Quem
escreveu Chuva Oblíqua?
Pessoa
hesitou na paternidade.
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Em carta de 4 de outubro de
1914, ao amigo açoriano Cortes Rodrigues, Pessoa envia uma listagem de textos
para uma «Antologia do Intersecionismo», na qual consta o poema Chuva
Oblíqua, atribuída a Álvaro de Campos.
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Numa listagem de poemas de
Alberto Caeiro, aparece Chuva Oblíqua, datada de 2014[2].
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Porém, é com o nome de
Fernando Pessoa que o poema, datado de 8 de março de 1914, é publicado na
revista ORFEU 2, em junho de 1915.
Qual
o significado desta hesitação?
Certamente,
depois da experiência heteronímica, não se reconheceu como autor daquele poema,
mas, depois de reflexão aprofundada, assume o poema e explica a paternidade:
«Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro»[1].
«Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro»[1].
Em textos vários, Pessoa explica a Arte intersecionista e o referido poema dentro dessa Arte.
Assim, Chuva Oblíqua é classificada por Pessoa dentro do «sensacionismo interseccionista»[3] (as sensações cruzam-se e intersecionam-se).
O intersecionismo procura, segundo o seu fundador, a fusão da «música x pintura x poesia».
E, no texto intitulado «O interseccionismo explicada aos inferiores», define a Arte intersecionista deste modo: «intersecção e interpenetração do físico e do psíquico transcendendo-se e inter-prolongando-se mutuamente».
Assim, Chuva Oblíqua é classificada por Pessoa dentro do «sensacionismo interseccionista»[3] (as sensações cruzam-se e intersecionam-se).
O intersecionismo procura, segundo o seu fundador, a fusão da «música x pintura x poesia».
E, no texto intitulado «O interseccionismo explicada aos inferiores», define a Arte intersecionista deste modo: «intersecção e interpenetração do físico e do psíquico transcendendo-se e inter-prolongando-se mutuamente».
Pessoa também explicou o sensacionismo:
«Devemos ter a subtileza do simbolismo», «a intensidade dos whitmanistas», «a visão panteísta», «o interesse humano», «o interesse dos homens da Renascença», «a capacidade construtiva dos gregos e dos latinos», «a harmonia» e «a noção das proporções» dos clássicos, « o misticismo dos Índios antigos», «a fixação como que ritual la literatura egípcia»[4].
Podemos concluir que estamos perante um dos textos programáticos da poesia modernista de Fernando Pessoa, ao qual o poeta dedicou grande labor artístico e sobre o qual trabalhou como crítico e fundador do movimento literário.
Chuva Oblíqua
I
Atravessa
esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol... Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro... Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto. E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma... II
Ilumina-se
a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça... Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso. E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro... O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar... Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça E sente-se chiar a água no facto de haver coro... A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel... E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa... III
A
Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro...
Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente E ao canto do papel erguem-se as pirâmides... Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Quéops. De repente paro... Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena... Ouço a Esfinge rir por dentro O som da minha pena a correr no papel... Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim, E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos, E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo E uma alegria de barcos embandeirados erra Numa diagonal difusa Entre mim e o que eu penso... Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim!... IV
Que pandeiretas o silencio d'este quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Ha danças sensuais no brilho fixo da luz...
De repente todo o espaço pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do tecto, muito mais longe do que
ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...
V
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos
do carroussel...
Arvores, pedras, montes, bailam parados
dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no
dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruido dos
muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha á cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o
sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de
gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das
barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes da feira e a gente que
anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no
ar,
Andam por cima das copas das arvores cheias
de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que
luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as
raparigas levam á cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a lua
sobre a feira,
E toda a feira com ruidos e luzes é o chão
d'este dia de sol…
De repente alguém sacode esta hora dupla como
numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de
portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em
voltar...
Pó de ouro branco e negro sobre os meus
dedos...
As minhas mãos são os passos d'aquela
rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje...
VI
O maestro sacode a batuta,
E languida e triste a música rompe...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé d'um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha d'um lado
O deslisar d'um cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey
amarello...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro
branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a
tocar música
Uma música triste e vaga que passeia no meu
quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo.
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontro á minha infância e ella
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão
verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
Á minha infância... E o muro do quintal é
feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás da minha
saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E d'um lado para o outro, da direita para a
esquerda,
D'onde há árvores e entre os ramos ao pé da
copa
Com orquestras a tocar musica,
Para onde há filas de bolas na loja onde a
comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da
minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus
sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo
tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga
d'um muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em
cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas
abaixo...
8 de Março de 1914.
FERNANDO PESSÔA.[5]
Dezembro, Maria José Domingues
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[1] Extrato da carta:
«Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca
poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E
o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o
nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu
mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que
foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e
escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua,
de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando
Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de
Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro».
[2] Sensacionismo
e outros ismos, edição crítica de Fernando Pessoa, vol. X, edição Jerónimo
Pizarro, INCM, Lisboa, 2009, p.426.
[3] idem, ibidem, p. 71.
[4] Idem,
ibidem, pp. 75-112.
[5]
Este poema pode ser lido na íntegra na revista Orpheu, n.º 2, Abril-Maio-Junho de 1915, em http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/Orpheu_n2_de_alvaro_de_campos.pdf.
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