«Carta à memória de Fernando
Pessoa», em Presença, n.º48, Julho de 1936, de Carlos Queirós[1], (extractos):
[Com a publicação desta
carta, pretende-se homenagear Fernando Pessoa, na data do seu 128º aniversário.
As notas de rodapé são da responsabilidade do blogue.]
I
Meu querido Fernando: Imagina
você a falta que nos faz? Ainda há poucos dias, numa rua onde parámos a falar
de si, o Almada me disse: O Fernando faz muita, muita falta! Na mágoa deste
desabafo, pareceu-me reconhecer a mesma inconfessada sensação que a sua
ausência, algumas vezes, me dá: a de ter feito uma partida que os seus amigos
não mereciam. Quase apetece acusá-lo, gritar à sua memória: Você não tinha o
direito de nos deixar tão cedo!
Mas o seu mestre Caeiro[2]
é quem tinha razão:
Passa
a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
Na verdade, a fixação da
nossa presença física, seja em que forma for, é o que tem menos importância; e
vem daí, por certo, o enorme esforço que tenho de fazer para recordar a sua.
Não sei que névoa me afasta da próxima realidade dela. É uma imagem embaciada,
talvez pela comovida lembrança da sua delicadíssima discrição. O Fernando
passou por aqui em bicos de pés, coerente com o conselho dado às companheiras
por uma das veladoras do seu "Marinheiro": « – Não rocemos
pela vida nem a orla das nossas vestes.»
Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes.
Em nada do que você usava se reflectia a fútil
premeditação de exibicionismo. No entanto, toda a sua vulgaríssima
indumentária, desde o chapéu aos sapatos, era, não sei porquê, espantosamente
diversa da de toda a gente. Sei lá que tinha? Uma expressão inconfundível, um
jeito especialíssimo, dado por si, sem querer.
Os seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de
correcção, acompanhavam sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com
todas as palavras. De quando em quando, pequenos risos (risinhos, é que diz
bem), de criança triste a quem fazem cócegas, vinham festejar, alegremente, as
descobertas do espírito - suas ou alheias, porque o Fernando não sabia reprimir
o prazer que lhe causava a graça ou a simples alegria dos seus amigos.
A sua ironia, também de qualidade sui generis, era
aguda, intencional, oportuna, mas sempre delicada e transparente, sem
crueldades felinas. Nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ela,
nem assisti a que fizesse, na susceptibilidade de quem quer que fosse, a mais
leve arranhadura. Era como aqueles gatos de boa raça que metem as unhas para
dentro, quando brincam...
No acaso dos diálogos - aos quais nunca impunha,
ditatorialmente, a direcção do seu espírito -, esperava que coubesse aos outros
a sua vez de falarem para os escutar com atenção. Porém, no seu olhar, lia-se
qualquer coisa parecido com o receio de que o supusessem perscrutador.
O seu discreto temperamento ajudava-nos pouco o desejo
de lhe fazermos qualquer pergunta mais familiar, mais íntima. Como inquirir-lhe
da saúde, sem ter medo de magoá-lo em qualquer parte da alma? Era difícil,
sabe? Quanto mais perguntar-lhe: Que faz esta noite? Aparece amanhã? Chegava a
ter a impressão de devassar-lhe a intimidade, quando o encontrava, às vezes, na
rua...
Quando ia só, ou como se o fosse, apesar de não ser o
que se chama, em linguagem doméstica, um abstracto ou distraído (pois a sua
atenção, por mais repartida que estivesse, era sempre suficiente para apreender
o que se passava à sua volta), costumava aflorar aos seus lábios estreitos o
sorriso de quem lê uma carta confidencial, amiga e interessante.
Nada em si afastava quem o procurasse; antes pelo contrário - a não ser, a alguns dos mais orgulhosos ou tímidos dos seus amigos, a certeza de que você era incapaz, sem fortes razões justificadas, de procurar fosse quem fosse.
Nada em si afastava quem o procurasse; antes pelo contrário - a não ser, a alguns dos mais orgulhosos ou tímidos dos seus amigos, a certeza de que você era incapaz, sem fortes razões justificadas, de procurar fosse quem fosse.
O seu sentimento de intimidade não era fruto de
egoísmo nem de vulgar misantropia: era-o, sim, do profundo respeito que o
Fernando tinha por si próprio e pelo que nos outros estimava que também fosse
respeitável. Daí, a impossibilidade de abrir à curiosidade dos seus mais
assíduos companheiros uma fresta por onde pudessem espreitar a sua vida
sentimental:
«Não há quem saiba se eu gosto de ti ou não porque eu
não fiz de ninguém confidente sobre o assunto.» Esta frase, cujas palavras
sublinhadas o foram por si, é de uma das primeiras cartas que o Fernando
dirigiu àquela a quem escreveu nove anos mais tarde: «... Se casar, não casarei
senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram
chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento.»
As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e - o que é extraordinário - como se não fosse poeta. Na evidente espontaneidade dessas cartas, que o Destino quis pôr nas minhas mãos, não se encontra um vestígio de premeditação formal, de voluntária intelectualidade.
As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e - o que é extraordinário - como se não fosse poeta. Na evidente espontaneidade dessas cartas, que o Destino quis pôr nas minhas mãos, não se encontra um vestígio de premeditação formal, de voluntária intelectualidade.
Que admirável exemplo de humana integração no
organismo da Vida! Lê-se qualquer delas - escolhida, ao acaso, entre as dezenas
que a totalidade constitui - e logo nos ocorre esta pergunta, forrada de
espanto: Como teria sido possível ao mais poeta dos homens e ao mais
intelectual dos poetas portugueses (e, aqui, a palavra portugueses tem uma
importância muito especial) libertar a tal ponto o coração da literatura?!
(...)
Boa noite, Fernando. Não preciso dizer-lhe que sinto,
nem por que sinto saudades suas. Mas não lhe peço que volte. Que temos aqui,
que possa interessá-lo ou, o que é mais triste, merecê-lo? Não temos nada, bem
sabe, de que você não conheça já melhor do que nós, o vazio sem fundo, a
mentira sem remédio, a trágica inutilidade...
O
Amigo, de Carlos Queiróz
Fonte
dos textos transcritos: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/cqueiros.htm
[1] «José
Carlos Queirós Nunes Ribeiro (1907-1949) nasceu em Lisboa e faleceu em
Paris. Frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra, tendo colaborado em várias
revistas, tais como Presença, e Contemporânea, com poesias e
artigos de crítica literária. Recebeu em 1935 o Prémio Antero de Quental do
Secretariado de Propaganda Nacional com a obra Desaparecido. Foi
director das revistas Panorama (1941) e Litoral (1944). A amizade
de Carlos Queirós com Fernando Pessoa levou a que este último tivesse uma
relação amorosa com (...) Ofélia Queirós. Obras: Desaparecido (1935),
Breve Tratado de Não-Versificação (1948), Homenagem a Fernando Pessoa
(ensaio-1936). Toda a sua poesia se encontra no volume póstumo Poesia de
Carlos Queirós (1966)»
[2] O poema citado pertence a «O Guardador de
Rebanhos», «Da mais alta janela da minha casa», com o nº XLVIII,.
Boa iniciativa esta de assim celebrar o aniversário de Pessoa. É um texto admirável, que vale bem a pena divulgar.Só um notável talento literário de quem conheceu de perto Pessoa podia traçar com tanto rigor o seu perfil humano.
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