadora de uma categoria, que vai da beleza de Luarmina, a fidelidade de esposa, de mãe, mulher de Maria Agualberto e mãe de Zeca Perpetuo, (curiosamente, sem nome) à dança de Maria Bailarinha até a Henriquinha, a gaivota, os papéis que lhe estão subjacentes.
    Em qualquer das situações, de cada uma destas mulheres, há a presença inquestionável, da submissão ao homem, como o seu "dono", a quem devem fidelidade e obediência. Mas também, a presença muito visível da sexualidade e sensualidade. Que não podem revelar fora do leito conjugal. No atrevimento ou arrojo, arriscam o castigo, ou mesmo a morte. O assassinato.
    Não esqueçamos que esse castigo, continua. A violência doméstica, em Portugal, em 2014, levou à morte de dezenas de mulheres e, muitas vezes, por questões de natureza passional e sexual.
    E corroboro, inteiramente, quando referes:
    "Neste jardim de Mar me quer, cheirando a mar e a pétalas de flores mortas, nenhuma das mulheres constrói por suas mãos o seu destino. Elas são empurradas pela sorte ou pelo homem. A exceção será Luarmina que, depois da metamorfose, com uma profissão, e não se entregando a Zeca Perpétuo, sobreviveu à narrativa."
    A voz reverenciada do avô Celestiano, o portador de sabedoria, poder-nos-ia levar a uma reflexão sobre o Poder no Masculino que povoa, há séculos, todas as instituições, desde as grandes religiões até às políticas e, ainda que, em modelos diferentes, atinge o âmago das nossas mentes, nos diferentes continentes da Terra.
    Vou citar, para terminar, parte dum artigo de Richard Zimler que me impressionou e que pode ser lido na íntegra.
    "O meu pai morreu quando a minha mãe já tinha 74 anos. Ela renasceu uns bons anos, em grande parte porque foi obrigada a voltar a ter um papel activo no mundo. Mesmo assim, sempre que falávamos no passado, era sempre com amargura. Notava-se no seu tom de voz que era uma mulher cuja vida não vivida era maior do que a que realmente teve.
    Ela acabou por me ensinar uma coisa muito importante para as mulheres, mesmo nestes tempos aparentemente tão avançados e progressistas: sigam as vossas paixões e façam o que vos dê prazer e realização. "

    QUOTA PARTE POR RICHARD ZIMLER
    http://mariacapaz.pt/cronicas/quota-parte-por-richard-zimler/

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    1. Fico muito satisfeita pelo facto de o meu texto ter inspirado a tua dissertação enriquecedora do debate sobre a questão do género.
      Verás que a mesma questão é levantada por Mia Couto, em «AConfissão da Leoa», mas de uma forma muito mais contundente.

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