sexta-feira, 1 de maio de 2015

Valter Hugo Mãe e Gil Vicente em O Filho de Mil Homens



Valter Hugo Mãe e Gil Vicente em O Filho de Mil Homens

A associação entre os dois autores provém da galeria de tipos e figuras e da utilização da linguagem corrente, na sua modalidade mais rude.
Da galeria popular de Hugo Mãe destacam-se, em romagem de agravados, a anã, o maricas, a enjeitada, que desaguam direta ou indiretamente no coração disponível e salvífico de Crisóstomo – o homem de 40 anos que quer um filho para ser inteiro. 
Dos agravados disse Gil Vicente:

«Cada um leva consigo
agravos tantos e tais,
que ouvi-los, corres perigo.»

Os agravados da obra de Hugo Mãe não são personagens de tragicomédia, são personagens trágicas - vítimas inocentes da natureza e da sociedade que encontram a salvação em Crisóstomo, o pescador de peixes e de sofredores de desamor. Ao penetrar a intimidade da anã ou do maricas, o cliché desmorona-se e surge a pessoa sofredora face ao olhar da sociedade que atua perseguindo-a cruelmente e ostracizando-a, num atropelo aos direitos humanos.
No que ao discurso respeita, os dois autores servem-se da linguagem corrente com à vontade, sempre que dela necessitam, sem evitar o palavrão ou a vulgaridade. No caso de O Filho de Mil Homens, essa linguagem agudiza-se no caso do «maricas», para quem a sociedade era e ainda é implacável. Através dessa linguagem, o autor consegue criar imagens terríficas, agudizadas pela relação de amor/desamor da mãe para com o seu filho Antonino. A voz implacável é a voz do povo que ordena à mãe que o mate, ou que, no caso da anã, entre dentes, lhe deseja a morte.
Então pensa-se na fala de Maria, em Frei Luís de Sousa de Garrett, para a pôr em causa: - Voz de povo, voz de Deus, minha senhora mãe». Muitas vezes,  a voz do povo é apenas a voz da tradição, que serve de síntese a um passado a modificar para melhor em termos de direitos humanos para todos, sem exceção.

1 de maio de 2015
Maria José Domingues

1 comentário:

  1. Maria José, como sempre, aguçaste o meu apetite para começar a ler O Filho De Mil Homens. E, apesar do tempo difícil, ja o tenho em mãos e li um pouco, mas o suficiente, para me deliciar, nesta noite dentro é, servir-me de conforto. Ao ler e centrar-me no Crisóstomo. E no seu monólogo. E no seu desejo de, aos quarenta anos, querer ser pai. Sentir que, olhando-se ao espelho, apenas vê uma metade de si e lhe falta a outra. E, olhando para dentro de si, um poço imenso, imenso de vazio. E tem no seu boneco de farrapos, sentado no sofá, com quem conversar. Curiosamente, fez-me pensar Mia Couto e o seu Mar Me Quer: sempre o Amar. O eterno Eu e o Outro. E Crisóstomo consubstancia, no que li, ainda muito pouco, o ser humano e sua condição. O seu falar com a natureza é um momento de grande beleza. Fico por aqui. Mas irei continuar. Em busca das figuras carismáticas que tanto povoam a obra de Gil Vicente e a de este novíssimo escritor.

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