A memória das palavras
Animula vagula blandula
Palavras há que arrastam mantos de memórias.
Citações
memorizadas há que arrastam autores e textos. É com elas que Carlos de Oliveira
(1921-1981) se apresenta, como leitor/escritor, em Aprendiz de Feiticeiro.
«Digo
as palavras em voz alta:
-
Animula vagula blandula.
E as
palavras, suspensas do fumo do cigarro, param um momento a poucos centímetros
da boca. Vejo o novelo denso ondear.
[…]
repito o verso de Adriano:
-
Animula vagula blandula.
Desta
vez o latim do imperador sai mais rouco, sem perder contudo a doçura dos ll,
a música a que os aa abertos, no fim, e o som escuro e anterior dos uu
dão não sei que tonalidade contrastada, quase misteriosa. Porque se trata de um
mistério: a perturbação que estas palavras me provocam desde que as li a
primeira vez e a frequência inesperada com que as lembro ou digo
involuntariamente […]».
O primeiro
verso do último poema do Imperador Adriano, Animula vagula
blandula, é saboreado pela mente e voz do autor que traz à colação Jorge de
Sena, o tradutor do poema com registo
em Poemas Ingleses de Fernando Pessoa, que, por sua vez, arrasta o poema
Antinoo, o jovem amante de Adriano. E quem fala desse imperador recorda
Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano.
Carlos
de Oliveira recorda também a citação em Aquilino Ribeiro, mas não consegue
identificar a obra onde ela se insere. Hoje, é mais fácil, basta consultar o
Google:
«Tenho
esperança, Marianinha, que algum dia, já eu longe do mundo, as leias e te façam
sorrir. E, no ocaso como estou, consolo-me à ideia que nesse sorriso perpasse a
vibração da animula vagula blandula do que fui, e se vai diluindo e afundindo
no golfo do tempo como as estrelinhas que abrem e fecham a pálpebra sonolenta
na praia areada duma noite de verão.» (in prefácio a O Livro da
Marianinha, 1993, p.7).
Assim,
as palavras tecem teias de memórias, em intertextualidade, na mente dos leitores,
levando alguns deles a novas construções textuais.
- Poema do imperador Adriano (76-138), ladeado pela tradução de
Jorge de Sena (1919-1978):
Animula vagula blandula
hospes comesque corporis
quae nunc abibis in loca
pallidula rígida nudula
nec ut soles dabis iocos
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Alminha vagabunda blandiciosa,
Do corpo a moradora e companheira,
A que lugares tu te vais agora,
Tão pálida, tão rígida, tão nua?
Nem mais às graças te darás de outrora.
(in Poemas
Ingleses de Fernando Pessoa, Edições Ática, p.56)
|
2.
Tradução do mesmo poema
de Adriano por Marguerite Yourcenar (1903-1987) em Les
mémoires d’Hadrien:
«Petite âme, âme tendre et flottante, compagne de mon
corps, qui fut ton hôte, tu vas descendre
dans ces lieux pâles, durs, et nus, où tu devras renoncer aux jeux
d’autrefois».
3. Jorge de Sena
atribui tal importância ao poema epitáfio de Adriano que o destaca como tópico
da literatura ocidental, nomeadamente, do poema camoniano Alma minha gentil
que te partiste.
Na viagem textual, ao
longo do tempo e do espaço, as obras literárias dialogam entre si, em construção
contínua.
Zed, 20 de Julho
2015,