«– Há uma coisa que tu
não sabes – acrescentou Kan. – A Lua reconhecida deu
à cidade de Lalage um privilégio mais raro: o de crescer em leveza».
«Crescer em leveza» talvez possa ser lido como fazendo parte
do projeto de escrita de Calvino. Formulado o desejo da leveza na obra de 1972,
As Cidades Invisíveis, Calvino vai
teorizá-lo, em 1984-85, na primeira lição de Harvard, em Seis Propostas para o
próximo milénio.
1. A leveza em As
Cidades Invisíveis de Italo Calvino
No início do quinto capítulo, o
diálogo de Kublai Kan com Marco Polo termina com a citação da epígrafe deste
texto.
Vejamos qual a relação das cinco
cidades apresentadas nesse capítulo V com a «leveza».
Marco Polo dirigindo-se a um público alargado,
de acordo com a terceira pessoa do plural usada, mas fazendo notar o possível
descrédito dos ouvintes, inicia a descrição de Otávia, a inacreditável cidade
teia de aranha, desta forma: «Se quiserem acreditar, muito bem». De facto. uma
cidade teia de aranha, era inacreditável. Apresenta então a curta descrição de
Otávia, espaço aéreo entre duas montanhas: cidade leve, mas perigosa para os
seus habitantes.
Calvino valeu-se da metáfora «teia de aranha» para introduzir a ideia imediata de ultra leveza. Mas a beleza e a perfeição da teia de aranha perderam-se, e resta, como imagem, apenas um arremedo leve e perigoso feito pelos homens.
Calvino valeu-se da metáfora «teia de aranha» para introduzir a ideia imediata de ultra leveza. Mas a beleza e a perfeição da teia de aranha perderam-se, e resta, como imagem, apenas um arremedo leve e perigoso feito pelos homens.
Ersília é também uma cidade teia de
fios aéreos pretos, brancos e cinzentos, traduzindo «relações intrincadas que
procuram uma forma». A busca da perfeição da forma faz-se pela construção
contínua de outra Ersília melhorada, de fios menos intrincados ou menos
ensarilhados. Os fios desaparecerão com a comunicação sem fios, mas as relações
humanas poderão ser de aperfeiçoamento contínuo.
Acima das nuvens, estende-se
Bauci, a cidade sobre andas. Os seus habitantes raramente pousam o pé na terra,
mas observam meticulosamente a superfície. A leveza pela arquitetura, mas não a
leveza da construção alicerçada em poderosos pilares. Le Corbusier inspirou
Calvino? Talvez.
Le Corbusier Date: 1960 - 1962;
Estonia[1]
Manes e Penates. deuses minúsculos
até ao invisível, habitam Leandra e julgam-se a sua alma. Preocupam-se com a
cidade e tecem projetos, sempre em discussão. A leveza resultaria da pequenez
que permitia aos deuses passear pelos caixilhos e tubos e serem «alma» -
palavra criadora de uma imagem sem peso.
Em Melânia, a vida decorre como
numa eterna peça de teatro, tendo na devida conta as levas de atores que se
sucedem na roda da vida: aos mortos sucedem os vivos, em contínuo. O texto da
peça é alterado ao longo do tempo que excede a vida de um ser humano, por isso,
ninguém dá conta. A imagem da vida como peça de teatro sem que o ator tenha
consciência disso, dá uma leveza especial ao desempenho e permite a recriação
do texto ao longo do tempo.
2. A
leveza em Seis Propostas para o próximo
milénio
Calvino inicia as seis propostas pela "Leveza" da seguinte forma:
"Depois de haver escrito ficção por 40
anos, chegou o momento de buscar uma definição global de meu trabalho: no mais
das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me
por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às
cidades; esforcei-me sobretudo por tirar peso à estrutura da narrativa e à
linguagem".
De facto, se analisarmos As cidades Invisíveis na perspetiva da leveza, poder-se-á referir a leveza dos diálogos e da narrativa, libertando a pura descrição das cidades, em textos curtos e nem sempre leves.
Mas o que Calvino apresenta na sua conferência é uma listagem de autores que trabalharam a leveza (Lucrécio, Ovídio, Boccaccio, Guido Cavalcanti, Dante, Shakespeare, Cervantes, Cyrano, Kafka, etc.) e de que modo o conseguiram fazer. .Inclui As Mil e Uma Noites e enumera processos capazes de gerarem leveza:: «um aligeiramento da linguagem», «uma imagem figurativa da
leveza«, «a gravidade sem peso», a dança, «a melancolia - a tristeza que se
torna leve»» , «melancolia e humor misturados», a «conceção atomista do
universo», «figuras suspensas no ar» (tapetes voadores, cavalos que voam, génios
a saírem de lâmpadas, etc.), a lua que comunica uma sensação de leveza, etc.
Contra «o mundo que estava a ficar todo de pedra», Calvino considera a leveza um valor literário defensável e torna-se seu paladino.
Bibliografia:
Calvino, Italo - As Cidades Invisíveis, Publicações D. Quixote, 2015, Leya, SA.
Calvino, Italo - Seis Propostas para o próximo milénio (Lições americanas), 1990, Editorial Teotema.
Braga, 26 de maio 2019.
Maria José Domingues
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