[Vale a pena reler e repensar.]
Conferência Internacional de Literacia
em Português
No quadro da reflexão que propomos fazer, o Prof.
Roberto Carneiro, um dos membros do nosso Conselho Científico, deu-nos a
possibilidade, que agradecemos, de chamar a atenção, sobre a sua Conferência,
proferida no Centro de Congressos de Lisboa a 14 de Dezembro de 2005.
DESCOBRIR O TESOURO
1.
A Opção Estratégica e
os Ciclos Longos da História
«A opção estratégica de fazer do nível secundário completo o limiar mínimo
sobre que repousará a sociedade portuguesa no futuro acarreta um potencial de
transformação semelhante para a economia nacional e para o desenvolvimento
sustentável de toda a sociedade. Trata-se, é justo reconhecê-lo, de um desígnio
que não é novo no plano das ideias mas que não encontrou até agora os
instrumentos adequados à sua firme concretização no plano das políticas
públicas.
Em Julho de 2000, no termo de dois anos de aturado estudo realizado a
pedido do Governo, um vasto leque de personalidades e académicos portugueses
concluiu e divulgou um documento intitulado 2020 – 20 anos para vencer 20 décadas de atraso educativo. Aí se
demonstra que o atraso educativo português provém de meados do século XIX e que
não deixou de se acumular até há cerca de 30 anos, atrás
Encontramo-nos historicamente defrontados com o desígnio de garantir o
direito universal à formação e a determinação de “atacar” uma dupla
desigualdade:
• Em primeiro lugar, a
inaceitável, diria insuportável, rejeição pelo sistema escolar de cerca de 45%
dos jovens alunos ao seu cuidado que, por razões diversas, não alcançam o
mencionado nível limiar do ensino secundário, os quais engrossam ano após ano a
multidão de portugueses de baixas qualificações e reduzidas hipóteses num
mercado de trabalho cada vez mais insaciável na procura de habilitações e de
competências avançadas.
• Em segundo lugar, a
desigualdade humilhante sofrida por população adulta que, excluída de uma
escolaridade habilitante para viver e trabalhar numa sociedade crescentemente
baseada nos saberes, se vê constrangida pela vida fora com o peso de um “pecado
original” de que não é culpada, antes é a vítima.»…..
« A este propósito, recordarei aquilo que, em conclusão do referido estudo
prospectivo, e no que à vertente da requalificação do stock se impõe,
propúnhamos aquando da sua apresentação em 2000:
Assim, um 1º cenário – relativamente conservador na sua ambição –
consistiria em pretender alcançar, em 2020, a situação actual dos países
europeus mais avançados, como a Finlândia, Dinamarca ou Holanda, no que
respeita à estrutura educativa da sua população dos 25-64 anos. Para o
conseguir, Portugal teria de habilitar e/ou qualificar à volta de 2,5 milhões de adultos
activos, dos quais cerca de metade com o nível secundário ou equivalente
de
formação (...) Num 2º cenário – mais ambicioso – que colocaria como meta convergir
com a estrutura educativa da população na Finlândia, Dinamarca ou Holanda,
por volta de 2020, Portugal ver-se-á defrontado com a exigência de habilitar e/ou qualificar à volta de 5 milhões de
adultos activos, dos quais cerca de 1/3 ao nível secundário ou equivalente de
formação.
Esta visão estratégica assustou
uma elite confortavelmente instalada em horizontes de curto prazo e sem
determinação anímica para ousar inverter a marcha da História. Não faltou quem
denunciasse de irrealismo os autores do estudo ou verberasse a ausência de
consideração pelos ciclos temporais da política pública. Outros manifestaram um
reiterado desprezo – quando não ignorância – por aquilo que Jacques Lesourne, respeitado
especialista em estudos prospectivos, evidenciou: que as transformações
profundas em Educação exigem 50-75 anos para se consolidarem e produzirem
frutos.
Os tempos actuais de
vertigem tecnológica e de gestão instantânea dos eventos mediáticos não são
propícios à afirmação de projectos nacionais de largo fôlego. A pedagogia
cívica, feita de visão estratégica e de diálogo aberto, cede frequentemente o passo
à voragem do consumo imediato de factos políticos.»
«Na história recente da educação é possível verificar que a Coreia do Sul
duplicou a percentagem de diplomados de nível secundário num espaço temporal de
20 anos, elevando de 50% para praticamente 100% a taxa de conclusão de estudos
secundários.
Hoje todos os jovens chegam ao final de estudos secundários enquanto há 50
anos atrás (dados de 1954) apenas 25% de cada coorte de coreanos lograva
alcançar o final do ensino secundário.
A expansão firme das taxas de escolarização em Portugal conseguida nas
últimas três décadas permite acalentar a fundada esperança de que, com lucidez
e muita determinação, seja possível em 20 anos reverter 20 décadas de atraso,
investindo simultaneamente nos planos quantitativo e qualitativo dos resultados
educativos.
Confiamos em que, com a humildade que a dimensão histórica do desafio
impõe, seja alcançado um pacto de geração – não um simples acordo de
legislatura – suficientemente escorado para, a coberto das conjunturas
políticas, propiciar a sua efectivação e catapultar Portugal para o pelotão da
frente dos países desenvolvidos no decurso da centúria.
2. Um Novo Paradigma: A Educação como Serviço
Aprendi,
num longo e fascinante convívio de trabalho no terreno com o autor da
“Pedagogia
do Oprimido” e da “Pedagogia da Esperança” – Mestre Paulo Freire – que a
Educação é um Serviço de Proximidade e que só as comunidades dispõem da energia
interior necessária para resolver problemas densos de humanidade.
Neste
verdadeiro teorema da vida, os educandos – sejam jovens, adultos, ou
“seniores” – são sempre o principal
recurso do processo formativo. Eles não podem ser considerados, longe disso,
meros e passivos “consumidores” de produtos educativos generosamente
prodigalizados pelos guardiães formais dos bens educativos.
A
“Educação Dialógica”, magistralmente concebida por Freire, centra-se na pessoa
e na sua relação dialogal com a comunidade para aí
“descobrir” a matéria primeira sobre a qual se estrutura a viagem de
aprendizagem de cada um. A “pedagogia crítica”, deste modo fundada, liberta e
convoca pessoalmente para a tarefa da leitura da história e do compromisso
pessoal na sua construção.
Ora, por isso mesmo, a Educação como Serviço pressupõe uma radical
alteração do modelo dominante na nossa modernidade educativa o qual permanece
prisioneiro de um paradigma de “Educação como Indústria”.
.
Ora, quando se aceita
descer do pedestal e mergulhar na realidade micro, onde tudo finalmente se
decide, é fácil compreender que o serviço público de educação não tem de ser um
serviço uniforme de escolarização, que as soluções robustas são desburocratizadas,
que a pluralidade de respostas locais é a única garantia de respeito pela
dignidade humana, e que a pessoa – cada pessoa – é o autêntico sujeito do seu destino.
Educar é proporcionar a cada um a
possibilidade de escrever bem, e em
liberdade, o seu
“livro da vida”.
Numa acepção lata, a
criação de novas oportunidades deverá traduzir-se numa preocupação de facilitar
a vida a quem quer aprender, num modelo orientado para melhor servir o cidadão.
«Será oportuno sublinhar que aqui se joga uma das dimensões mais complexas
da mudança de paradigma preconizada. Os serviços públicos, com honrosas
excepções, têm uma péssima tradição de relacionamento com os cidadãos e
contribuintes, seus clientes fundamentais. Reformar profundamente o atendimento
público, reorientar a ética de tratamento do cidadão, virar as instituições educativas
e formativas – no caso em apreço – totalmente para o serviço ao
educando/formando, jovem ou adulto, que passará a ser considerado o eixo
central da sua preocupação e a sua razão de ser, configuram uma profunda
alteração de cultura e de mentalidade absolutamente indispensável à
viabilização do serviço de proximidade em que a educação/formação se deve
transformar»
«Agostinho da Silva, na sua desconcertante criatividade, explicou-me um dia
o seu ideal de escola: “Um lugar aonde me possa dirigir, a qualquer hora do
dia, em qualquer dia do ano, para perguntar o que não sei e ... para estar com
outros que queiram perguntar o mesmo que eu!”
«O novo tempo das aprendizagens visa superar a fragmentação da sociedade mosaico.
A educação como serviço é uma educação ao serviço da integridade das pessoas e
comunidades bem como da sustentação dos valores de civilização que lhes
conferem perenidade.»
3. Descobrir o Tesouro
«Para viabilizar a plena apropriação do tesouro recordo que a Comissão
propôs quatro aprendizagens para o futuro: Aprender a Ser, Aprender a Conhecer,
Aprender a Fazer, Aprender a Viver Juntos.
Portugal encerra no seu seio um grande tesouro. Ele está corporizado na sua
História, na sua Cultura, na sua Língua, nas suas Artes, na sua Poesia, enfim,
na sua relação ímpar com o Mar e com os demais Povos do planeta. Toda uma
riqueza espiritual, entesourada ao longo de quase 9 séculos de teimosa existência, é hoje
património dos portugueses e das gentes que partilham uma pátria comum em
permanente reconstrução. A missão da educação consiste, pois, em redescobrir
esse imenso tesouro que habita o interior de Portugal e de cada português.»
«O sonho de uma Sociedade Educativa, feita de constante partilha de
conhecimento e de aprendizagem ao longo da vida, é, pois, possível. Aprender a Aprender é uma componente de
Aprender a Ser.
O segredo é compreender a aspiração profunda de cada um e levá-lo(a) a
sentir-se apto(a) a realizar o sonho, o projecto, a visão, na arena concreta do
dia a dia.»
«A aventura da aprendizagem tem de ser gratificante e proporcionadora da
descoberta de sentido que está na raiz das grandes transformações identitárias.
E ela deve ser intrinsecamente útil na medida em que acrescente valor de
resolução de problemas para o indivíduo confrontado com questões concretas e
com desafios quotidianos. Os saberes inúteis não arrebatam ninguém.
Podemos, assim, afirmar com razoável confiança que as condicionantes
psicológicas da aprendizagem – memória e atenção – não são descontextualizadas.
Bem pelo contrário, elas associam-se a contextos sociais que podem catalisar a
conquista da auto-estima necessária à autonomia para aprender. Por isso, o
sentido da aprendizagem está indissociavelmente ligado ao das redes sociais
onde tem lugar a inserção comunitária do ser intensamente relacional.»
«O sentimento de confiança que advêm da consciência da conquista
progressiva de novos patamares de competências é o principal lenitivo para
criar motivação acrescida para aprender.
A empregabilidade, passaporte para uma cidadania de participação social e
de
inclusão económica, é função do domínio das competências críticas
requisitadas por um mercado de trabalho fortemente exigente e selectivo.
O grande teste à adequação real de um programa de requalificação
generalizada dos portugueses reside,
assim, na sua capacidade para motivar a nação e libertar as suas energias
interiores em torno do desígnio maior da aprendizagem e da formação ao longo da
vida. A generatividade da nossa sociedade aferir-se-á pelo empenho com que a
geração presente se preocupa com o bem-estar da seguinte e exprime a sua solidariedade
com as adversidades que atingiram as gerações precedentes.
O segredo está, pois,
em criar motivação.
Sem motivação não haverá procura sustentada e sem procura motivada –
entusiasmada – não haverá oferta que subsista no mercado da formação.
Motivar a aprender e aprender a motivar – um programa difícil mas onde se
decide a sorte de uma iniciativa de qualificação e
requalificação maciça dos portugueses.
Neste sentido, o ideal da Sociedade Educativa não se esgota num mero
projecto
técnico de melhoria das qualificações dos portugueses. Nem se confina a uma
proposta sectorial de intervenção pública.
Ela corporiza um
verdadeiro projecto de comunidade, apela a um programa mobilizador da nação, significa a vontade
contagiante de desinstalar um estado de coisas, corporiza uma ambição corajosa
de mudar.
Terminaremos, como em Julho de 2000, aquando da apresentação do relatório
Educação 2020 na Fundação Calouste Gulbenkian, citando Leonardo Coimbra:
“O homem não é uma inutilidade num mundo já feito; antes, é o obreiro de um
mundo por fazer”.
Boa sorte, Portugal!
Roberto Carneiro
Universidade Católica
Portuguesa
Centro de Congressos de Lisboa, aos 14 de Dezembro de 2005
( O texto em bold pretende chamar a atenção e é da
responsabilidade da Divulgação de textos)
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