Perdida n'As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, tento agarrar o fio para o
prender à memória. Essa obra enigmática deixa o leitor perplexo em labirinto de
cidades.
Ao entrar no grupo de
intelectuais de l’ Ouvroir de littérature potentielle, Calvino aceitou um
projeto de escrita subordinado a «contraintes»[1]
de construção textual.
Quando o leitor de As Cidades Invisíveis toma conhecimento
da lista desses constrangimentos,
conclui que Calvino, usando a liberdade de escolha, seguiu algumas delas, ainda
que a seu modo. Leia-se a seguinte contrainte:
La forme dite des « 99 notes
préparatoires » se situe entre le poème et l’essai, s’emparant d’un sujet
donné et tentant d’en épuiser les potentialités par un jeu polyphonique.
Elle n’est pas « contrainte» à proprement parler mais a beaucoup à voir avec la potentialité. L’obligation d’écrire quatre-vingt-dix-neuf phrases sur un thème précis la rapproche ainsi d’une tentative d’épuisement. Il faut ensuite trouver une façon d’ordonner (ou désordonner) ses notes. Cela dit, rien n’empêche d’utiliser, localement, telle ou telle contrainte en jouant, par exemple, de la numérotation[2].
Elle n’est pas « contrainte» à proprement parler mais a beaucoup à voir avec la potentialité. L’obligation d’écrire quatre-vingt-dix-neuf phrases sur un thème précis la rapproche ainsi d’une tentative d’épuisement. Il faut ensuite trouver une façon d’ordonner (ou désordonner) ses notes. Cela dit, rien n’empêche d’utiliser, localement, telle ou telle contrainte en jouant, par exemple, de la numérotation[2].
Analisando a obra de acordo com a citação, verifica-se que Calvino projetou a obra em 9 capítulos com 11 temas, agrupadores de cidades, obtendo o número 99 (11x9=99).
As cidades são 55, distribuídas
pelos nove capítulos, em grupos de 5 do segundo ao oitavo e, no primeiro e
nono, em grupos de 10 - (10+5+5+5+5+5+5+5+10). Recorde-se a propósito do
somatório de cidades a seguinte «contrainte oulipienne»: «Un hyper-roman est
une «machine à multiplier les récits». De facto, as cidades sucedem-se velozmente
em textos curtos[3]. Acontece
que depois da leitura, torna-se difícil saber qual o nome de tal ou tal cidade.
Excetuando a especularidade do
primeiro e do nono capítulo com 10 cidades, os restantes capítulos organizam-se
segundo o modelo 5,4,3,2,1, numeração correspondente ao número de entrada da
cidade por tema. A partir do terceiro capítulo até ao nono, a cidade 5 sai e
entra a 1.
É evidente que esta organização numérica
ao gosto oulipiano é um jogo textual gerador de mal-estar para o leitor de
romances ditos ‘normais’, isto é, dentro das normas da inserção dos momentos de
pausa e de avanço devidamente interligados numa narrativa.
Contudo, o autor não se ficou
pela orgânica e pela distribuição das descrições das cidades invisíveis, em
textos que intitulou de apólogos e de petits-poèmes-en-prose. Esses pequenos 55 textos estão enquadrados por
uma narrativa protagonizada pelo Imperador Kublai Kan e Marco Polo. Esses dois
nomes reenviam o leitor para a obra das viagens de Marco Polo, Il Milione, do séc. XIII, dentro do jogo
polifónico previsto pelo Oulipo. As vozes de antanho cruzam-se com o pensamento
do autor e, em polifonia, cantam a uma só voz, ainda que em diálogos.
A moldura dos nove capítulos é
construída por uma narrativa de 18 textos em itálico, colocados um no princípio
e outro no fim de cada capítulo. Dessas molduras extrairei excertos que
considero notáveis.
Sobre o valor da comunicação:
·
Só nos
relatos de Marco Polo conseguia Kublai Kan discernir, através das muralhas e
das torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho tão fino que escapasse
ao ruir das térmitas (21[4]).
Sobre o valor da comunicação em linguagem não verbal:
·
Mas o que
tornava preciosos a Kublai todos os factos ou notícias referidos pelo seu
inarticulado informador era o espaço que ficava à volta deles, um vazio não
preenchido por palavras. As descrições das cidades visitadas por Marco Polo
tinham esse dom: podia andar-se por elas com o pensamento, nelas podíamos
perder-nos, parar a apanhar o fresco, ou fugir a correr (51).
O arquétipo de cidade:
· - Contudo, eu construí na minha mente um
modelo de cidade de que deveriam deduzir-se todas as cidades possíveis – disse
Kublai. [...]
– Também pensei num modelo de cidade de que
deduzo todas as outras – respondeu Marco (81).
Sobre a leveza (primeiro tema de Seis
propostas para o próximo milénio (1985) de Italo Calvino):
·
– Há uma
coisa que tu não sabes – acrescentou Kan. – A Lua
reconhecida deu à cidade de Lalage um privilégio mais raro: o de crescer em
leveza (86).
O valor da parte no todo:
Polo
responde: – Sem pedras não há arco (95).
Sobre a palavra apagadora de memórias:
·
– As
imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se – disse Polo. –
Talvez eu tenha de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao
falar de outras cidades, já venha a perdê-la aos poucos (100).
Sobre o real e a ficção:
·
Polo –
Talvez do mundo só tenha restado um terreno vazio coberto de imundícies, e o
jardim suspenso do palácio do Grão Kan. São as nossas pálpebras que os separam,
mas não se sabe qual está dentro e qual está fora (116).
Sobre a personagem como criação/recriação do autor («Enquanto signo
narrativo, a personagem é sujeita a procedimentos de estruturação, que determinam
a sua funcionalidade e peso específico na economia do relato»[5]):
·
Polo – E
de que os carregadores, os calceteiros, os varredores, as cozinheiras que
limpam as vísceras das galinhas, as lavadeiras ajoelhadas sobre a pedra, as
mães de família que mexem o arroz aleitando os recém-nascidos, só existam
porque nós pensamos neles.
Kublai – Para dizer a verdade, eu nunca
penso neles.
Polo – Então não existem.
Kublai – Essa conjetura não me parece que
nos convenha. Sem eles nunca poderíamos ficar a balançar encasulados nas nossas
camas de rede.
Polo – Então a hipótese é de excluir.
Portanto será verdadeira a outra: de que existam eles e não nós.
Kublai: - Assim demonstrámos que, se nós
existíssemos, não existiríamos.
Polo – De facto, aqui estamos (127).
Sobre a superfície e a profundidade:
·
O Grão Kan
tentava concentrar-se no jogo: mas agora era o porquê do jogo que lhe escapava.
[...] Kublai chegara à operação extrema: a conquista definitiva, de que os
multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios,
reduzia-se a um pedaço de madeira aplainada.
Então Marco Polo disse: - O teu tabuleiro,
Sire, é um conjunto de duas madeiras incrustadas: ébano e roble. A casa em que
se fixa o teu olhar iluminado foi cortada de uma camada de tronco que cresceu
num ano de seca: vês como estão dispostos os veios? Nota-se aqui um nódulo
apenas esboçado: um rebento que tentou brotar num dia de primavera precoce, mas
a geada noturna obrigou-o a desistir. [...] Eis aqui um poro mais grosso:
talvez tenha sido o ninho de uma larva [...] de uma lagarta que roeu as folhas,
e foi por isso que escolheram esta árvore para ser abatida... Esta borda foi
talhada pelo marceneiro com a goiva para aderir ao quadrado contíguo, mais
saliente...
A quantidade de coisas que se podiam ler num
bocadinho de madeira liso e vazio abismava Kublai; e Marco Polo já estava a
falar dos bosques de ébano, das jangadas de troncos que desciam os rios, dos
cais, das mulheres às janelas... (141).
A retenção informativa do ouvinte:
·
– Eu falo,
falo – diz Marco -, mas quem me ouve só fixa as palavras que deseja. [...] Quem
comanda o conto não é a voz é o ouvido (145).
As versões dos relatos de Marco e aquela que perdurará, apresentada em
prolepse:
·
E outra
ainda a que poderei ditar em tardia idade, se fosse feito prisioneiro pelos
piratas genoveses e posto a ferros na mesma cela com um escrivão de romances de
aventuras (145).
O inferno:
·
Diz: –
Tudo é inútil, se o último local de desembarque tiver de ser a cidade infernal,
e é lá no fundo que, numa espiral cada vez mais apertada, nos chupa a corrente.
E Polo: - O inferno dos vivos não é uma
coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que
habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos
para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o
inferno e fazer parte dele a ponto de já não vermos. O segundo é arriscado e
exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no
meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar
(169-170).
Conclusão:
Parece-me evidente a necessidade
de ter presente a obra do veneziano Marco Polo (1298) para um estudo
comparativo. Folheando-a, verifica-se a similaridade no texto curto descritivo das
muitas cidades e regiões visitadas por Marco. Este teve como relator das suas
viagens Rustichello de Pisa, autor de romances de cavalaria, aproveitando o
tempo de cativeiro.
Calvino apodera-se dos
protagonistas da obra de Polo e reconstrói-os a seu modo. Os extraordinários
diálogos desenrolam-se com um tabuleiro de xadrez de permeio. Os dois são jogadores
dependentes das jogadas do parceiro, no jogo e no diálogo.
Diria que o pano de fundo da obra
As Cidades Invisíveis é o jogo, mas o
jogo textual, construtor de literatura.
Maria José Domingues
Maria José Domingues
[1] «Exercice de
style Exercices de style est le titre d’un livre de R. Q. À partir d’une histoire aux péripéties insignifiantes,
il a proposé quatre-vingt-dix-neuf récits, différents par leur seul “ style
” : certains sont farcis d’anglicismes, d’autres écrits en alexandrins,
d’autres enfin sont de véritables saynètes de théâtre» (https://www.oulipo.net/fr/une-liste-de-contraintes-oulipiennes - consulta a 14
de maio 2019.
[3]
Un À supposer… est un texte en prose (mais
peut-être un poème en prose) composé d’une phrase unique très développée,
initiée par la formule : « À supposer qu’on me demande
ici de… ». Pas de ponctuation
forte au milieu de la phrase, qui laisserait entendre qu’il y a
plusieurs phrases. Un À supposer…
sérieux compte au moins 1 000 signes (200 mots). L’origine est moins
proustienne que mallarméenne : maints sonnets de Mallarmé sont clairement
des défis à n’y faire qu’une seule phrase. (idem, ibidem).
[4] Seguiu-se
a obra As cidades Invisíveis de Italo Calvino, Coleção Essencial, Leya, RTP,
2015.
[5] Reis,
Carlos, Dicionário da narratologia, 1987,
p.308.
Sem comentários:
Enviar um comentário