quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Uma Abelha na Chuva II – para além da «reactualização da novela camiliana»




Mote: «Vida e morte o que são?»

Na continuação do artigo anterior, no qual se analisa a classificação feita por Óscar Lopes  a Uma Abelha na Chuva, este texto tem por objetivo apresentar alguns dos aspetos literários que ultrapassam a «reactualização da novela camiliana». Esta curta e lacónica definição pode ser lida como se o ortodoxo autor da Época Contemporânea da História da Literatura Portuguesa, afastasse a referida obra do cânone neo-realista. Penso que isto se deve ao facto de a simbologia aplicada por Carlos de Oliveira criar ambiguidades e dificuldades de leitura ao narratário, entidade alargada e focada pelos neorrealistas com vista à consciencialização do valor da luta de classes como dinamizador da transformação da História na direção de uma sociedade sem classes. Sobre esse objetivo neorrealista aplicado à obra, a imagem da colmeia não é paradigmática, uma vez que a sociedade que habita a colmeia é organicamente estática. Talvez Carlos de Oliveira quisesse ambiguamente transmitir que, de facto, apesar da luta de classes sempre existente na dinâmica social, o ser humano cria estruturas semelhantes às da abelha, nas quais a organização social regulada é considerada indispensável e aquele que não obedece às regras da colmeia corre risco de vida. E isto aconteceria em qualquer ditadura - em Portugal ou na URSS.
Muitos são os símbolos que percorrem a obra, desde os símbolos universais como a água e a abelha[1] até a certos nomes próprios, como o irónico nome Maria dos Prazeres ou o de Jacinto, nome de conotação mitológica.
O narrador exterior à ação conta a história, mas pode tornar-se muito próximo da personagem e até dialogar com ela («voz obsidiante» em Silvestre), no relato dos pensamentos que preenchem os momentos de silêncio.
 Numa focagem dos símbolos, percorre-se toda a obra pelos quatro dias em que decorre a ação principal, uma ação de tempo curto, próprio da tragédia clássica, com a qual a obra tem afinidades.
1º Dia – Os Silvestres
A viagem

Prevenido a partir do título, o leitor entra na colmeia global que é a aldeia de Montouro, tendo como antecâmara a vila de Corgos, nos três primeiros capítulos.
Antes da abelha, aparece o símbolo da água, na chuva forte de «uma tarde invernosa de Outubro», que acompanha a chegada da personagem tempestuosa: Maria dos Prazeres de Alva… Silvestre. Porém, nos dois capítulos anteriores, já conhecera o leitor a personagem enlameada do marido: Álvaro Silvestre. E onde há lama há água turva, tão turva como a consciência da personagem, revelada ao exigir a publicação da autodenúncia no jornal da terra e ao escondê-la no momento em que surge a esposa.
Como abelhas protegidas, o casal regressa à colmeia na charrete, em viagem tumultuosa, sob «a chuva miúda», pelos barrocais enlameados, mas também em viagem na corrente dos pensamentos de Maria dos Prazeres. E, nessa corrente, passava o desejo físico dela pelo belo cocheiro, Jacinto - «homem de oiro» -, e a repugnância pelo marido, e passava também, por meio da analepse, como se de uma «fonte» brotasse, a sua infância nobre e, depois, já longe da fonte, o seu casamento sem amor com a pequeno-burguesia, por obrigação filial - «sangue por dinheiro» e «a chuva caía, caía com certeza, no passado e agora». Com interrupções, «a água da memória» continuava a correr, aproveitando para informar, com desprezo de classe, por que razão estava Silvestre roído pelo pecado - «Rói-o o pecado como rói o musgo a concha da lapa». E a etapa final da viagem, já com a égua ferida, é conduzida pelo «incêndio» que lavrava dentro dela. Arrancara o chicote das mãos do cocheiro e «malhou» sem dó nem piedade no lombo do animal, acordando Álvaro Silvestre, que «emergiu do seu meio sono» e viu a mulher «com as lágrimas em baga pela cara, os cabelos soltos, manchada do oiro baço da luz […], bela, quase terrível: -Acaba, acaba, acaba, acaba…». Mais tarde, ao serão, o marido, em estado de semi-embriaguês, vê-la-á como «uma amazona galopando através das labaredas».

À luz do cânone do neo-realismo, vemos nos seis primeiros capítulos as três classes sociais representadas, sob a agressividade do tempo - a chuvada, a morrinha e os lameiros. Verifica-se que ainda domina a nobreza decadente (representada por Maria dos Prazeres de Alva) cruzada com a burguesia (representada por Silvestre), sendo esta última a classe dominante na República e no Estado Novo. O povo, representado por Jacinto, o ruivo cocheiro, surge, em efígie de oiro, a prestar serviço à classe dominante. O nome do cocheiro não é escolhido ao acaso, pode ser visto como uma referência à cultura clássica e sua mitologia, na qual, Jacinto é o nome do belo jovem companheiro e amigo do deus Apolo, que, por acidente, num jogo, o mata com o disco. Junta-se a esta história mítica outra que conta ter sido Zéfiro, o vento do Ocidente, também apaixonado pelo jovem, o causador da sua morte ao desviar o disco, por ciúme da preferência do jovem por Apolo. Também o cocheiro Jacinto será morto pelo ciúme de Silvestre, acrescido da ambição de António Oleiro.

O serão

À viagem segue-se o serão, que traz esclarecimentos à metáfora titular, no que respeita à abelha.
A introdução das novas personagens, a nata social, faz-se por ordem de chegada. Em primeiro lugar, chega o representante do clero, o padre Abel e dona Violante – sua irmã ou concubina - a quem são dedicados o sétimo e o oitavo capítulos; a meio do serão, chega a professora, «D. Cláudia, pálida e medrosa»; por fim, chega o médico e eterno namorado da professora, o dr. Neto, um sábio e diligente apicultor. Zelava pelos doentes e pelas abelhas - «bichinhos sábios comedores de pólen, simbolizavam no doce destilar dos favos o que a Vida, a Natureza, Deus ou lá o que era, podia arrancar de belo e saboroso ao tempo».
O dr. Neto é o filósofo do grupo dominador, dono de uma «filosofia nascida de três ou quatro jeiras de quintal, assente em realidades vivas, botânicas e animais, porque o dr. Neto amava a realidade e só daí é que partia para as abstrações, simbologias camponesas em que o mel, por exemplo, quase alcançava o teor de uma perfeição».
Discorrendo sobre «Vida e morte o que são?», Neto recorre ao exemplo das abelhas «para partir do simples para o complexo» e acrescenta «após a fecundação o destino dos machos é a morte». Note-se que no grupo do serão não há machos fecundadores, logo, eles estão a salvo da morte na narrativa. O macho fecundador será Jacinto, morto à paulada e lançado nas águas do mar.
Enquanto seroavam, Silvestre, o único do grupo que tinha por obrigação ser «macho fecundador», embriagava-se lentamente e imaginava, em prolepse, a sua morte, o velório, o funeral e a destruição do corpo, ficando-se com a pergunta: «E a alma?». Estranhas visões surgiram na sua mente. Via a mulher como amazona galopando através das labaredas infernais e atrás cavalgavam os outros convidados do serão. Tinha-lhe medo, porém, mais tarde, após a saída das visitas, o álcool deu-lhe forças para lhe atirar à cara que estava farto da nobreza que lhe viera comer as sopas. Ela, arrogante, considera a sua linguagem a de um cocheiro e conta que seu pai, perante a linguagem rude do seu cocheiro, o chicoteara, mas que os seus mortos já «não empunham chicotes». É o momento da rebelião classista de Silvestre, partindo os quadros da nobreza de Alva pendente nas paredes do seu escritório - «vidros estilhaçados acordavam um som agudo pela sombra». No futuro do tempo da narrativa, haverá mais um vidro estilhaçado, o da janela da casa do casal Silvestre, prenunciador da rebelião do povo.

2º Dia – A revelação

Madrugada - estilhaços, abelhas e água

A ação inicia-se na madrugada com um passeio matinal de Álvaro Silvestre, que passa pela olaria de mestre António, cego, que trocara a olaria de objetos úteis pela de santeiro. Ouvindo risos, espreitou o palheiro e deu-se a revelação fatídica: Clara, a filha do Oleiro, e Jacinto amavam-se alegremente na palha do curral e conversavam. Assim, Silvestre ficou a saber que Clara estava grávida e com problemas sérios em revelar ao pai o seu estado e o desejo de casamento, pela contrariedade do sonho do pai em casá-la com um lavrador rico; ficou a saber pela boca do cocheiro que Maria dos Prazeres o «comia com os olhos». E, mais uma vez, há estilhaços, agora, interiores: «na sua confusão interior a voz do ruivo bateu como um calhau no vidro»; «crescia da sonolência em que viera, subitamente estilhaçada pelas palavras do cocheiro».
No regresso a casa, de novo a questão «Vida e morte o que são?» e surgem-lhe na memória as respostas do serão, segundo os católicos, «vida e morte são o que são, a vontade criadora de Deus resolveu-se e criou», segundo o apicultor - «sabe-se que depois da fecundação o destino do macho é a morte».
A cena dos amantes continua, no curral, como no presépio - «a vaca, o jumento» -, após o afastamento de Silvestre. Jacinto pronuncia-se acerca da pequena burguesia rural, a propósito do lavrador rico desejado para marido de Clara por mestre António: «Bons para afogar no poço com dois pedregulhos amarrados às canelas» - indício trágico na narrativa.
Entretanto, Silvestre senta-se e recorda a pureza da infância idílica com as pombas e a fonte de «água múrmura, coada pelo berço do areal. Bebiam todos dela, chapinhavam num daqueles regatos breves que as chuvadas de inverno faziam transbordar do tanque de pedra carcomida. Cantavam». Esta água recordada limpou-lhe a alma e ele pôde pela última vez olhar a terra natal «respirar o ar transfigurado das manhãs infantis» e «tudo lhe pareceu cândido e simples como outrora, quando na concha do céu a claridade nascia com a sua brancura de espuma».
A recordação da infância, em analepse, cessou rapidamente e «o desespero sem remédio que espreitava dentro dele irrompeu de novo» e «a voz obsidiante persistia: quando quiseres matar a tua sede, lavar o sarro desta noite, das conversas tidas, das palavras ouvidas, a água secará de vez».

A vingança

Enlameado, vexado ao ver o ruivo, entra em casa, para sair rumo à mercearia, onde Lourenço, o caixeiro, está a abrir as portadas. São nove horas. Silvestre entra no escritório e luta contra o sono. Surge no seu espírito a síntese dos acontecimentos nefastos do conhecimento do leitor e a «voz obsidiante» aponta-lhe «um chão para os seus cardos» - Jacinto. «Concentrou no ruivo toda a força do seu pensamento; era ali que tinha que teimar, até meter o ombro numa fresta da porta e arrombar o quarto sufocante em que jazia».
Álvaro Silvestre era duplo na sua interioridade. Avisa o narrador que ele, até aqui, tem mostrado a sua consciência dúbia, temerosa e enlameada, mas que ele pode ter a estatura de um gigante quando «no recesso da alma» surge «o homem voluntarioso» e «sem escrúpulos», ainda que «efémero». Talvez essa duplicidade possa explicar «a voz obsidiante» que o atormenta.
Assim, surge o ato de vingança perpetrado por Silvestre, o «voluntarioso» e «sem escrúpulos». E manda chamar o cego oleiro a quem declara: «a sua filha desgraçou-se». Jacinto tinha sido entregue cobardemente. O cego declarou que o cocheiro iria dançar na corda bamba e «aprender quantas cabaças de água são precisas para matar a sede no inferno».
O oleiro prepara o assassinato de Jacinto, aliciando Marcelo, o seu empregado, com a dádiva de Clara, por quem ele se apaixonara, para o ajudar a consumar o crime à paulada, fazendo depois desaparecer o corpo do ruivo nas águas do mar.
O crime é consumado e a caminhada com o corpo sobre o burro até ao mar é feita debaixo de chuva intensa, transformada em tempestade na proximidade marítima. Mais uma vez temos o tempo/clima adverso às personagens e aos seus atos. E a voz que se faz ouvir junto do oleiro faz pensar a certos críticos na voz do diabo: «Cheira a iodo, o que é normal, mas também cheira a enxofre, já notou?; não pergunte porquê, estando eu aqui, precisa de perguntar?».

3º Dia – A denúncia

Clara acorda com o sino matinal. Jacinto não comparecera no palheiro. Noite em branco. Preparou o pequeno-almoço. Ninguém em casa. Nem o burro. «Indício sobre indício, a suspeita encorpava». Viu-os chegar, cobertos de lama. «Mataram-no, meu Deus, mataram-no» - os gritos de Clara alertaram o povo. Silvestre ouviu, mas a casa ficara silenciosa e ele adormeceu para acordar assumindo a culpa apenas na sua consciência: «Mataram-no e o culpado sou eu». E correu à garrafeira a enfrascar-se. Chegava o aglomerado do povo com o regedor à frente ao pátio da casa dos Silvestres. O pânico apodera-se dele e conta o sucedido à mulher. Fala ao regedor e ele diz estar ali para dar contas do sucedido ao cocheiro e que quer inspecionar o quarto dele. Depois da inspeção, Maria dos Prazeres expulsa-os a todos do pátio e alguém apedreja a vidraça, estilhaçando o vidro, assunto muito comentado ao serão.
[«Nenhum dos íntimos da casa presenciou os acontecimentos da manhã» - conta o narrador, no início do capítulo XXXII, com ironia literária e política, talvez com a intenção autoral de criticar o abstencionismo político em geral e o dos escritores presencistas em especial. É conhecida a polémica literária e política entre os escritores neorrealistas, conotados com o comunismo e politicamente empenhados na oposição ao Estado Novo, e os escritores presencistas – revista Presença – considerados abstencionistas políticos.]
Todavia, os íntimos da casa «seroaram» como habitualmente na casa dos Silvestres, comentando os acontecimentos e opinando contra o povo - «mancebias, arruaças, assassínio» -, sob o olhar do dr. Neto que os via desfigurados pelas chamas e «vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros; todos eles fabricam fel, abelhas cegas, obcecadas». Propõe então um provérbio: «ver cada um com os olhos que tem». Ironicamente, diz que deve ter cataratas, porque «de conjetura em conjetura, está quase a admitir que a morte de Jacinto é tão importante como as janelas estilhaçadas». Este comentário é ambíguo, pois pode ser interpretado como a menorização do assassínio de um filho do povo pela classe dominante e pode ser interpretado politicamente como o embrião da luta de classes por parte do povo – o acordar do povo.
Álvaro Silvestre, em estado letárgico, ouve o nome do irmão pronunciado pelo padre e isso recorda-lhe o que fora fazer a Corgos, denunciar-se a si e a sua mulher como ladrões; mete a mão ao bolso e lá está o papel amarfanhado com o texto que desejara ver publicado no jornal - «tinha voltado ao ponto de partida, traçando um círculo vão». Ergueu-se de repente com a garrafa vazia na mão e desatou aos gritos: «-Onde é que há brandy nesta casa?».

4º Dia – Domingo – o alvoroço

No largo da aldeia o povo alvoroçado comentava o crime e já sabia que a revelação dos amores de Clara e Jacinto fora feita por Álvaro Silvestre, acusado pelo caixeiro Lourenço. O padre na homilia prega contra o boato, em defesa do amigo Silvério.

O dr Neto, após as consultas, tece a sua filosofia de apicultor. Acusava-se de ter pintado e repintado «a colmeia dos Silvestres», «sem atender que lá dentro o enxame apodrecia». Pensou em Clara e preocupou-se. Dirigiu-se à casa do oleiro, mas não chegou a tempo de salvar Clara que se suicidara no poço. De regresso a casa, a chuva caía e ele abrigou-se olhando as colmeias, que batizara de Cidade mais o nome de uma cor. «E viu uma abelha voar da Cidade Verde» e, logo, apanhada pela chuva, «deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a».

Interpreta-se a Cidade Verde como sendo a colmeia popular, na esperança de que o povo, face à tragédia, acorde para alcançar o poder ainda distante e construir um mundo novo. O autor transmite a noção de que se estava no dealbar dessa construção (em 1953) e que talvez não tenha sido vã a morte do casal. Contudo, na colmeia, a morte da obreira é superada e tudo continua a funcionar rotineiramente. E a morte do zângão, após fecundar a rainha, é a regra na colmeia. Parece haver um certo desespero autoral, transmitido através do símbolo da colmeia, perante o imobilismo salazarento de Portugal.

Desde o símbolo da água da fonte cristalina da infância até à conspurcação lamacenta progressiva da adultícia, temos a chuva adversa nos momentos cruciais da narrativa e, no final trágico, o mar e o poço. Porém, se a água é fonte de vida, do mar e do poço nascerá a voz da revolta do povo alvoroçado – talvez se possa ler assim a mensagem neorrealista da obra.

Outro aspeto importante a meu ver é a falta de procriação das personagens. Na colmeia apodrecida, o casal Silvestre não tem filhos; o casal Neto e Cláudia não casa e não procria; António tem uma filha que acaba por matar, ainda que indiretamente; Clara está grávida e suicida-se, levando o filho no ventre. Não existe procriação. A explicação pode estar presente na resposta à pergunta «Vida e morte o que são?». Eis a pergunta feita pelo filósofo apicultor, com efeito atormentador em Álvaro Silvestre e em qualquer ser humano consciente. Na obra há a resposta centrada em Deus, própria dos católicos, e a do apicultor, afirmando a morte do macho após o ato procriador, na colmeia. Quem quer procriar dentro da predestinação de nascidos para morrer? Carlos de Oliveira talvez não soubesse que profetizava a baixa populacional numa sociedade consciente dessa problemática existencial.

Setembro 2015
Mª José Domingues


[1] Encontram-se em itálico as palavras da área das palavras simbólicas: água e abelha.

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