Amor de
Perdição e Frei
Luís de Sousa – a angústia da influência
por Maria
José Domingues
Harold
Bloom, em A Angústia da Influência, reflete e teoriza a busca de espaço
literário que um grande escritor tende a retirar a um outro grande escritor que
o antecede e com quem trava um diálogo mais ou menos explícito na sua obra.
Vem isto a propósito
do que Camilo Castelo Branco escreveu em Amor de Perdição, capítulo XVI,
colhendo de surpresa o leitor, no final da aceitação da proposta de Domingos
Botelho por parte da amante de seu filho Manuel, casada com um estudante de
medicina:
«- E beijo as
mãos de vossa senhoria… Uma desgraçada como eu não podia esperar tanta
caridade.
Poucas horas
depois, a esposa do médico…
- Que tinha
morrido de paixão e de vergonha, talvez! – exclama uma leitora sensível.
- Não. Minha
senhora, o estudante continuava nesse ano a frequentar a Universidade; e, como
já tinha vasta instrução em patologia, poupou-se à morte da vergonha, que é uma
morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Frei Luís de Sousa, e à
morte da paixão, que é outra morte inventada pelos namorados nas cartas
despeitosas, e que não pega nos maridos a quem o século dotou de uns longes de
filosofia, filosofia grega ou romana, porque bem sabem que os filósofos da
antiguidade davam por mimo as mulheres aos seus amigos, quando os seus amigos
por favor lhas não tiravam. E esta filosofia hoje então…»
A meu ver,
há neste excerto uma quebra propositada e escarninha na prosa camiliana, por aplicação
do estilo garrettiano de Viagens na minha terra, no momento em que o
narrador interrompe a narração para fazer ouvir a voz interruptiva de uma
leitora opinando acerca do possível destino do médico. Esta interrupção é
propositadamente abrupta, obrigando o leitor a parar para perguntar o que terá
acontecido ao fio narrativo que fora partido. É nessa interrupção refletida que
o estilo garrettiano poderá surgir na memória do leitor, como uma provocação
camiliana.
Segue-se a nomeação do visconde de
Almeida Garrett como o inventor da morte por vergonha, o que leva o leitor à
cena final de Frei Luís de Sousa:
«Maria
(apontando para o Romeiro) – É aquela voz, é ele, é ele! Já não é tempo… Minha
mãe, meu pai, cobri-me bem estas faces que morro de vergonha… (esconde o rosto
no seio da mãe) morro, morro… de vergonha… (cai e fica morta no chão, Manuel de
Sousa e Madalena, prostram-se ao pé do cadáver da filha)..»
É desta
morte por vergonha que Camilo escarnece . Curiosamente também Carlos Reis
considera que a cena final da morte de Maria desequilibra a ação e destoa
da sobriedade dominante na obra.
Conhecendo o teor de Angústia da Influência e aplicando-o ao excerto, fez-se a pesquisa necessária para saber se outros leitores críticos tinham refletido sobre o assunto. De facto, em Duas notas à margem de «Amor de Perdição», de J.J. Dias Marques, Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, nº41, pp. 209-226, encontra-se a referência ao excerto transcrito de Amor de Perdição, para informar que o poeta Joaquim Araújo, correspondente e amigo de Camilo, relatou que, em conversa havida com o romancista, lhe tinha falado do seu «libelo» a respeito da referência negativa a Garrett, muito admirado pelo poeta, e que Camilo lhe prometera que, se um dia revisse o Amor de Perdição «expurgaria da sua extraordinária novela a má vontade à morte de vergonha, que a desfeia». Sabe-se que Camilo oferecera a 5ª edição ao poeta com a dedicatória:
«Para fazer
chorar de novo Joaquim Araújo – essa suprema expressão das almas boas – chorar –
off.ce
1882/1/6 - Camilo
Castelo Branco.»
A expurgação
não chegou a ser feita e tanto melhor para a literatura, arte construída em
dialogismo entre obras e escritores. É o momento de recordar Ricardo Reis quando
afirma que «deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por
onde se note que existiu Homero»; neste caso, na prosa camiliana, Almeida Garrett.
Poder-se-á
ainda assinalar na primeira transcrição a dissertação sobre os amores com
mulheres casadas, assunto que une os dois escritores: Almeida Garrett e a
viscondessa da Luz, Camilo e Ana Plácido. A vida e a ficção de mãos dadas na
situação da personagem Manuel Botelho e a amante açoriana casada com o médico,
a propósito do qual se lavrou o primeiro texto citado.
De entre as marcas dialógicas das duas obras, destaca-se ainda a frase do terceiro elemento do trio amoroso, a não amada Mariana, «E eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!» (cap.XVIII), pela proximidade à frase do Romeiro, o marido regressado de Alcácer-Quibir, em resposta a Madalena, a esposa amada : «Eu já vos pedi alguma coisa, senhora?» (ato II, cena XIV). Esta aproximação das duas falas não parece casual, mas uma marca da proximidade temática. Com efeito, as duas obras têm em comum um par amoroso, acrescido de um terceiro elemento dotado de um amor generoso e sofrido. E é esse terceiro elemento o emissor de cada uma das frases que aproxima as duas obras perante o leitor, aparecendo a frase referida de Amor de Perdição, como uma prova de intertextualidade dialógica.
De entre as marcas dialógicas das duas obras, destaca-se ainda a frase do terceiro elemento do trio amoroso, a não amada Mariana, «E eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!» (cap.XVIII), pela proximidade à frase do Romeiro, o marido regressado de Alcácer-Quibir, em resposta a Madalena, a esposa amada : «Eu já vos pedi alguma coisa, senhora?» (ato II, cena XIV). Esta aproximação das duas falas não parece casual, mas uma marca da proximidade temática. Com efeito, as duas obras têm em comum um par amoroso, acrescido de um terceiro elemento dotado de um amor generoso e sofrido. E é esse terceiro elemento o emissor de cada uma das frases que aproxima as duas obras perante o leitor, aparecendo a frase referida de Amor de Perdição, como uma prova de intertextualidade dialógica.
Acrescente-se
ainda que as duas obras nomeadas no título têm de comum a velocidade de escrita:
Frei Luís de Sousa, escrito «de um jacto, em pouco mais de duas semanas» (Palmira Nabais, introdução à edição
de Frei Luís de Sousa) e, de Amor de Perdição, diz Camilo, no Prefácio da 2ª edição, «Escrevi o romance em quinze dias, os mais
atormentados da minha vida».
Tragédias de amor e morte criadas por dois grandes escritores, sendo que o mais novo era conhecedor da obra do mais velho, que, certamente, admirava e criticava, presentificando-a no momento da criação literária para com ela dialogar.
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