A
Viagem de Vasco da Gama
de
Lisboa a Melinde,
em
Os Lusíadas
por Maria José Domingues
Introdução
Abordar um acontecimento histórico
como o é a viagem de Vasco da Gama à Índia, em 1497-98, a partir de Os Lusíadas, pressupõe esta questão
elementar: poderemos numa epopeia buscar a verdade histórica dos feitos
humanos?
«Uma epopeia é essencialmente a
criação poética suscitada pela emoção colectiva produzida por feitos
excepcionalmente heróicos», escreve Hernâni Cidade.[1]
Cerca de meio século foi o
suficiente para que a importância da viagem à Índia se tornasse consciência
nacional. Sem essa dimensão Os Lusíadas
não teriam sido possíveis. Se é um dado adquirido que sem o feito histórico de
1497-98 não haveria Os Lusíadas,
também é certo que sem a epopeia nacional a primeira chegada à Índia por mar
teria tido uma recepção muito mais reduzida.
O próprio Camões teve a percepção dessa superioridade da
sua arte poética por contraste com a matéria histórica fornecida pelo herói de
carne e osso, quando manda Vasco da
Gama (ou os seus herdeiros por ele) ficar grato às musas, inspiradoras do
Poeta: «Às
musas agradeça o nosso Gama» (Canto V, 99, 1).
Em Os Lusíadas as
fontes históricas, sem deixarem de valer por si, adquirem a grandeza que só a
verdadeira arte confere. Fale-se então da mistificação da realidade histórica,
distinguindo bem o que pertence à História e o valor acrescentado pela
Literatura. Os historiadores preocupar-se-ão mais com o ponto de partida do
Poeta; os literatos olham mais o produto acabado, isto é, o produto literário.
O crítico literário não pode menosprezar as fontes históricas pelo imperativo
de examinar o próprio acto criador ou recriador dos escritos históricos. Se o
leitor de Os Lusíadas souber que
Manuel de Sousa Sepúlveda sepultou nas areias africanas sua dilecta esposa,
Leonor de Sá, tendo depois «andado por esses matos, não há dúvida senão que
seria comido de tigres e leões»[2],
poderá avaliar melhor a recriação poética de Camões, que junta na mesma cova
para a eternidade o célebre casal - «Abraçados, as almas soltarão / Da formosa e
misérrima prisão».[3]
Aliás, a distanciação operada pela
instância narrativa da ficção começa logo na perspectiva do narrador, mesmo que
se trate do narrador heterodiegético, mas sobretudo quando há recurso ao
narrador homodiegético. A desatenção ao código literário pode induzir em erro.
Finalmente, convém ter presente que
Camões pretende garantir a historicidade das acções cantadas em Os Lusíadas: «Ouvi: que não vereis com vãs
façanhas/
fantásticas, fingidas, mentirosas/ Louvar os vossos, como nas estranhas/ Musas
de engrandecer-se desejosas: / As verdadeiras vossas são tamanhas, / Que
excedem as sonhadas, fabulosas,»[4].
O presente trabalho vai privilegiar
as fontes históricas da epopeia, tentando responder à questão formulada no
primeiro parágrafo. Para isso, fez-se o estudo dos textos da expansão
portuguesa mais directamente ligados à primeira viagem marítima à Índia pela
frota portuguesa capitaneada por Vasco da Gama, até à chegada a Melinde. Compararam-se
três textos históricos da primeira viagem à Índia com as estâncias da rota do
Gama no canto V de Os Lusíadas.
Seguidamente apresentaram-se algumas conclusões.
Sobre a importância de tal viagem,
digamos apenas que ela representa a união do Oceano Atlântico ao Oceano Índico,
ligando a Europa Ocidental à Índia, com tudo o que isto representa no campo do
conhecimento geográfico, astronómico e histórico, para além da mais-valia
comercial e consequentemente económica, no quase dealbar do século XVI.
I. A viagem de Vasco da Gama vista por Camões
(até ao final do Canto IV)
1. O sujeito da acção principal de Os Lusíadas: «Os vossos Argonautas»
O sujeito da acção principal da
epopeia é apresentado no epílogo da dedicatória a D. Sebastião, no Canto I,
estrofe 18, verso 5. Aí o poeta apresenta o sujeito da acção estruturante da
narrativa: «E
vereis ir cortando o salso argento / Os vossos Argonautas, por que vejam / que
são vistos de vós no mar irado, / E costumai-vos já a ser invocado.»
«Os vossos Argonautas» são o
sujeito expresso de «Já
no largo oceano navegavam,
/ As
inquietas ondas apartando;», versos 1 e 2 da estrofe 19, com a qual o
poeta insere a acção principal no poema.
Que poderemos entender por esse sujeito – «Os vossos
Argonautas» –, escolhido por Camões, para a acção principal?
A resposta óbvia é que estamos
perante um poeta de gosto clássico, não sendo de estranhar o uso de vocábulos
apontadores de uma profunda cultura greco-latina. Se fala das aventuras dos
marinheiros portugueses, porque não chamar-lhes Argonautas?
Reflicta-se, apesar do óbvio, sobre
o significado, mais que conhecido, da figura lendária dos Argonautas, com
génese anterior à Odisseia.
“Argonautas” foi o nome dado aos heróis gregos, que acompanharam Jasão na sua
expedição à Cólquida para conquistar o velo de ouro. Para o efeito,
construiu-se o navio Argo, que tinha o dom da profecia. Depois de uma longa e
difícil viagem, Jasão chegou à Cólquida, onde, com a ajuda de Medeia, filha de
Eetes, o dono e guardador do velo de ouro, conseguiu o que pretendia. Em fuga,
Jasão e Medeia, no meio das maiores dificuldades, atravessaram rios e mares e
chegaram à pátria grega. A lenda conservou na memória a lembrança das primeiras
viagens que fizeram os gregos no Helesponto, no Mar Negro, e através da Europa
ao longo dos grandes rios.[5]
O termo Argonautas para os marinheiros portugueses não
poderia ser melhor aplicado. Os nautas portugueses atravessam os mares
desconhecidos, no meio de incertezas e dificuldades, à procura de riqueza e
poder, que a sua pequena pátria não possuía, criando, como consequência, o
valor acrescentado «do saber de experiência feito», do conhecimento de novos
mares, novas terras e novas gentes. Pretende o poeta épico criar a epopeia que
propague a memória das primeiras viagens dos portugueses, com tudo o mais que
ela implica como descoberta antropocêntrica.
Quem cantou os Argonautas através da
epopeia Argonáutica foi Apolónio de
Rodes (c. de 295 a.C.) – homem de grande erudição no domínio da mitologia, da
geografia, da etimologia, e introdutor da pintura do amor entre Jasão e Medeia
(no Livro III, descreve com minúcia e verdade dramática a aparição e o
progresso irresistível da paixão entre as duas personagens). A sua epopeia
inspira-se nas epopeias, no espírito e na língua homéricas[6].
José Maria Rodrigues concluiu que Camões terá lido Argonautica
de Valério Flaco, ao preparar-se para escrever Os Lusíadas.[7]
Camões poderá ter tido em conta
estes saberes da antiguidade clássica ao apelidar os marinheiros portugueses de
Argonautas, numa construção argonáutica
portuguesa. Com esta base, poder-se-ia levantar a hipótese de Vasco da Gama
representar Jasão, tendo o poeta trocado Medeia por Téthis, a anfitriã da Ilha dos Amores.
Téthis, uma das divindades primordiais das teogonias
helénicas, casara com Oceano, personificando a fecundidade feminina do mar
pelos inúmeros filhos que gerara. É introduzida no Poema, na dedicatória a D.
Sebastião com uma proposta de casamento na segunda metade da estrofe 16: «Tethys todo o
cerúleo senhorio / Tem
pera vós por dote aparelhado, / Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro, / Deseja
de comprar-vos para genro.». Revelaria esta proposta a preocupação
política de Camões com o futuro da independência nacional, caso o rei não
deixasse herdeiro? Seria um convite ao destino dos mares e não à aventura no
Norte de África, que lhe haveria de trazer a morte?
A respeito dos Argonautas, em Os Lusíadas, pude ainda concluir:
a) «os
vossos Argonautas», da estância 18, são o sujeito dos dois primeiros
versos da estância 19 - «Já
no largo Oceano navegavam,/ As inquietas ondas apartando; […]».
b) A
transição entre a dedicatória e a narração faz-se com grande mestria
integrativa através da enunciação do sujeito dos dois primeiros versos da
estrofe 19, no sexto verso da estrofe 18, final da Dedicatória.
c) No final da estância 19, a acção é localizada no tempo, referindo «o gado de Próteu», simbolizando os peixes e o seu guardador, podendo ainda indicar o signo do Zodíaco de Peixes, localizando a acção entre 19 de Fevereiro e 19 de Março - «À vista da ilha de Moçambique: 1. 3. 1498», em Roteiro da primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia de Álvaro Velho.
c) No final da estância 19, a acção é localizada no tempo, referindo «o gado de Próteu», simbolizando os peixes e o seu guardador, podendo ainda indicar o signo do Zodíaco de Peixes, localizando a acção entre 19 de Fevereiro e 19 de Março - «À vista da ilha de Moçambique: 1. 3. 1498», em Roteiro da primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia de Álvaro Velho.
2. A primeira localização espacial dos portugueses no mar
A segunda
parte da acção principal tem início na estrofe 42 do canto I, e localiza a
acção no espaço: «Entre
a costa Etiópica e a famosa / Ilha de São Lourenço […]», localizada no
canto X, 137, 7-8, «De
São Lourenço vê a Ilha afamada, / Que Madagáscar é dalguns chamada.»
A introdução do leitor no meio da
acção nas epopeias clássicas é um preceito formulado na Arte Poética de Horácio, que Camões segue a preceito.[8]
Francis Rogers, estudioso camoniano,
viu na referência «O promontório prasso já passavam,» (estrofe 43, verso 5),
para além da influência clássica, a vontade de Camões ligar a sua obra à de
outro exemplo de arte literária. Segundo este estudioso, esse promontório
serviu de referência localizadora da meta quase alcançada pelos portugueses nas
suas viagens marítimas, na notícia dada ao mundo por Vasco Fernandes de Lucena
- orador do rei D João II - na Oração de Obediência proferida em latim na
presença do papa Inocêncio VIII, em 9 de Dezembro de 1485: «Com efeito, a maior
parte do circuito de África tendo sido então completado, os nossos no ano
passado chegaram quase ao Promontório Prasso, lá onde começa o Golfo Barbárico,
[…]»
Levanta Rogers a hipótese de Camões
ter lido o texto e fixado a referida meta, que mais tarde utilizou na sua
epopeia, para iniciar a narração da acção principal.[9]
É historicamente sabido que
Bartolomeu Dias descobriu a passagem de Sueste, abrindo o caminho tão desejado
para Oriente, chegando até ao Rio do Infante, entre o final de 1487 e o início
de 1488.
O Promontório Prasso da Geografia
ptolomaica tem sido apresentado com várias localizações: para uns é o Cabo das
Tormentas, para outros, o Cabo Delgado, o Cabo das Correntes, ou ainda uma das
pontas da costa africana, perto da ilha de Moçambique. É neste local que Camões
o situa. Certo é que em 1485 não fora ainda dobrado, todavia é esse o local
escolhido por Camões para colocar a frota portuguesa, que agora sim o
ultrapassava.
43
[…]
O promontório Prasso já passavam,
Na costa da Etiópia, nome antigo,
Quando o mar, descobrindo lhe mostrava
Novas ilhas, que em torno cerca e lava.
54
«Esta ilha pequena que habitamos
É em toda esta terra certa escala
De todos os que as ondas navegamos,
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala,
E, por ser necessária, procuramos,
Como próprios da terra, de habitá-la;
E, por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se a pequena ilha: Moçambique.»
(Canto I)
Conclusão
A frota de Vasco da Gama encontra-se a navegar no Oceano
Índico, perto de Moçambique, no início da narração da acção principal de Os Lusíadas.
3. De Moçambique a Melinde
Na estrofe 44, o Poeta traça o
retrato de «Vasco
da Gama, o forte Capitão, / Que a tamanhas empresas se oferece, / De soberbo e
de altivo coração, / A quem Fortuna sempre favorece,».
Nas estrofes seguintes, descrevem-se
as gentes, saídas de uma das ilhas, que se aproximam curiosas, em embarcações
próprias e com indumentárias originais. Sobem pelas cordas e são bem recebidas
pelo Capitão com bebidas e alimentos. Falavam árabe. Os portugueses
apresentam-se nas estrofes 50, 51 e 52; eles, nas estrofes 53, 54, 55. Fica-se
a saber que são estrangeiros muçulmanos naquela terra, e também em Quíloa,
Mombaça e Sofala; os autóctones são considerados criados pela «Natura, sem Lei
e sem Razão»
– um olhar terrível de alteridade; aquela ilha chama-se Moçambique e é uma
escala para os navegantes daquelas paragens.
Os problemas dos cristãos - enganos
e traições - em terra de árabes decorrem até à chegada a Melinde – porto de
abrigo e conforto para os mareantes portugueses, Canto II, estância 73 e
seguintes. É a pedido do rei melindano que o protagonista da acção principal
vai tomar a palavra para contar a História de Portugal, nos cantos III e IV, e
a sua viagem, no canto V.
A viagem vista por
Camões até ao final do canto IV- indicação das estâncias:
Canto
I
19
Os portugueses no mar
Já
no largo Oceano navegavam,
[…]
42
Localização dos portugueses
Enquanto
isto se passa na fermosa
Casa
etérea do Olimpo omnipotente,
Cortava
o mar a gente belicosa
Já
lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre
a costa Etiópica e a famosa
Ilha de S. Lourenço; e o Sol ardente
Queimava
então os Deuses, que Tifeu
Co
temor grande em pexes converteu.
43
[…]
O
promontório Prasso já passavam,
Na
costa da Etiópia, nome antigo,
Quando
o mar, descobrindo lhe mostrava
Novas
ilhas, que em torno cerca e lava.
54
«Esta
ilha pequena que habitamos
É
em toda esta terra certa escala
De
todos os que as ondas navegamos,
De
Quíloa, de Mombaça e de Sofala,
E,
por ser necessária, procuramos,
Como
próprios da terra, de habitá-la;
E,
por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se
a pequena ilha: Moçambique.»
As informações enganosas dos Mouros:
98
[…]
E
diz-lhe mais, co falso pensamento
[…]
Que perto está uma ilha, cujo assento
Povo
antigo, cristão sempre habitou
[…]
99
[…]
Quíloa,
mui conhecida pela fama.
100
Para
lá se inclinava a leda frota;
Mas
a deusa em Cítara celebrada,
Vendo
como deixava a certa rota
Pera
ir buscar a morte não cuidada,
Não
consente que em terra tão remota
Se
perca a gente dela tão amada,
E
com ventos contrairos a desvia
Donde
o piloto falso a leva e guia.
103
Estava
a ilha à terra tão chegada
[…]
Mombaça
é o nome da Ilha e da cidade.
Canto
II
Vénus protege a frota portuguesa, impedindo o
desembarque em Mombaça:
22
Põe-se
a deusa com outras em dereito
Da
proa capitaina, e ali fechando
O
caminho da barra, estão de jeito
Que
em vão assopra o vento, a vela inchando;
Põe
no madeiro duro o brando peito,
Pera
detrás a forte nau forçando;
Outras
em derredor levando-a estavam,
E
da barra inimiga a desviavam.
23
[…]
Tais
andavam as ninfas, estorvando
À
gente portuguesa o fim nefando.
Reúne o consilio dos deuses, que decide a favor dos
portugueses. Mercúrio prepara a recepção em Melinde e dirige-se a Mombaça, onde
ainda se encontra a frota temerosa. Aparece em sonhos a Vasco da Gama.
61
Quando
Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo:
«Fuge, fuge, Lusitano,
Da
cilada que o rei malvado tece,
[…]
E
outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde
podes seguro agasalhar-te.
70
E
como o Gama muito desejasse
Piloto
pera a Índia, que buscava,
Cuidou
que entre estes Mouros o tomasse;
Mas
não lhe sucedeu como cuidava,
[…]
Porém
dizem-lhe todos que tem perto
Melinde,
onde acharão piloto certo.
73
Quando
chegava a frota àquela parte,
Onde
o Reino de Melinde já se via,
[…]
92
[..]
Quando
o Rei Melindano se embarcava,
A
ver a frota que no mar estava.
101
Já
no batel entrou do Capitão
O
Rei, que nos seus braços o levava;
[…]
O Rei de Melinde pede a Vasco da Gama:
109
«Mas
antes valeroso capitão,
Nos
conta (lhe dezia) diligente,
Da
terra tua o clima e região
Do
mundo onde morais, distintamente;
E
assi de vossa antiga geração,
[…]
Canto
III – Gama
conta a história de Portugal até D. Fernando.
Canto
IV – Gama
continua a contar a História de Portugal, desde a morte de D. Fernando até à
partida da armada da praia do Restelo, ao som da voz do Velho do Restelo.
II. A viagem de Vasco da Gama na História e no canto V da epopeia de Luís
de Camões
1. As fontes textuais de Os Lusíadas
As fontes documentais trabalhadas
estão na base do roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, seguido
por Camões, com alguns desvios abrangentes de outras viagens realizadas por
portugueses.
Como primeira fonte informativa dos
roteiros da viagem, encontra-se a obra atribuída a Álvaro Velho, que terá sido
o relato de bordo de tal viagem – Roteiro
da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia, [10]
a que Ana Paula Avelar Menino
prefere dar a designação de Relação,
por omissão de indicações geográficas características de um roteiro.[11]
A
obra consultada do referido Roteiro é
da responsabilidade do Professor José Marques da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, de 1999. No âmbito das Comemorações do V Centenário dos
Descobrimentos Portugueses, o autor destaca «um monumento gráfico», testemunho
e referência da primeira viagem marítima à Índia realizada pelos portugueses: a
única cópia conhecida do seu relato, um códice existente nos Reservados da Biblioteca Pública
Municipal do Porto. Esse documento foi objecto de um projecto para uma nova
edição de fácil mas fiel leitura, com o máximo respeito pela sua escrita.
Admitindo a hipótese de que o Roteiro – o manuscrito que relata a
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia - tenha sido uma das fontes de Fernão
Lopes de Castanheda e de João de Barros, principais fontes comprovadas de Os Lusíadas, fez-se o registo textual dos quatro textos,
com objectivos comparativos e conclusivos.
Confrontaram-se os textos históricos
de Fernão Lopes de Castanheda e de João de Barros, respectivamente História do Descobrimento e Conquista Índia
pelos Portugueses[12] e Décadas.
[13]
O primeiro livro da História foi impresso a 6 de Março de
1551, o 2º e 0 3º, em 1553, o 4º e 0 5º, em 1553, o 6º e o 7º, em 1554, o 8º,
em 1561. O poeta ter-se-á servido da 1ª edição do primeiro livro, segundo José
Maria Rodrigues.[14]
Castanheda foi o primeiro historiador a editar uma obra sobre a presença dos portugueses
no Oriente.[15]
A primeira Década da Ásia acabou de
se imprimir em Lisboa a 28 de Junho de 1552, alguns dias depois da rixa que
levou o poeta à cadeia (16 de Junho) e ao Oriente. A segunda foi impressa em 24
de Março de 1553, dois dias antes da partida do poeta para a Índia. A terceira
foi publicada em 1553 e a quarta em 1615.[16]
Luís de Camões chega da índia em 1569, com Os
Lusíadas escritos e trata de os editar. Em 1572 vê o poema épico editado.
Cotejados
que foram os textos referidos em relação ao poema épico, elaboraram-se tabelas
de registo, a partir das quais são visíveis as semelhanças e as diferenças,
tornando possível chegar a conclusões.
2.Comparação textual
Fontes do roteiro da viagem de Vasco da Gama e o Canto V de Os Lusíadas –– 1. A partida
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)[18]
|
João de Barros – Ásia[20]
|
||
Ao som da voz do Velho, parte a armada do cais do
Restelo:
1
Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos
[…]
Dizendo: «Boa Viagem!». Logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.
Localização no tempo ( signo – Leão; 6ª idade; ano - 14x100+97=1497)
2
Entrava neste tempo o eterno lume
No animal Nemeio truculento;
E no Mundo, que co tempo se consume,
Na seista idade andava, enfermo e lento.
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do Sol catorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.
A dor da separação
3
Já a vista, pouco a pouco, se desterra
daqueles
pátrios montes, que ficavam; […]
|
«Partimos de Restelo um sábado, que eram 8 dias do mês de
Julho, da dita era de 1497, […]»[21]
|
«Despachado Vasco da Gama em Montemor-o-Novo, onde el-rei
estava, partiu-se com seus capitães para Lisboa, onde feita a sua armada
embarcou-se a gente dela, que foram cento e quarenta e oito pessoas: em
Restelo, […] um sábado, oito dias de Julho do ano de mil & ccccxcvij.»[22]
|
«Chegado Vasco da Gama com os outros capitães a Lisboa, na
entrada de Julho do ano de mil quatrocentos e noventa e sete, tanto que os
navios foram prestes, recolheu sua
gente para se partir»[23]; «Ao
seguinte dia, que era sábado, oito de Julho, por ser dedicado a Nossa
Senhora»; «E quando veio ao desfraldar das velas, que os mareantes, segundo
seu uso, deram aquele princípio de caminho, dizendo boa viagem,»; «Os
navegantes, dado que com o fervor da obra e alvoroço daquela empresa
embarcaram contentes,[…] vendo ficar em terra seus parentes e amigos, […] uns
olhando para a terra e outros para o mar e juntamente todos ocupados em
lágrimas e pensamentos»[24];
|
Conclusão 1. Há
unanimidade entre os quatro escritores quanto ao local e à data da partida da
armada de Vasco da Gama: Belém, 8 de Julho de 1497.
Conclusão 2. A
fonte de inspiração para a expressão dos sentimentos e emoções dos navegantes, traduzidos
pelo poeta nas estrofes 1 e 2, parece ter sido o texto de João de
Barros.
Fontes 2. - De Lisboa à ilha de Santiago, no arquipélago de
Cabo Verde
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
4
Assi
fomos abrindo aqueles mares,
Que
geração alguma não abriu,
As
novas Ilhas vendo e os novos ares
Que
o generoso Henrique descobriu;
De
Mauritânia os montes e lugares,
Terra
que Anteu num tempo possuiu,
Deixando
à mão esquerda, que à dereita
Não
há certeza doutra, mas suspeita.
5
Passámos
a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assi se chama;
[…]
6
Deixámos de Massília a estéril costa,
Onde
seu gado os Azenegues pastam,
[…]
7
Passámos o lemite aonde chega
O Sol, que pera o Norte os carros guia;
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Clymene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava e rega
Do negro Sanagá a corrente fria.
Onde o cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-lhe os nossos Cabo Verde.
8
Passadas tendo já as Canárias ilhas,
Que
tiveram por nome Fortunadas,
Entrámos, navegando, polas filhas
do velho Hespério, Hespéridas chamadas;
Ali tomámos porto […]
9.
Àquela ilha aportámos que tomou
O
nome do guerreiro Sant’Iago
|
«Primeiramente chegamos ao
sábado seguinte a vista das Canárias e essa noute passamos a julavento de Lancerote e a noute seguinte amanhecemos com a Terra
Alta, […] e logo esta noute em anoutecendo eramos atraves do Rio do Ouro.»[25]
À vista de Cabo Verde
23-26.7.1497
|
«E seguindo sua viagem dali a oito dias ouve vista das
Canárias. E indi uma noite através do rio do ouro […] E ao outro dia que
foram XXVIII de Julho chegaram todos à ilha de Santiago: e surgiram na praia
de santa Maria, onde fizeram agoada em sete dias»[28]
|
«com bom tempo que tiveram, em treze dias foram ter à ilha
de Santiago que é a principal de Cabo Verde, e onde tomaram algum refresco.»[29]
|
Conclusão
1 – Nos quatro primeiros versos da estrofe 4, o Poeta refere-se às descobertas
promovidas pelo Infante D. Henrique ao longo da costa africana de NW até à
Serra Leoa.
Conclusão
2 – O poeta pela voz de Vasco da Gama tece um roteiro livre, mais completo, mas
desordenado – ilha da Madeira, costa do Norte de África, trópico de Câncer,
Senegal, Canárias, Cabo Verde, Ilha de Santiago – aproveitando para informar e
descrever com pormenor e beleza poética, sobretudo no que se refere à ilha da
Madeira. Segundo o professor José Maria Rodrigues, o poeta terá entrelaçado a
rota gâmica com a da sua viagem para a Índia, a bordo da nau S. Bento, opinião
contestada por Gago Coutinho.
Comparação
das duas rotas:
Rota
gâmica: Lisboa, Canárias, ilha de S. Tiago, e daqui através do oceano, rumo ao
Sul.
Rota
da nau S. Bento: Lisboa, Madeira, Cabo Verde, rota costeira passando o
arquipélago de Bijagós, pelo «grandíssimo golfão».[30]
2.1.
Nenhuma das fontes cotejadas refere a ilha da Madeira. Vasco da Gama não terá
passado pela ilha da Madeira, mas sim Camões, na sua viagem para a Índia.[31]
2.2.
As ilhas Canárias não são referidas apenas por João de Barros. O poeta
desloca-as da situação geográfica na rota seguida.
2.3.
Sobre Massília, referida no Poema, escreve José Maria Rodrigues: «é óbvio que o
poeta não escreveu Massília», já que
ele sabia que os massílios habitavam no interior da Numíbia (parte interior da
Argélia), mas Maurúsia ou Maurásia,
influenciado por « Maurusia Gens da Eneida, IV, 206-207, e pelo termo Maurisii, que Sabellico por vezes
emprega para indicar os Mouros da costa do Atlântico.» E continua: «a
desastrosa substituição efectuou-se
também em V,6,1, onde Vasco da Gama, ao fazer a narrativa da sua viagem, diz ao
rei de Melinde: «
Deixámos de Massília a estéril costa,/ Onde seu gado os Azenegues pastam,
» como se tivesse passado na costa da antiga Numíbia e como se os Azenegues
houvessem mudado da costa marroquina do Atlântico para a da actual Argélia.»
Segue-se a tentativa de explicação da emenda feita por Frei Bartolomeu Ferreira
no referido verso que teria sido «Passamos de Maurusia a estéril costa,».[32]
2.4. Os
dois últimos versos da estrofe 4 poderão insinuar a suspeita sobre a existência
de um outro continente, à mão direita, aquele que virá a ser chamado América.
Conclusão
3. É unânime a escalada, no arquipélago de Cabo Verde, na ilha de Santiago,
todavia há uma pequena discordância quanto ao dia de Julho:
Fontes 3 – Da ilha de Santiago ao cabo da Boa Esperança
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
10
Por aqui, rodeando a larga parte
De
África que ficava no Oriente:
A
província Jalofo, que reparte
Por
diversas nações a negra gente;
A
mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos
o metal rico e luzente,
que
do curvo gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe;
A passagem pelo arquipélago de Bijagós:
11
As Dórcadas passámos, povoadas
Das
Irmãs que noutro tempo aí viviam;
[…]
Descendo até à ilha de S:
Tomé
12
Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa,
No
grandíssimo golfão nos metemos,
Deixando
a serra aspérrima Leoa,
Co
Cabo a quem das palmas nome demos.
O
grande rio, onde batendo doa
O
mar nas praias notas, que ali temos,
Ficou,
co a Ilha ilustre, que tomou
O
nome dum que o lado a Deus tocou.
A passagem do Equador
13
Ali o mui grande reino está do Congo,
por
nós já convertido à fé de Cristo,
por
onde o Zaire passa, claro e longo
[…]
Tendo
o término ardente já passado
Onde
o meio do mundo é limitado.
Chegada à Baia de Santa Helena
26
Desembarcámos
logo na espaçosa
Parte,
por onde a gente se espalhou,
Passagem do trópico de Capricórnio
27
Achamos ter de todo já passado
Do
semicarpo Pexe a grande meta,
Estando
entre ele e o círculo gelado
Austral,
parte do mundo mais secreta.
Passagem do Cabo das Tormentas - O episódio do
Adamastor
50
«Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório»
|
Baia de santa
Helena:
7. 11. 1497
«Item a terça
feira viemos em volta da terra e ouvemos vista de uma terra baixa e que tinha
uma grande baia […] A quarta feira lançamos âncora na dita baia onde
estivemos oito dias»
Descrição dos habitantes.
Episódio de Fernão Veloso.[33]
«Partida da Baia de
santa Helena, 16. 11. 97
[…] Nos partimos desta terra uma quinta feira pela manhã
[…] e ao sábado (18/11) à tarde ouvemos vista do dito Cabo da Boa Esperança e
em este dia mesmo viramos em a volta do mar e de noute viramos em a volta da
terra. E ao domingo pela manhã que foram dezanove dias do mês de Novembro
fomos outra vez com o Cabo e não o podemos dobrar […]
Passagem do Cabo da
Boa Esperança: 22. 11. 97
E a quarta feira ao
meio dia passamos pelo dito Cabo ao longo da costa com vento à popa. E junto
com este Cabo […] jaz uma angra muito grande»[34]
(5 dias para
realizarem a dobragem do cabo)
|
«E Vasco da Gama
seguiu por sua navegação indo caminho
do cabo de Boa Esperança […] Se engolfou no mar, per onde navegou Agosto,
Setembro, e Outubro com muitas tormentas»
«E foram ter a uma grande baía que por ter bom pouso
surgiram nela, e puseram-lhe nome de
angra de santa Helena..»[35]
«Feita agoada e carnagem, partiu-se Vasco da Gama uma quinta feira pela manhã que foram
dezasseis de Novembro»
« E ao sábado à tarde ouve vista do cabo de Boa Esperança,
e por lhe ser o vento contrário[…] tornou a virar na volta do mar em quanto
durou o dia, e de noite na volta da terra. E o mesmo lhe aconteceu até a
quarta feira seguinte que foram vinte de Novembro, em que dobrou este cabo»[36]
|
«E a primeira terra que
tomou antes de chegar ao cabo de Boa Esperança, foi a baia de santa Helena,
havendo cinco meses que era partido de Lisboa, onde saiu em terra, por fazer
aguada e assim tomar a altura do Sol.»[37]
«Seguindo Vasco da Gama seu
caminho na volta do mar por se desabrigar da terra, quando veio o terceiro
dia, que eram vinte de Novembro, passou aquele grão cabo da Boa Esperança,
com menos tormenta e perigo do que os marinheiros esperavam, pela opinião que
entre eles andava, donde lhe chamavam o cabo das Tormentas»
|
Conclusão
1. Discrepância quanto ao dia do mês de Novembro da dobragem do cabo da Boa
Esperança: 22 para Álvaro Velho e 20 para os dois historiadores.
Conclusão
2. João de Barros refere a expectativa e as opiniões dos marinheiros sobre a
passagem do cabo – «com menos tormenta e perigo do que os marinheiros
esperavam, pela opinião que entre eles andava, donde lhe chamavam o cabo das
Tormentas» –, baseadas em experiência anterior, uns pelo que ouviram contar e
outros talvez de «experiência feita» na viagem com Bartolomeu Dias a quando da primeira
dobragem. Talvez tenha estado aqui a primeira inspiração poética para o famoso
episódio de O Adamastor. José Maria
Rodrigues admite como fonte mais próxima do episódio do Adamastor o relato da
dobragem do Cabo na viagem de Pedro Álvares Cabral a Calecut nas duas obras dos
historiadores.[38]
Conclusão
3. O roteiro seguido por Camões é o de uma viagem costeira, permitindo
descrever a costa africana: o rio Gambeia (entre Cabo Verde e Bijagós),
Bijagós, a Serra Leoa, o cabo das Palmas, a ilha de S. Tomé, o Congo, o rio
Zaire, o Equador, e finalmente a Baía de Santa Helena. Lemos nos textos
cotejados que a frota de Vasco da Gama navegou no mar alto, durante três meses,
desde a ilha de Santiago até à baía de santa Helena.
Fontes 3.1. Canto V – O astrolábio – Gama consulta o
astrolábio na baía de Santa Helena
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
25
[…]
E,
pera que mais certas se conheçam
As
partes tão remotas onde estamos,
Pelo
novo instrumento do astrolábio,
Invenção
de sutil juízo e sábio:
26
[…]
Porém
eu, cos pilotos, na arenosa
Praia,
por vermos em que parte estou,
Me
detenho em tomar do Sol a altura
E
compassar a universal pintura.
27
Achamos
ter de todo já passado
Do
semicarpo Pexe a grande meta,
Estando
entre ele e o círculo gelado
Austral,
parte do mundo mais secreta.
[…]
|
Não refere o astrolábio
nesta parte do texto.
|
Não refere o astrolábio
nesta parte do texto.
|
«Porque, como do uso do
astrolábio para aquele mister de navegação, havia pouco tempo que os
mareantes deste reino se aproveitavam, e os navios eram pequenos não confiava
muito de a tomar ( a altura do sol) dentro neles por causa do seu arfar.
Principalmente com um astrolábio de pau de três palmos de diâmetro, o qual
armavam em três paus, à maneira de cábrea por melhor segurar a linha solar,
mais verificada e distintamente poderem saber a verdaeira altura daquele
lugar, posto que levassem outros de latão mais pequenos, tão rusticamente
começou esta arte que tanto fruto tem dado ao navegar. E porque em este reino
de Portugal se achou o primeiro uso dele em navegação […] Peró como a
necessidade é mestra de todas as artes, em tempo del-rei dom João o segundo,
foi por ele encomendado este negócio a mestre Rodrigo e a mestre Jusepe,
judeus, ambos seus médicos, e a um Martim da Boémia natural daquelas partes
[…] Os quais acharam esta maneira de navegar por altura do Sol, de que
fizeram suas tavoadas para declinação dele, como se agora usa entre os
navegantes, já mais apuradamente do que começou, em que serviam estes grandes
astrolábios de pau.
Pois estando Vasco da Gama
com os pilotos, pronto em tomar a altura do Sol[…]»[39]
|
Conclusão 1. O texto de João de Barros faz a história do
astrolábio desde os primórdios da navegação atlântica até à data da viagem de
Vasco da Gama, neste momento da narração da história da Viagem, em que o
capitão-mor se encontra na baía de santa Helena a consultar o astrolábio. É
neste contexto que o Poeta o refere.
Conclusão 2. Pela voz de Vasco da Gama, valoriza-se o
astrolábio e situa-se a acção: os marinheiros portugueses encontram-se em
terra com a frota a marear, para além do trópico de Capricórnio – entre esse
círculo e o círculo polar antárctico.
Conclusão 3. A inspiração terá vindo directamente do texto
de João de Barros.
Fontes 3.2. O episódio de Fernão Veloso
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
30
[…]
………. que fazem que se atreva
Fernão
Veloso a ir ver da terra o trato
E
partir-se co eles pelo mato.
31
a 36.
|
« Item este mesmo dia um Fernão Veloso
que ia com o capitão mor desejava muito ir com eles a suas casas […]»[40]
|
«Um dos nossos chamado Fernão Veloso, que desejava muito
de ver a sua maneira de vida pediu licença a Vasco da gama pera ir em sua
companhia: que ele lhe deu mais por importunação que por vontade. […]»[41]
|
«quando veio o outro dia, já com estes vieram mais de
quarenta, tão familiares, que pediam um homem de armas, chamado Fernão
Veloso, a Vasco da Gama que o deixasse ir com eles, ver a povoação que
tinham, para trazer mais notícia da terra, do que eles davam, o que Vasco da
gama concedeu, quasi a rogo de Paulo da Gama, seu irmão. […] Partido Fernão
Veloso com os negros […] E, sendo já sobre a tarde, querendo-se todos
recolher aos navios, viram vir Fernão Veloso por um teso abaixo mui apressado
[…] Os marinheiros do batel, porque Fernão Veloso nunca deixara de falar em
valentias, quando o viram sobre a praia descer com passos a meio chouto,
acinte detiveram-se em o recolher. A qual detença, deu suspeita aos negros,
que estavam em cilada, esperando a saída deles em terra […] e foi tanta a
pedrada e frechada sobre o batel, que quando Vasco da Gama chegou pólos
apaziguar foi frechado por uma perna»[42]
|
Conclusão 1. Todos os textos cotejados referem o episódio de
Fernão Veloso.
Conclusão 2. A fonte preferencial de Camões parece ter sido
o texto de João de Barros, por conter os laivos humorísticos trabalhados e
valorizados pelo Poeta.
Fontes 4. Do Cabo da Boa Esperança ao Ilhéu de Santa Cruz
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
61.[…]
Quando
a terra alta se nos foi mostrando
Em
que foi convertido o Gigante.
Ao
longo desta costa, começando,
Já
de cortar as ondas do Levante,
Por
ela abaixo um pouco navegámos,
Onde
segunda vez terra tomámos.
62
A
gente que esta terra possuía,
Posto
que todos etíopes eram,
Mais
humana no trato parecia
Que
os outros que tão mal nos receberam.
[..]
65
Já
aqui tínhamos dado um grão rodeio
À
costa negra de África, e tornava
A
proa a demandar o ardente meio
Do
Céu, e o pólo Antárctico ficava.
Aquele
ilhéu deixámos onde veio
Outra
armada primeira, que buscava
O
Tormentório Cabo, e, descoberto,
Naquele
ilhéu fez seu limite certo.
|
Angra de S. Brás: 25. 11. 97[43]
Contacto com os nativos –
referência ao canto e ao baile; à desconfiança do capitão-mor, aos bois.
Partida de Angra de S. Brás: 8. 12. 1497[44]
À vista dos Ilhéus Chãos:
15. 12. 1497[45]
Rio do Infante e Ilhéu da Cruz
«[…] o Rio do Infante que
era a derradeira terra que Bartolomeu Dias descobriu»
« e achamo-nos as dez horas
do dia com o Ilheo da Cruz»[46]
[Referência às correntes e
aos ventos que fizeram com que a frota navegasse sem progredir, durante cerca
de uma semana.][47]
|
«Dobrado o cabo de boa
Esperança, logo no domingo seguinte que foi dia de santa Catarina chegou
Vasco da Gama a agoada de S. Brás, que é sessenta léguas avante do cabo. É
uma grande baia muito grande abrigada de todos os ventos somente do norte […]
passados estes dias que Vasco da Gama aqui esteve, partiu-se caminho do rio
do Infante uma sexta feira oito dias de Dezembro, que foi dia de Nossa
Senhora da Conceição. E indo por sua viagem […] lhe deu uma grande tormenta
de vento com que correu a frota todo o dia […] passada esta borriscada aos 16
de Dezembro, ouve Vasco da Gama vista de terra onde lhe chamam os ilhéus
chãos […) E ao sábado passaram a vista
do ilhéu de Santa Cruz […] E ao domingo foram perlongando a costa […] E ao
outro dia ás dez horas chegaram ao ilhéu de santa Cruz[…] e neste mesmo dia
tornou a frota a passar a mesma carreira […] e assim iam todos muito alegres
por passarem donde Bartolomeu Dias tinha chegado, e Vasco da Gama assim os
esforçava, dizendo que assim quereria Deus que achassem a Índia.»[48]
|
« e dia de santa Catarina
chegaram onde se agora chama Aguada de S. Brás, que é além dele sessenta
léguas. [..9 E em três dias que Vasco da Gama se deteve aqui, tiveram os
nossos muito prazer com eles por ser gente prazenteira dada a tanger e a
bailar […} do qual lugar Vasco da Gama se mudou para outro porto perto daquele
[…] e foi tomar outro pouso daí a duas léguas onde recolheu todos os
mantimentos que levava em a nau e ela foi queimada.
Partido desse lugar […]
saltou com ele tão grande temporal […] e porque esta era a primeira tormenta
em que os mareantes se tinham visto […]
Mas aprouve à piedade de
Deus, […] que os tirou de tanta tribulação e os levou onde agora chamam os
ilhéus Chãos, cinco léguas avante do da Cruz, onde Bartolomeu Dias pôs o seu
último padrão, até irem tomar outros ilhéus. Na qual paragem, por causa das
grandes correntes, andaram ora ganhando ora perdendo caminho, até que dia de
Natal passaram pela costa do Natal a que eles deram este nome»[49]
|
Conclusão 1. Passado o cabo da Boa Esperança, viaja a frota para Oriente e desembarca pela primeira vez, naquela viagem, no Oceano Índico. Camões não dá nome à terra onde os portugueses se encontram. Refere-se certamente à Aguada de S. Brás, apontada unanimemente pelas fontes.
Conclusão 2. O texto de João de Barros enfatiza o contacto
com os nativos, na Aguada de S. Brás, destacando o seu alegre e bom trato e o
prazer do convívio. Todavia o Roteiro
refere a desconfiança de Vasco da Gama perante os nativos, embora destaque a
alegria deles traduzida pela música e a dança. Dedica-lhes um texto mais longo
que o habitual, dando conta de uma certa contradição entre a alegria e a atitude defensiva. Camões recorre ao verbo parecer para dar a ideia da desconfiança gâmica.
Conclusão 3. Camões refere a passagem ao oceano Índico e a
subida da costa africana em direcção ao Trópico de Capricórnio e ao Equador.
Conclusão 4. A chegada ao ilhéu de Santa Cruz é unânime e
ponto de referência para o fechar do circuito da viagem realizada por
Bartolomeu Dias, a quando da dobragem do cabo da Boa Esperança.
Conclusão 5. Até ao Ilhéu de Santa Cruz, a rota era
conhecida e estava a repetir-se. Bartolomeu Dias, após a passagem do Cabo,
chegara até aí e colocara o último padrão. Inicia-se a partir daqui a rota pela
primeira vez sulcada por naus portuguesas.
Fontes 5. Do Ilhéu de Santa Cruz ao Rio dos Reis
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
66
Daqui
fomos cortando muitos dias
Entre
tormentas tristes e bonanças,
No
largo mar fazendo novas vias,
Só
conduzidos de árduas esperanças.
Co
mar um tempo andamos em porfias,
Que,
como tudo nele são mudanças,
Corrente
nele achamos tão possante,
Que
passar não deixava por diante.
67
Era
maior a força em demasia,
Segundo
para trás nos obrigava,
Do
mar, que contra nós ali corria,
Que
por nós a do vento que assoprava.
Injuriado
Noto da porfia
Em
que co mar( parece) tanto estava,
Os
assopros esforça iradamente,
Com
que nos fez vencer a grão corrente,
68.
Trazia
o Sol o dia celebrado
Em
que três Reis das partes do Oriente
Foram
buscar um Rei, de pouco nado,
No
qual Rei outros três há juntamente.
Neste
dia outro porto foi tomado
Por
nós, da mesma já contada gente,
Num
largo rio, ao qual o nome demos
Do
dia em que por ele nos metemos.
69
[…]
Sem
vermos nunca nova nem sinal
Da
desejada parte Oriental.
Seguem-se três estrofes sobre o desalento e cansaço
dos portugueses.
72.
Crês
tu que já não foram levantados
Contra
seu capitão, se os resistira,
Fazendo-se piratas, obrigados
De
desesperação, de fome, de ira?
Grandemente
por certo estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os tira Daquela portuguesa alta excelência
De
lealdade firme e obediência.
|
Natal de 1497
[Referência a problemas:
com o material de navegação - fenda numa
barça (que os levou a acostar para reparações), perda de uma âncora, fractura
de um calabrete ;
com o abastecimento -«
daqui andamos tanto pelo mar sem
tomarmos porto que não tínhamos já água»[50]
Terra de Boa Gente: 10. 1. 1498
« […] ouvemos vista de um
rio pequeno e aqui pousamos ao longo da costa. […] Achamos muitos homens e
mulheres negros e são de corpo de grandes corpos, e um senhor antre eles. [ O
capitão-mor enviou roupas como presente ao senhor, que ficou muito satisfeito
e as vestiu, passeando-se entre os negros que batiam palmas de aprovação e
contentamento. Hospedou os portugueses enviados e deu-lhes a comer papas de
milho e galinha, que também mandou de presente ao capitão-mor. Mais tarde
deduziu-se que o senhor teria ido mostrar e dar novas ao seu rei, que mandou
homens para ver os portugueses. E já eram mais de duzentos. Pareciam ser mais
mulheres que homens. Carregavam água do mar para o interior para fazerem a
extracção do sal. Pareceu-lhes existir muito cobre e, por isso, chamaram ao
rio, Rio do Cobre.][51]
|
Capítulo IIII – De como
Vasco da Gama chegou a terra da boa gente, […]
«Prosseguindo a sua rota,
achou dia de Natal que tinha descoberto por costa setenta léguas a leste, que
era o rumo a que levava em regimento que a Índia jazia, e daqui andou tanto
pelo mar sem tomar terra que lhes falecia a água para beber[…] dez dias de
Janeiro do ano de 1498, foi nos bateis ao longo da terra[…] e andando assim
viram muitos negros […] e vendo Vasco da gama que mostravam ser gente mansa
mandou sair em terra um dos nossos chamado Martim Afonso […]»
[Oferece ao senhor da terra
roupas, um gorro vermelho e uma moeda de cobre de que ele gostou muito.
Martim Afonso e outro português foram
aquela noite à povoação onde pernoitaram. E tudo decorre como refere o Roteiro.]
«E por esta gente ser muito
doméstica com os portugueses e lhes fazer aguada lhe foi posto nome a agoada
da boa gente, e a um rio onde fez agoada o rio do cobre. E partiu-se daqui
aos quinze dias de Janeiro»[52]
|
«Até que dia de Natal
passaram pela costa do Natal a que eles deram este nome, e dia de Reis
entraram no rio deles, e alguns lhe chamam do cobre por o resgate dele em
manilhas e assim marfim, e mantimento que os negros a terra com ele
resgataram, tendo com os nossos tanta comunicação por Vasco da Gama os
satisfazer com dádivas, que foi um Martim Afonso, marinheiro à aldeia deles
por licença do capitão.»
[Foi muito bem recebido na
aldeia e regressou satisfeito e acompanhado por mais de duzentos homens. O
senhor da aldeia veio visitar a frota. Por tudo isso, Vasco da Gama
chamou-lhe Aguada da Boa Paz.] [53]
|
Conclusão 1. A partir do Ilhéu de Santa Cruz, a rota está a
realizar-se pela primeira vez pelos portugueses. É notória a preocupação ao
navegar em rota desconhecida.
Conclusão 2. Camões, na estância 66, consegue transmitir a
ideia das dificuldades marítimas acrescidas de um estado de espírito entre a
tristeza e a árdua esperança de abrir novas vias, entre avanços e recuos.
Conclusão 3. A estrofe 72, para além da expressão do extremo
sofrimento humano, poderá insinuar um hipotético motim na frota portuguesa,
provocada pelo desalento, fadiga e desnorteio, através da pergunta retórica.
Conclusão 4. Álvaro Velho e Castanheda não fazem referência
ao dia de Reis e ao rio com esse nome, antes lhe chamam Rio do Cobre, na Terra
da Boa Gente. João de Barros refere o dia de Reis e o bom encontro com a terra
e o rio que foi chamado Rio dos Reis ou Rio do Cobre. Conclui-se pelo cotejo
textual que a fonte camoniana terá sido o texto de João de Barros.
Conclusão 5. Álvaro Velho chama «Terra da Boa Gente»,
Castanheda, «agoada da boa gente», ao mesmo local a que Barros chama Aguada da
Boa Paz, pelas mesmas razões.
Fontes 6. O Rio dos Bons Sinais
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
73
Deixando
o porto, enfim, do doce rio
E
tornando a cortar a água salgada,
Fizemos
desta costa algum desvio,
Deitando
pera o pego toda a armada;
Por
que ventando o Noto, manso e frio,
Não
nos apanhasse a água da enseada
Que
a costa faz ali, daquela banda
Donde
a rica Sofala o ouro manda.
74.
Esta
passada, logo o leve leme
Encomendado
ao sacro Nicolau,
Pera
onde o mar na costa brada e geme,
A
proa inclina duma e doutra nau;
[…]
Foi
de uma novidade alvoroçado.
75
E
foi que, estando já da costa perto,
Onde
as praias e vales bem se viam,
Num
rio, que ali sai ao mar aberto,
Batéis
à vela entravam e saíam.
Alegria
mui grande foi, por certo,
Acharmos
já pessoas que sabiam
Navegar,
porque entre elas esperámos
De
achar novas algumas, como achámos.
76
Etíopes
são todos, mas parece
Que
com gente milhor comunicavam;
Palavra
alguma Arábia se conhece
[…]
77
Pela
Arábica língua, que mal falam
E
que Fernão Martins mui bem entende
Dizem
que, por naus, que em grandeza igualam
As
nossas, o seu mar se corta e se fende;
[…]
78
Mui
grandemente aqui nos alegrámos
Co
a gente, e com as novas muito mais.
Pelos
sinais que neste rio achámos
O
nome lhe ficou dos Bons Sinais.
Um
padrão nesta terra alevantámos,
Que,
pera assinalar lugares tais,
Trazia
alguns; o nome tem do belo
Guiador
de Tobias o Gabelo.
|
Rio dos Bons Sinais: 24. 1. 1498
«Em uma segunda feira indo
pelo mar tivemos vista de uma terra muito baixa e de uns arvoredos muito
altos e juntos e indo assim nesta rota vimos um rio largo em boca, e porque
era necessário saber e conhecer onde éramos pousamos. [ Descreve os
habitantes, o seu vestuário e o seu comportamento. Destaca um jovem que se
encontra de visita aos fidalgos daquela terra e que dá notícias de
embarcações semelhantes às portuguesas, para gáudio dos navegantes
lusitanos.]
E nos estevemos neste rio
trinta e dous dias [Manifesta-se o escorbuto]. E aqui posemos um padrão […] o
padrão de S. Rafael e isto porque ele o levava, e ao Rio dos Bons Sinais.»
Partida do rio dos Bons Sinais: 4. 2. 1498[54]
|
«e navegou ao longo da
costa até aos vinte quatro [ de Janeiro] que surgiu na boca dum rio muito
largo. E entrado neste rio para saber novas da Índia [encontro com os
nativos, que não eram desconfiados, embora não entendessem as línguas faladas
pelos portugueses.]
E avendo três dias que
estavam neste rio, foram dous negros ver Vasco da Gama, que no aparato que
levavam pareciam ser senhores […] disse um dos negros que iam com eles por
acenos a Vasco da Gama que em sua terra, que era dali longe vira navios
grandes como os nossos, com que se acrescentou muito o prazer de V. da G. e
de todos, parecendo-lhes que se chegavam à Índia. […] e por estas novas que
V. da G. achou neste rio lhe pôs nome o rio dos bons sinais: e mandou meter
em terra um padrão a que pôs nome S. Rafael, porque se chamava assim o navio
que o levava.
E parecendo-lhe […] que a
Índia estava dali longe, ouve por bem com conselho dos outros capitães que
tirassem os navios a monte, o que foi feito em 32 dias, e os concertaram
muito bem.»[55]
|
«E daqui por diante começou
de se afastar algum tanto da terra com que de noite passou o cabo a que ora
chamamos das correntes, porque começa a costa a encurvar-se tanto para dentro
passado ele, que sentindo Vasco da Gama que as águas o apanhavam para dentro,
temeu ser alguma enseada penetrante donde não pudesse sair.. […] passou sem
haver visto da povoação de Sofala, tão celebrada naquelas partes, por causa
do muito ouro […] E foi entrar em um rio mui grande abaixo dela cinquenta
léguas, vendo entrar por ele una barcos com velas de palma. […] e a gente deste
rio pêro que também fosse da cor e cabelo como eles eram [ os guineenses],
havia entre eles homens fulos que pareciam mestiços de negros e mouros, e
alguns entendiam palavras de aravigo que lhe falava um marinheiro por nome
Fernão Martins […] com os quais sinais e outros que eles deram, dizendo que
contra o nascimento do Sol havia gente branca que navegava em naus como
aquelas suas, as quais eles viam passar para baixo e para cima daquela costa:
pôs Vasco da Gama nome a este rio dos Bons Sinais. […] com ajuda dos da terra
pôs um padrão por nome S. Rafael.[…] Por espaço de um mês, que ali estiveram
no corregimento dos navios, adoeceu muita gente de que morreu alguma.».[56]
|
Conclusão 1. A armada ultrapassa o promontório Prasso
referido por Camões na estrofe 43 do Canto I, a que João de Barros, historiador
sedentário, chama «cabo das correntes», não caindo o poeta na mesmo erro, uma
vez que conhecia muito bem a geografia do lugar.
Conclusão 2. Os quatro textos referem a chegada ao Rio dos
Bons Sinais.
Conclusão 3. A que bons sinais se referem? Sabemos que a
esperança de encontrar a Índia por caminhos nunca dantes navegados por
portugueses era «árdua», segundo Camões, e a tristeza de não encontrar qualquer
sinal, bastante. O encontro de sinais apontadores do objectivo a atingir animou
os nautas: sobretudo notícias vagas de embarcações semelhantes às portuguesas
passarem ao largo com homens brancos.
Conclusão 4. A fonte da epopeia no que respeita aos sinais
parece ter sido o texto de João de Barros. Os dois textos referem Sofala e a
sua riqueza.
Conclusão 5. Álvaro Velho e Castanheda destacam a existência
de senhores entre os habitantes. Os
textos dos dois aproximam-se bastante.
Conclusão 6. Os quatro textos são unânimes quanto ao padrão
S. Rafael colocado no Rio dos Bons Sinais.
Fontes 6.1. O escorbuto
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
81
E
foi que, de doença crua e feia,
A
mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos
a vida, e em terra estranha e alheia
Os
ossos pera sempre sepultaram.
Quem
haverá que, sem o ver, o creia,
Que
tão disformemente ali lhe incharam
As
gingivas na boca, que crecia,
A
carne e juntamente apodrecia?
82
Apodrecia
cum fétido e bruto
Cheiro,
que o ar vizinho inficionava.
Não
tínhamos ali médico astuto.
Sururgião
sutil menos se achava,
Mas,
qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela
carne já podre assi cortava
Com
se fora morta, e bem convinha,
Pois
que morto ficava quem a tinha.
|
No Rio dos Bons Sinais,
Manifesta-se
o escorbuto
«E nós estivemos neste rio
trinta e dois dias [manutenção e reparação]. E aqui nos adoeceram muitos
homens que lhe inchavam os pés e as mãos e lhe creciam as gengivas tanto
sobre os dentes que os homens não podiam comer.»[57]
|
«E neste tempo passaram os
nossos assaz de trabalho com uma doença lhes sobreveio, (parece que do ar
daquela região) que a muitos lhe inchavam as mãos, e as pernas, e os pés. E
com isto lhes cresciam tanto as gengivas sobre os dentes que não podiam comer
e apodreciam-lhe, de maneira que não havia quem suportasse o fedor da boca, e
com estes males padeciam dores mui grandes e morreram alguns. O que pôs a
gente em grande desmaio. E em muito maior a pusera se não fora por Paulo da
Gama que era de tão boa condição que de noite e de dia visitava todos, e os
consolava e curava, e repartia com eles mui largamente dessas cousas de
doentes que levava para sua pessoa.»[58]
|
«Por espaço de um mês, que
ali estiveram no corregimento dos navios, adoeceu muita gente de que morreu
alguma. A maior parte foi de herisipolas e de lhe crescer tanta carne nas
gengivas, que quasi não cabia na boca aos homens, e assim como crescia
apodrecia e cortavam nela como em carne morta, cousa mui piedosa de ver: a
qual doença vieram depois conhecer que procedia das carnes, pescado salgado e
biscouto corrompido de tanto tempo.»[59]
|
Conclusão 1. É unânime a presença da doença do escorbuto em
alguns marinheiros portugueses, na escalada no rio dos Bons Sinais.
Conclusão 2. O mau hálito, autêntico fedor, só é referido no
texto de Castanheda.
Conclusão 3. O cortar da carne morta só é referido por João
de Barros.
Conclusão 4. Camões conhecia os textos cotejados, contudo a
doença deveria ser assunto preocupante no tempo, buscando-se as causas e a
cura.
Conclusão 5. É de relevar a busca das causas da doença nos
textos de Castanheda e de Barros. Castanheda opina com a opinião mais aparente
a um primeiro olhar – parece ser dos ares da região. Barros vai mais ao fundo
da questão e fala da alimentação como causa. Hoje sabe-se que é de facto na
alimentação que reside a causa da doença.
Fontes 7. Moçambique
Os Lusíadas – Canto V
|
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses – Fernão Lopes de
Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
84.
Assi
que, deste porto nos partimos
Com
maior esperança e mor tristeza,
E
pela costa abaixo o mar abrimos,
Buscando
algum sinal de mais firmeza.
Na
dura Moçambique, enfim surgimos,
De
cuja falsidade, e má vileza
Já
serás sabedor, e dos enganos
Dos
povos de Mombaça, pouco humanos.
85
Até
que aqui, no teu seguro porto,
Cuja
brandura e doce tratamento
Dará
saúde a um vivo e vida a um morto,
Nos
trouxe a piedade do alto Assento.
Aqui
repouso, aqui doce conforto,
Nova
quietação do pensamento,
Nos
deste. E vês aqui, se atento ouviste,
Te
contei tudo quanto me pediste.
|
À vista da ilha de Moçambique:
1. 3. 1498
«e andamos seis dias pelo
mar porque as noites pairávamos.[…] Ouvemos vista das ilhas e terra […] e os
capitães ouveram por conselho que entrassem em esta angra pera saberem o
trato desta gente e que Nicolau Coelho fosse primeiro com o seu navio a
sondar a barra e que se fosse para entrar que entrariam. [A embarcação de
Coelho teve uma avaria, que o impossibilitou de atracar e, por isso, voltou a
sair para o mar alto. O narrador presentifica-se, na primeira pessoa do
singular: «e eu era ali com ele». Segue-se a descrição dos habitantes e das
suas roupagens já de gosto oriental, bem como das suas palavras e cortesias.
Deram informações, nomeadamente sobre o reino de Prestes João, que não
estaria longe, contudo, como não era na costa, teriam de ir de camelo. O Sultão
visitou por várias vezes Vasco da Gama e este veio a pedir-lhe dois pilotos
que o conduzissem à Índia.]
«Um sábado, 10 de Março,
partimos e viemos pousar uma légua em mar junto com uma ilha, para que ao
domingo dissessem missa e se confessassem e comungassem os que quisessem.
Um daqueles pilotos ficara
na ilha e depois que pousamos armamos dois bates [ para o ir buscar. É nesse
momento que são perseguidos e atacados por uma meia dúzia de barcos. O
capitão-mor, ao ver aquilo, prendeu o piloto e mandou bombardear as
embarcações, que fugiram para terra] e assi nos tornamos ao pouso.
Missa na ilha de S. Jorge:
11. 3. 1498
«e ao domingo dissemos
nossa missa em a ilha […] e depois viemos para as nossas naus e logo nos
fizemos à vela»[60]
|
«Capítulo V De como Vasco da Gama com toda a frota foi
ter à ilha de Moçambique.
Concertadas as naus […],
Vasco da Gama tornou ao seu descobrimento: e partiu-se um sábado 24 de
Fevereiro: […] o primeiro de Março viu quatro ilhas […] determinava de ir por
antrelas, como foi, mandando diante Nicolau Coelho [ e tudo se passa conforme
o narrado no roteiro].
Capítulo VII. De como o sultão de Moçambique quis fazer traição a Vasco da
gama: e do que sucedeu sobre isso.
«e os mouros vieram a
entender que os nossos eram Cristãos, pelo qual toda a amizade que tinham com
eles se lhe tornou em ódio e desejo de os matarem, e de lhes tomarem as naus.
E isto concertava o sultão de fazer, […] um dos pilotos mouros descobriu a
Vasco da Gama sendo o outro em terra. E sabendo ele isto, 8…] partiu-se logo
um sábado dez de Março.»[61]
|
«A 24 de Fevereiro […] daía a cinco dias chegou a uma povoação
chamada Moçambique e foi pousar a uns ilhéus apartados dela pouco mais de
légua ao mar […] os quais ora se chamam de S. Jorge. […] viram vir três os
quatro barcos […]. A gente dos quais vinha tangenso e cantando, a mais dela
bem tratada, e entre eles homens brancos com toucas na cabeça e vestidos de
algodão à moda dos mouros de África, que foi para os nossos muito grande
prazer»
Falavam árabe e
entenderam-se através de Fernão Martins, que, nestas situações servia de
intérprete..Dialogaram. Gama explicou o seu objectivo e pediu um piloto.
Capítulo IV « Como depois
que Vasco da Gama assentou paz com o Xeque de Moçambique, e ele lhe prometer
piloto para o levar à Índia, se rompeu a paz, e do que sobrisso socedeu»
O mouro recebeu as
mensagens de bom grado e foi a terra
apresentar os factos e os pedidos ao Xeque. Três abexins vão às naus vender
mantimentos e falam que são da terra de Prestes João das Índias, para gáudio
dos portugueses, mas nunca mais os vêem. Arranjaram –lhes dois pilotos, pagos
adiantadamente. Vasco da Gama desconfiou. Dois bateis foram atacados,
terminando assim a paz. A 11 de Março, Vasco da Gama saiu para a ilha de S.
Jorge donde partirá, «sem querer ter comunicação com os de Moçambique».
Contudo, voltam para fazer aguada, mas o clima não é de paz. Finalmente
recolhem informações e água e partem.[62]
Descrição de Moçambique. –
povoação: […] surgiram diante da povoação […] a qual estava assentada em um pedaço
de terra torneada de água salgada […] tudo terra baixa e alagadiça, donde se
causa ser ela mui doentia, cujas casa eram palhaça, somente uma mesquita e as
do xeque que eram de taipa com eirados por cima.
«Os povoadores da qual eram
mouros vindos de fora, os quais fizeram aquela povoação como escala da cidade
de Quíloa, que estava adiante, e da mina de Sofala, que ficava atrás.[…] E os
naturais que eram negros de cabelo revolto como de Guiné, habitavam na terra
firme.[…]. A qual povoação de Moçambique daquele dia tomou tanta posse de
nós, que em nome é hoje a mais nomeada escala de todo o mundo […9.»[63]
|
Conclusão 1. 1 de Março de 1498 é a data unânime da chegada ao
arquipélago a que pertence a ilha de Moçambique. Note-se que a narração iniciada no canto I, estância 19, por um narrador heterodiegético, conta que os argonautas se encontram no canal de Moçambique, «in media res». Essa era a rota desconhecida até à Índia, pois até ao Rio dos Bons Sinais, Bartolomeu Dias já a tinha percrrido.
Conclusão 2. Álvaro Velho e João de Barros relatam com
pormenor o sucedido entre portugueses e mouros.
Conclusão 3. Camões exprime a problemática histórica através
da enunciação dos nomes abstractos falsidade
e vileza adjectivada de má, num reforço pleonástico de pendor
mais negativo ainda, tendo antes qualificado Moçambique de dura.
Conclusão 4. Álvaro Velho e Castanheda denominam o chefe da
ilha por Sultão e João de Barros por Xeque.
Conclusão 5. João de Barros, na página 28, descreve
a ilha de Moçambique, situa-a entre a mina de Sofala e Quíloa, e refere ainda a sua
importância no futuro da expansão portuguesa no Oriente.
Conclusão 6. João de Barros distingue os autóctones dos
povoadores e explica a missão dos últimos.
Fontes 8. De Moçambique a Melinde:
Os Lusíadas – Canto V: 84. […] Já serás sabedor, e dos enganos / Dos povos de Mombaça, pouco humanos.
Os Lusíadas – Canto V: 84. […] Já serás sabedor, e dos enganos / Dos povos de Mombaça, pouco humanos.
Roteiro da
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
(Álvaro Velho)
|
História do Descobrimento e Conquista da Índia
pelos Portugueses – Fernão Lopes
de Castanheda
|
Ásia, João de
Barros
|
Rumo a
Mombaça
Foram ao
engano, em busca de uma cidade de cristãos, indicada pelos pilotos mouros.
Encalhe do
S. Rafael
6. 4. 1498
Desencalhado o barco, apareceram duas embarcações
com presente de laranjas mais doces do que as de Portugal No navio ficaram dois mouros
que no dia seguinte conduziram os portugueses a Mombaça para verificarem
como aí havia cristãos. Foram então
ao longo da costa e viram muitas ilhas todas elas povoadas de mouros.
Frente à
ilha e cidade de Mombaça
7. 4. 1498
Ancoram a frota frente a Mombaça, toda embandeirada
nos seus muitos barcos.
«Fezemos outro tanto e
mais aos nossos navios que nos falecia senão gente que não tínhamos porque
ainda esta pouca que tínhamos era muito doente. E ali pousamos com muito
prazer parecendo-nos que ao outro dia iríamos ouvir missa em terra com os
cristãos que nos diziam que aqui havia e que estavam apartados sobre si dos
mouros e que tinham alcaide seu.»
Visita de mouros ao navio do Capitão, com intenções
pouco claras.
Domingo de Ramos,
o rei envia presentes e dois homens brancos que se diziam cristãos.
Vasco da Gama enviou dois homens para verificarem sobre os cristãos e ficou
com quatro mouros. Regressaram os portugueses com presentes e acreditando
nos dois cristãos que viram.
Traição
descoberta
Os navios não conseguiram entrar no porto e os
mouros pensando que os portugueses iam embora atacaram e os pilotos
atiraram-se à água.
«Estas e outras muitas
maldades ordenavam estes perros mas Nosso Senhor não quis […]»
Descrição
de Mombaça
«Quis Deus por sua
misericórdia que como fomos junto desta cidade logo todos os doentes que
trazíamos foram sãos porque esta terra é de muito bons ares.»
«E partimos de manhã
dali.»
Ancoragem
frente a Melinde
14. 4.
1498 […]
Contacto
com o rei de Melinde[64]
|
Cap. IX - De como Vasco da Gama chegou Á cidade de
Mombaça, e do que lhe aí aconteceu
« um sábado sete de Abril»
viram os portugueses surgir Mombaça, terra de muitos mantimentos: boa carne,
muito cereal, muita hortaliça, muita fruta, nomeadamente citrinos.
Descreve-se a ilha, a cidade, os habitantes e o seu vestuário. Refere-se a
cidade comercial com o porto repleto de embarcações.
Os portugueses estavam
muito contentes e convencidos de que iriam assistir à missa em terra com os
habitantes cristãos. O rei enviou
presentes (laranjas, cidrões, etc.) e convidou Vasco da Gama a entrar no seu
porto.
Segue-se envio dos dois homens para verificar a
existência de cristãos. Verificação feita, estava tudo prestes a entrar no
porto quando surge o problema na nau capitania e os mouros se desmascaram,
pensando terem sido descobertos na sua traição. À noite atentaram sorrateiramente contra os navios, nmas
foram descobertos. De manhã a frota portuguesa parte.
Cap. X De como Vasco da Gama chegou à cidade de
Melinde.
A âncora perdida. A
partida sem piloto. A tomada dos barcos e doss seu tripulaantes e haveres.
Chegada a Melinde «e parece. se com Alcochete».[65]
|
O piloto fornecido pelo
xeque de Moçambique não conseguiu levar a frota à traiçoeira Quíloa, por
causa das correntes.
«Aos sete dias de Abril,
véspora de domingo de Ramos, chegaram ao porto de uma cidade chamada
Mombaça, em a qual o mouro disse que havia cristãos»
Descrição da cidade.
Primeiro contacto. Pedido de um piloto para entrar no porto da cidade. As
cautelas dos mouros e dos portugueses.
Envio de dois portugueses com os mouros para espiarem o ambiente da
cidade. Entrada da armada no porto roda engalanada perante grande
assistência. Um problema naútico com a vela da nau capitania, fez qom que se
manobrasse ruidosamente; pensando os mouros que era uma revolta e que a
traição estava descoberta, lançaram-se ao mar ou aos barcos e fugiram.
Então, os portugueses perceberam o engano em que estavam prestes a cair e
partiram. Durante a noite ainda tentaram cortar as amarras dos navios, mas
foram descobertos e impedidos. Partiram e encontraram uma embarcação e
conseguiram informações muito positivas sobre Melinde e o seu rei. Decidiram
atracar aí para tentar arranjar piloto que os levasse à Índia.
E foi no dia de Páscoa de
1498 que a armada chegou a Melinde. [66]
|
Conclusão 1. O Roteiro dá um grande destaque aos acontecimentos de Mombaça, tal como os textos dos dois historiadores: a eterna desavença entre mouros e cristãos.
Conclusão
2. As laranjas muito doces e melhores que as de Portugal são destacadas
especialmente entre todos os alimentos, no Roteiro
e na História. Sabe-se que a
vitamina C é fundamental para a cura do escorbuto e outras doenças. Contudo, é
só aos bons ares que é atribuída, no Roteiro,
a cura dos nautas doentes.
Conclusão
3. Camões sintetiza os acontecimentos em dois versos da estância 84. […] Já serás sabedor, e dos enganos / Dos povos
de Mombaça, pouco humanos.
Conclusão
4. As descrições da cidade e dos seus habitantes assemelham-se nos três textos,
bem como as sequências narrativas.
Conclusão
5. Nos três textos, os autores referem a intervenção divina no momento em que
os portugueses iam cair nas armadilhas preparadas pelos mouros. Certamente terá sido este
recurso à divindade que inspirou Camões a colocar Vénus e as Nereides a
impedir as naus de entrarem nos portos da traição.
Conclusão
Os textos comparados têm em comum o
tópico – a primeira viagem por via marítima à Índia, entre Lisboa e Melinde – e
o seu protagonista, o Capitão-mor Vasco da Gama, adjuvado pelos nautas, seus
companheiros de viagem e sobretudo por Deus, a quem os prosadores referidos
aludem quando vencem o perigo. Como forças oponentes mais perigosas destacam-se
as traições e armadilhas provenientes dos Mouros, os inimigos ancestrais,
surgidas no término da viagem, depois de os portugueses terem resistido aos
esperados e aos inesperados perigos de tão longa viagem.
O primeiro texto a ser escrito foi o
Roteiro, de redacção contemporânea da
viagem e coincidente com ela. Ele terá sido a fonte preferencial das obras dos
dois historiadores, publicadas, pelo menos na parte respeitante à viagem,
durante a vida de Luís de Camões e a tempo de lhe servir de fonte.
Segundo José Maria Rodrigues,
estudioso das fontes da epopeia, «em um terço, aproximadamente, das estâncias
dos Lusíadas é manifesta a influência
exercida pela leitura que o poeta tinha daqueles dois escritores», referindo-se
a Fernão Lopes de Castanheda e a João de Barros.[67]
Pela comparação de textos efectuada,
pode concluir-se da inter-relação existente entre o Roteiro e as restantes obras comparadas, uma vez que ele seria
conhecido dos três escritores quinhentistas, tendo-lhes servido de fonte.
Poder-se-á responder agora à
pergunta colocada no primeiro parágrafo da Introdução: poderemos numa epopeia,
mesmo quando ela tem por base a própria História, buscar a verdade histórica
dos feitos humanos?
No caso de Os Lusíadas, é possível encontrar a verdade histórica para a maior
parte da viagem estudada.
O Professor Luís de Albuquerque
afirma:
«Camões quis, por conseguinte, que a sua epopeia não contivesse senão a
verdade. Até onde me foi possível acompanhá-lo, concluo que nunca se afastou de
um tal propósito».
O insigne matemático está a referir-se a casos experimentais
ou objectivamente incontroversos como à descrição da tromba de água (Canto V,
19), às referências geográficas que, segundo ele, estão de acordo com as
experiências recolhidas nas viagens dos Portugueses e dos Espanhóis, ou no caso
da Astronomia, com o que se lia no livro adoptado nas Universidades, em
particular, na de Coimbra, mas também ao eixo temático da epopeia – a viagem de
Vasco da Gama – que é tratado com um escrupuloso respeito para com os factos,
tais como eles poderiam ser conhecidos por Luís de Camões, através de uma
tradição oral (que ignoramos) ou pelas narrações escritas que chegaram até nós.
Termina afirmando que Os Lusíadas são
um poema escrito com um alto respeito pela verdade. Verdade que Camões não se
cansa de exaltar colocando-a duas vezes a par com a justiça [68].
O poeta exprime o conceito no Canto V, 23, depois de descrever a tromba-d’água,
momento em que afirma a exactidão do fenómeno natural observado e compara
orgulhosamente a sua experiência enriquecida, com a dos Filósofos antigos que
não puderam conhecer estas novidades que as navegações colocaram ao alcance do
Poeta.
Se
os antigos Filósofos, que andaram
Tantas
terras, por ver segredos delas,
As
maravilhosas que eu passei, passaram,
A
tão diversos ventos dando as velas,
Que
grandes escrituras que deixaram!
Que
influição de sinos e de estrelas!
Que
estranhezas, que grandes qualidades!
E
tudo sem mentir, puras verdades.
C.V,
23
Concluindo: a celebração épica da
viagem de Vasco da Gama à Índia nutre-se da matéria histórica dos feitos
portugueses, mas o Poeta transcende a realidade histórica pela magia da palavra
poética, posta ao serviço de uma esplêndida imaginação criadora.
Ultrapassado o estudo das fontes,
exprima-se o interesse da leitura dos textos, para o conhecimento da vida
abordo dos navios quinhentistas, acompanhando os marinheiros nessa rota plena
de perigos e de esperança árdua, como
canta o Poeta. Surge então um sentimento de admiração no leitor, por todos
aqueles que defrontaram os mares ignotos
e conquistaram o conhecimento deles, bem como pelo poeta que, com a sua arte
literária , os celebrou.
Braga,
30 de Agosto de 2004
Maria José Domingues
[1]
Hernâni Cidade, Luís de Camões – O Épico,
Livraria Bertrand, 1968, vol.II, p.16.
[2]Bernardo
Gomes de Brito, História trágico-marítima,
Círculo de Leitores, Lisboa, 1994. p.32.
[3]
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto V,
48, 7-8.
[4]
Ibidem, Canto I, 11, 1-6..
[5]
Sacrlat Lambrino, «Argonautas», in Verbo
– Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura, vol.2, p.1091.
[6]
Sacrlat Lambrino, «Apolónio de Rodes», ibidem, p.788.
[7]
José Maria Rodrigues, Fontes d’Os
Lusíadas, 2º edição, Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1979, p.533.
[8]
Horácio, Arte Poética, Editorial Inquérito Limitada, Lisboa, 1984,
vv.148-149: «semper ad euentum festinat et in medias res / non secus ac notas
auditorem rapit […]».
[9]
Francis M. Rogers, «Camões d’ Os
Lusíadas: professor renascentista para professores modernos», in Arquivos do Centro Cultural Português,
Camões, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1981, vol. XVI, pp. 23-31.
[10] Roteiro
da primeira viagem à Índia (Álvaro Velho), Leitura crítica, notas e estudo
introdutório por José Marques, Faculdade de Letras do Porto, Porto, 1999.
[11]
Ana Paula Menino Avelar, Visões do
Oriente, Edições Colibri, Lisboa, 2003.
[12] Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da
Índia pelos Portugueses, vol.I Editores Lello & Irmão, Porto, 1979.
[13]
João de Barros, Décadas, selecção,
prefácio e notas de António Baião, vol.1, «Colecção de Clássicos Sá da Costa»,
Livraria Sá da Costa Editora, 3ª edição, 1982.
[14]
José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas,
Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1979, p.65.
[15]
Ana Paula Menino Avelar, Visões do
Oriente, Edições Colibri, Lisboa, 2003, p.14.
[16]
Rodrigues, op.cit., p.5, notas 1 e 2.
[17]
Luís de Camões, Os Lusíadas, edição
organizada por Emanuel Paulo Ramos, Porto Editora, 2ª edição, s.d.
[18]
Roteiro da primeira viagem à Índia (
Álvaro Velho), Leitura crítica, notas e estudo introdutório por José
Marques, Faculdade de Letras do Porto, Porto, 1999.
[19] Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista
da Índia pelos Portugueses, editores
Lello & Irmão, Porto, 1979, vol. I.
[20]
João de Barros, Décadas, selecção,
prefácio e notas de António Baião, vol.1, «Colecção de Clássicos Sá da Costa»,
Livraria Sá da Costa Editora, 3ª edição, 1982.
[21] Op. cit., p.31.
[22] Op. cit., p.11.
[23]
Op.cit., Década I, Livro IV, capítulo
I, com o título «Como Vasco da Gama partiu de Lisboa, e do que passou até
chegar ao padrão que Bartolomeu Dias pôs além do Cabo da Boa Esperança», p.9.
[24]
Ibidem, p.11.
[25]
Op. cit., p.31.
[26]
Ibidem, p.32.
[27]
Idem, Ibidem.
[28]
Op.cit., p.11 e 12.
[29]
Op.cit, p.12.
[30]
informação recolhida em: Luís de Camões, Obras
Completas com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade, vol IV, Os Lusíadas (cantos I a V), Livraria Sá da
Costa Editora, Lisboa, 1968, p. 241, nota V.
[31] José Maria Rodrigues, ed. d’ Os Lusíadas, pp. CXXXV e
ss.
[32]
José Maria Rodrigues,, Fontes dos
Lusíadas, Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1979, pp.228-229.
[33]
Op.Cit., Álvaro Velho, pp.33 a 36.
[34]
Ibidem, p.37.
[35]
Op.Cit., Castanheda, p.12.
[36]
ibidem, p.14.
[37]
Op.cit., Barros, p.12.
[38]
Cf. Castanheda, op. cit., pp.75 e 76; Ap. José Maria Rodrigues, op. cit.p. 68:
Barros, Ásia, Década 1ª, livro V, cap.
.II, fl.56v.
[39]
Op.cit., Barros, pp.13 a 15.
[40]
Op.Cit. Álvaro Velho, pp. 35 e 36.
[41]
Op.cit., Castanheda, p.13.
[42]
Op.cit., Barros, pp. 17 e 18.
[43]
Op. cit., Álvaro Velho, p. 37.
[44]
Ibidem, p.41.
[45]
ibidem, p.42.
[46]
Ibidem, pp. 42 e 43.
[47]
Idem, ibidem.
[48]
Op. cit., Castanheda, pp. 14 -16.
[49]
Op. cit., Barros, pp. 19 a 21.
[50]
Ibidem, pp. 43 e 44.
[51]
Ibidem, pp.44-46.
[52]
Op. cit. Castanheda, pp. 16 e 17.
[53]
Op. cit., Barros, p.21.
[54]
Op. cit., Álvaro Velho, pp.46 a 48.
[55]
Op. cit. Castanheda, pp. 17 e 18.
[56]
Op,. cit., Barros, 21-23.
[57]
Op. cit., Álvaro Velho, p.47.
[58]
Op. cit, Castanheda, p.18.
[59]
Op.cit., pp.23 e 24.
[60]
Álvaro Velho, op. cit., pp48 a 59.
[61]
Castanheda. op.cit., pp20-21.
[62]
Barros, op. cit., pp. 24-35.
[63]
Ibidem, p.28.
[64]
Álvaro Velho, op. cit., pp. 59-65
[65]
Castanheda, op.cit., pp26-30.
[66]
João de Barros, op. cit., pp37-42.
[67]
José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas,
Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa 1979, p.65.
[68][68]
Luís de Albuquerque, «Sur quelques textes que
Camões consulta pour écrire Os Lusíadas», in Arquivos do Centro Cultural de Paris – Camões, v. 16, Paris, 1981,
pp.49-50.
Muito interessante. Desconhecia esse detalhe da História!
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