sexta-feira, 4 de abril de 2014

Maria Ondina Braga - a cidade de Braga em VIDAS VENCIDAS


«E teimo na minha terra: as ruas de Braga, cada esquina, cada pedra, quase.»
Estátua de Sal, p.130.

Braga quotidiana entra na obra Vidas Vencidas de Maria Ondina Braga pela janela que dá para a Avenida, pelo caminho do liceu e por vários locais devidamente referenciados. A enunciação do real nomeado – Rua de S. Vicente, Casa Pereira das Violas, Brasileira, Igreja dos Congregados, do Pópulo, etc. – situa o leitor no espaço e no tempo dos acontecimentos rememorados na maioria dos dezassete textos que compõem a obra. Todavia, no quarto interior de “Janela Falsa” (título do primeiro texto), é o badalar fúnebre do sino dos Congregados que introduz a cidade e a temática da morte.
Lugar privilegiado era o da janela da Avenida para apreciar as tílias «remanescentes», o social vaidoso das colegas do liceu, exibindo-se nos seus vestidos a estrear, e a beleza do fogo-de-artifício, em noite de S. João. A personagem é jovem e está à janela de sentidos despertos até à girândola final, mas apenas como observadora, situação constrangedora justificada pelo medo às doenças - «orvalhadas a desoras traziam humores ruins» - e pela obediência filial, que não coartam a vontade juvenil de participar no exterior festivo em festas de S. João - «música no coreto, cantigas, danças, ervas de cheiro» (pp.26-28).

Pelo observatório das janelas da casa da Avenida, sempre ao dispor, é dada, mais do que uma vez, a paisagem bracarense coada pelos sentidos do eu da narradora. Na página oitenta e sete, descreve em primeiro plano «as centenárias tílias, a sua fragância, o frufru das folhas prateadas, o gorjeio dos pássaros ao anoitecer. E, para lá do casario, o Monte Picoto». Sobre este lugar, acrescenta uma novidade para muitos leitores: «a cruz a assinalar um homicídio cujo criminoso permanecera tão desconhecido como a vítima».

A rua de S. Vicente surge como um calvário a caminho do liceu Sá de Miranda e do cemitério. A frisar um tal sentir, mas com uma réstia de humor, escreve que essa rua «no dia de Fiéis Defuntos, por antífrase se animava. Ia dizer, se alegrava». Todavia, não esquece a Doçaria de S. Vicente - «Cheia a loja. Pessoas que compravam massapães, casadinhos, biscoitos de fidalgo. Nós preferíamos lêvedos. […] Macios, os lêvedos, deliciosos».

Não podia ficar esquecido o santo de grande veneração bracarense, advogado contra os males ruins e as verrugas, o Senhor S. Bentinho[1] de Trás do Hospital, que atraía devotos a encher a capelinha de grades escancaradas à quinta-feira e os romeirinhos, com raminhos de cravos na mão, rezando e cantando pelas ruas. É curioso o uso dos diminutivos que rodeiam esse santo, talvez por oposição ao S. Bento da Porta Aberta, em maiores proporções.

Nossa Senhora da Torre, a protetora da cidade, «do alto do seu altar de vidro, que afastava as trovoadas» e livrara Braga do terramoto em 1755, aparece invocada pelas «regateiras da praça» que lhe prometiam as arrecadas, se ela concedesse o milagre do «regresso do rei», após a implantação da República. Pela mesma causa, ofereceram os haveres muitos endinheirados: barbeiros, sapateiros, talhantes. Refere as costureirinhas, que, pelo contrário, «davam vivas ao Afonso Costa», enquanto a mãe da narradora rezava pela conversão dele. Relata uma cena de perseguição monárquica a um republicano, que tivera de se esconder no forno da Padaria Capa. Sobre esta época de transição política, escreve: «pergunto hoje, de mim para comigo, se Braga teria sido mesmo um centro talassa[2]. Sequer me custaria crer» (p.100). Confesso que só aqui entendi a possível justificação do nome da especialidade da antiga Confeitaria de Santo António (Luxa): as talassas.

Novidade para mim a oposição entre a Brasileira Nova, frequentada por «germanófilos, com o retrato do Hitler», e a Brasileira Velha, frequentada por adeptos dos Aliados, com o retrato do Churchill e do De Gaule. Frente a frente, os dois cafés desencadeavam a guerra bracarense com a insólita imposição da paz pelo «pomposo passo de cavalo do fidalgo dos Biscainhos» (104-105).

Braga está cheia de igrejas. Ao entrar na igreja do Pópulo, aproveita para destacar os «preciosos azulejos» e «os de São Vicente e de São Victor». Seguindo uma velha senhora, cicerone amável entre a panóplia de santos, perguntou-lhe por S. Tomaz de Villanueva, um santo da devoção familiar, e ei-la a indicar: «Lá em cima, no altar-mor! Aquele da mitra e capa de asperges! Muito querido, esse santo, entre os espanhóis que o apelidam de “Pai dos Pobres”».

O regresso a Braga, a Ítaca de Maria Ondina a fechar a sua odisseia, é descrito como «se arribasse a um deserto», apesar do aumento da área da cidade e da população. E, numa tentativa de explicação, escreve: «Deserto porventura muito meu. Um ermo dentro de mim. O que acontece com todos os que se distanciam do torrão natal, do lar, do ninho? Uma desforra das raízes? Uma maldição?» (p.67).
4 de Abril de 2014
Maria José Domingues
Vidas Vencidas, Maria Ondina Braga,1998, editora Caminho.

[1] Quadra popular: Senhor S. Bentinho/ belinhas a arder/ s’elas s’apagare(m)/ tornam-s’acender.
2 .Talassa - pessoa que, em Portugal, seguia o partido monárquico, no governo de João Franco, no reinado de D. Carlos I. 2 Pessoa adversa à República Portuguesa; reacionário, especialmente monárquico.


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