segunda-feira, 20 de julho de 2015

A memória das palavras



A memória das palavras
Animula vagula blandula

Palavras há que arrastam mantos de memórias.
Citações memorizadas há que arrastam autores e textos. É com elas que Carlos de Oliveira (1921-1981) se apresenta, como leitor/escritor, em Aprendiz de Feiticeiro.

«Digo as palavras em voz alta:
- Animula vagula blandula.
E as palavras, suspensas do fumo do cigarro, param um momento a poucos centímetros da boca. Vejo o novelo denso ondear.
[…] repito o verso de Adriano:
- Animula vagula blandula.
Desta vez o latim do imperador sai mais rouco, sem perder contudo a doçura dos ll, a música a que os aa abertos, no fim, e o som escuro e anterior dos uu dão não sei que tonalidade contrastada, quase misteriosa. Porque se trata de um mistério: a perturbação que estas palavras me provocam desde que as li a primeira vez e a frequência inesperada com que as lembro ou digo involuntariamente […]».

O primeiro verso do último poema do Imperador Adriano,  Animula vagula blandula, é saboreado pela mente e voz do autor que traz à colação Jorge de Sena, o  tradutor do poema com registo em Poemas Ingleses de Fernando Pessoa, que, por sua vez, arrasta o poema Antinoo, o jovem amante de Adriano. E quem fala desse imperador recorda Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano.
Carlos de Oliveira recorda também a citação em Aquilino Ribeiro, mas não consegue identificar a obra onde ela se insere. Hoje, é mais fácil, basta consultar o Google:

«Tenho esperança, Marianinha, que algum dia, já eu longe do mundo, as leias e te façam sorrir. E, no ocaso como estou, consolo-me à ideia que nesse sorriso perpasse a vibração da animula vagula blandula do que fui, e se vai diluindo e afundindo no golfo do tempo como as estrelinhas que abrem e fecham a pálpebra sonolenta na praia areada duma noite de verão.» (in prefácio a O Livro da Marianinha, 1993, p.7).

Assim, as palavras tecem teias de memórias, em intertextualidade, na mente dos leitores, levando alguns deles a novas construções textuais.



  1.  Poema do imperador Adriano (76-138), ladeado pela tradução de Jorge de Sena (1919-1978):



Animula vagula blandula
hospes comesque corporis
quae nunc abibis in loca
pallidula rígida nudula
nec ut soles dabis iocos

Alminha vagabunda blandiciosa,
Do corpo a moradora e companheira,
A que lugares tu te vais agora,
Tão pálida, tão rígida, tão nua?
Nem mais às graças te darás de outrora.

(in Poemas Ingleses de Fernando Pessoa, Edições Ática, p.56)


2.     Tradução do mesmo poema de Adriano por Marguerite Yourcenar (1903-1987) em Les mémoires d’Hadrien:

«Petite âme, âme tendre et flottante, compagne de mon corps, qui fut ton hôte, tu vas descendre dans ces lieux pâles, durs, et nus, où tu devras renoncer aux jeux d’autrefois».

3. Jorge de Sena atribui tal importância ao poema epitáfio de Adriano que o destaca como tópico da literatura ocidental, nomeadamente, do poema camoniano Alma minha gentil que te partiste.

Na viagem textual, ao longo do tempo e do espaço, as obras literárias dialogam entre si, em construção contínua.

Zed, 20 de Julho 2015,  

7 comentários:


  1. Maria José, mais uma vez, não direi, surpreendes, mas continuas a partilhar neste teu blogue, um trabalho apurado, onde exprimes, sensibilidade, gosto, investigação. E saber. Saber na procura de temas poéticos, (neste caso), e que muito bem apelidas de "A memória das palavras", fazendo uma viagem poético-literária, através de escritores e poetas que, como tu, se debruçaram sobre o poema famoso atribuído ao Imperador Adriano e que terá escolhido o primeiro verso, "animula, cabula, blandula", para seu epitáfio.
    Lembraste, e muito bem, o célebre romance Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar que, há tantos anos li e me obrigaram a viajar a uma das gavetas da minha memória e voltar a pensar um pouco na importância da análise do ser humano, que a escritora belga faz, a partir da biografia, ficcionada, seguramente, do Imperador Romano que, terá vivido intensamente, não só na sua vida privada, mas também, como político e imperador romano.
    Se explorássemos o conteúdo do poema, dos seus cinco versos, num primeiro olhar, diria que se trata de uma forte confrontação da vida com a morte, sem se saber bem, para onde irá e, também, a endógena ligação corpo e alma, sendo este a sua morada e seu companheiro, onde o prazer da vida não lhes foi escasso. E, ao partir, essa é a Morte, o corpo a questiona, por se ir tão lívida e tão nua, deixando o mundo, de si, tão bem conhecido. E gostoso.

    E Camões glosa, como referiste, o tema num dos seus gloriosos poemas, perplexo, por sua amada, tão cedo, partir...

    "Alma minha gentil, que te partiste
    Tão cedo desta vida descontente,
    Repousa lá no Céu eternamente,
    E viva eu cá na terra sempre triste..."

    E, por fim, quero dizer que este tema e toda a exploração poética e semântica que se pode, à sua volta, tecer, se coaduna com eternas perguntas que, cada uma de nós, em intensas viagens, ainda que por caminhos diferentes, se coloca e confronta na Vida que engendramos e amamos.
    E acrescento, também, esta tradução do belo poema, de David Mourão Ferreira:

    "Alma minha, brandinha, vagabunda,
    do corpo acompanhante e moradora,
    a que paragens vais subir agora,
    assim lívida, e rígida, e tão nua?
    Deixarás de gozar o que hoje gozas"

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    1. Excelente, Guida, o teu comentário enriquecedor da temática.
      Grato abraço.

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  2. Belo texto o teu, Maria José Domingues, como belo é o comentário que a Margarida Vilarinho a seu respeito teceu e desenvolveu. Parabéns a ambas! E se me permitis ousar um pedido, continuai a ensinar-me a ler, porque eu também quero «aprender até morrer.»

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    1. Bem-vindo, David, ao «aprender até morrer». Obrigada pelo incentivo. A Guida tem dado um contributo muito enriquecedor. Unamo-nos nesta aprendizagem conjunta e contínua.

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  3. Maria José, gostei muito do seu texto. Vou voltar e estar atenta. Já tive conta no blogspot, mas foi há muito tempo.
    Um abraço da Sara Augusto.

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  4. Agradeço as suas palavras. Há muito que não tinha um comentário aos meus textos. Os comentários são um incentivo à produção de novos textos. Grande abraço.

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  5. Camões não podia glosar um texto, que desconhecia em absoluto. O poemeto atribuído ao imperador Adriano, aparece pela primeira vez, em 1603, em edição, publicada em Paris, na vida de Adriano da autoria do historiador latino, Élio Esparciano, publicada por Isaac Casaubon. Além disso, o historiador não escreve que sejam da autoria do imperador: " hos versos fecisse dicitur- diz-se que compôs estes versos"

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