sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Amor de Perdição e Frei Luís de Sousa – a angústia da influência



Amor de Perdição e Frei Luís de Sousaa angústia da influência
por Maria José Domingues

Harold Bloom, em A Angústia da Influência, reflete e teoriza a busca de espaço literário que um grande escritor tende a retirar a um outro grande escritor que o antecede e com quem trava um diálogo mais ou menos explícito na sua obra.
Vem isto a propósito do que Camilo Castelo Branco escreveu em Amor de Perdição, capítulo XVI, colhendo de surpresa o leitor, no final da aceitação da proposta de Domingos Botelho por parte da amante de seu filho Manuel, casada com um estudante de medicina:

«- E beijo as mãos de vossa senhoria… Uma desgraçada como eu não podia esperar tanta caridade.
Poucas horas depois, a esposa do médico…
- Que tinha morrido de paixão e de vergonha, talvez! – exclama uma leitora sensível.
- Não. Minha senhora, o estudante continuava nesse ano a frequentar a Universidade; e, como já tinha vasta instrução em patologia, poupou-se à morte da vergonha, que é uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Frei Luís de Sousa, e à morte da paixão, que é outra morte inventada pelos namorados nas cartas despeitosas, e que não pega nos maridos a quem o século dotou de uns longes de filosofia, filosofia grega ou romana, porque bem sabem que os filósofos da antiguidade davam por mimo as mulheres aos seus amigos, quando os seus amigos por favor lhas não tiravam. E esta filosofia hoje então…»

A meu ver, há neste excerto uma quebra propositada e escarninha na prosa camiliana, por aplicação do estilo garrettiano de Viagens na minha terra, no momento em que o narrador interrompe a narração para fazer ouvir a voz interruptiva de uma leitora opinando acerca do possível destino do médico. Esta interrupção é propositadamente abrupta, obrigando o leitor a parar para perguntar o que terá acontecido ao fio narrativo que fora partido. É nessa interrupção refletida que o estilo garrettiano poderá surgir na memória do leitor, como uma provocação camiliana.
Segue-se a nomeação do visconde de Almeida Garrett como o inventor da morte por vergonha, o que leva o leitor à cena final de Frei Luís de Sousa:

«Maria (apontando para o Romeiro) – É aquela voz, é ele, é ele! Já não é tempo… Minha mãe, meu pai, cobri-me bem estas faces que morro de vergonha… (esconde o rosto no seio da mãe) morro, morro… de vergonha… (cai e fica morta no chão, Manuel de Sousa e Madalena, prostram-se ao pé do cadáver da filha)..»

É desta morte por vergonha que Camilo escarnece . Curiosamente também Carlos Reis considera que a cena final da morte de Maria desequilibra a ação e destoa da sobriedade dominante na obra.

Conhecendo o teor de Angústia da Influência e aplicando-o ao excerto, fez-se a pesquisa necessária para saber se outros leitores críticos tinham refletido sobre o assunto. De facto, em Duas notas à margem de «Amor de Perdição», de J.J. Dias Marques, Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, nº41, pp. 209-226, encontra-se a referência ao excerto transcrito de Amor de Perdição, para informar que o poeta Joaquim Araújo, correspondente e amigo de Camilo, relatou que, em conversa havida com o romancista, lhe tinha falado do seu «libelo» a respeito da referência negativa a Garrett, muito admirado pelo poeta, e que Camilo lhe prometera que, se um dia revisse o Amor de Perdição «expurgaria da sua extraordinária novela a má vontade à morte de vergonha, que a desfeia». Sabe-se que Camilo oferecera a 5ª edição ao poeta com a dedicatória:

«Para fazer chorar de novo Joaquim Araújo – essa suprema expressão das almas boas – chorar –  
off.ce
1882/1/6 - Camilo Castelo Branco.»

A expurgação não chegou a ser feita e tanto melhor para a literatura, arte construída em dialogismo entre obras e escritores. É o momento de recordar Ricardo Reis quando afirma que «deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero»; neste caso, na prosa camiliana, Almeida Garrett.
Poder-se-á ainda assinalar na primeira transcrição a dissertação sobre os amores com mulheres casadas, assunto que une os dois escritores: Almeida Garrett e a viscondessa da Luz, Camilo e Ana Plácido. A vida e a ficção de mãos dadas na situação da personagem Manuel Botelho e a amante açoriana casada com o médico, a propósito do qual se lavrou o primeiro texto citado.

De entre as marcas dialógicas das duas obras, destaca-se ainda a frase do terceiro elemento do trio amoroso, a não amada Mariana, «E eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!» (cap.XVIII), pela proximidade à frase do Romeiro, o marido regressado de Alcácer-Quibir, em resposta a Madalena, a esposa amada : «Eu já vos pedi alguma coisa, senhora?» (ato II, cena XIV). Esta aproximação das duas falas não parece casual, mas uma marca da proximidade temática. Com efeito, as duas obras têm em comum um par amoroso, acrescido de um terceiro elemento dotado de um amor generoso e sofrido. E é esse terceiro elemento o emissor de cada uma das frases que aproxima as duas obras perante o leitor, aparecendo a frase referida de Amor de Perdição, como uma prova de intertextualidade dialógica.
Acrescente-se ainda que as duas obras nomeadas no título têm de comum a velocidade de escrita: Frei Luís de Sousa, escrito «de um jacto, em pouco mais de duas semanas» (Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa) e,  de Amor de Perdição, diz Camilo, no Prefácio da 2ª edição, «Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados da minha vida».

Tragédias de amor e morte criadas por dois grandes escritores, sendo que o mais novo era conhecedor da obra do mais velho, que, certamente, admirava e criticava, presentificando-a no momento da criação literária para com ela dialogar.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

ALABARDAS de José Saramago



ALABARDAS de José Saramago
Notas de leitura

Veja-se o poder da escrita saramaguiana na ótica do aprender até morrer, pois o que interessa é a busca da sabedoria na sua infinitude.
Apesar de ser leitora assídua da obra de Saramago, ela consegue surpreender-me sempre pela temática. Neste caso, as armas de guerra.

Gosto de Saramago e do seu poder de comunicação. Quero saber o facto motivador da obra e ele comunica-o:
a)      «Uma velha preocupação minha (por que nunca houve uma greve numa fábrica de armamento) deu pé a uma ideia complementar que, precisamente, permitirá o tratamento ficcional do tema».
b)      Uma bomba não explode na Guerra Civil de Espanha e contém uma mensagem escrita a dizer isso mesmo: esta bomba não explodirá.
c)      Em L’Espoir, André Malraux refere a homenagem prestada em Milão aos operários mortos por terem sabotado obuses.

A obra homenageará os atos sabotadores da indústria de morte.

1.      O título
1.1. Do caderno de José Saramago:

«26-12-2009
Dois meses sem escrever. Por este andar, talvez haja livro em 2020… Entretanto a epígrafe será
Alabardas, alabardas,
Espingardas, espingardas.

É de Gil Vicente, da tragicomédia Exortação da Guerra.»

Os dois versos referidos pertencem à fala da Rainha Pentesileia, incitando os portugueses a abandonarem os prazeres da paz e a entregarem-se à guerra:
«Oh! Deixai de edificar /tantas câmaras dobradas, / muy pintadas e douradas, / que he gastar sem prestar. / Alabardas, alabardas!/ Espingardas, espingardas! / Não queirais ser Genoeses, / senam muyto Portugueses, / e morar em casas pardas».

Não deixa de ser curioso que o boicote à guerra, homenageado no seu texto, se faça sob o título do apelo à guerra: «Alabardas, alabardas! / Espingardas, espingardas!».

1.2.  

a)     Da Enciclopédia Verbo: «Alabarda (do al. Helmbarte, literalmente, machado de capacete) – Hist. Arma de haste, em que se combinavam a lança  e o machado […] quando foram organizadas tropas apeadas regulares, começaram a ser dotadas com esta arma, que assim apareceu, primeiro,  nos princípios do séc. XIV, na Suíça e na Alemanha».
b)     Da Enciclopédia Verbo: «Quando se introduziu na 2ª metade do séc. XIV o uso das armas  de fogo portáteis, foi dado o nome de espingarda a uma forma alterada dos trons de mão, ou a outras armas de fogo, não muito pesadas».
Wikipédia, a enciclopédia livre: «Espingarda é o nome genérico dado a armas de fogo portáteis usadas em Portugal no início do século XVI. O termo espingarda já convive com o nome arcabuz em meados do século, como no caso do regimento de Tomé de Souza (1548), que determinava que os capitães hereditários eram obrigados a ter “vinte arcabuzes ou espingardas”».

2.      A narrativa
2.1.  Personagens e armas pesadas

O protagonista é o homem comum, de nome bem estudado - artur paz semedo (paz com medo, paz sem medo). Tendo como primeiro apelido Paz, trabalha há mais de 20 anos numa fábrica de armamento, ainda que seja na secção de faturação. Tal profissão duradoura levou sua pacifista mulher a separar-se dele.
Também o nome da fábrica de armamento é perfeito para o assunto: Belona – nome  da deusa romana da guerra (bellum) com o templo mais antigo no campo de Marte, tendo em frente a columna bellica, uma pedra vermelha usada para as declarações de guerra. Remonta-se assim à Antiguidade para que estejamos cientes de que o ser humano é belicoso. Rembrant pintou a deusa e Rodin esculpiu-a:


Fabrico de armas existe desde sempre. A guerra e a paz coabitam no ser humano. No caso do casal protagonista, ficou a pacifista para um lado e o Paz, trabalhador na fábrica Belona, para outro. Separados, comunicam via telefone e correio eletrónico, Esse diálogo fomenta a construção da narrativa.
Cada um dos nomes de identidade gera linhas de escrita com halo de humor. A mulher pacifista de nome Berta, muda seu nome para Felícia. Pois como poderia uma pacifista chamar-se Berta, ao tomar conhecimento de que a Grande Berta mais famosa foi um enorme e devastador canhão alemão, usado para bombardear Paris, na 1ª guerra mundial.


E se Berta é um canhão potente, o «órgão de Estaline», referido na página 14, é uma peça de artilharia usada na segunda guerra mundial pelo exército vermelho: um lançador de foguetes múltiplos de baixo custo e grande mobilidade.




O sonho de Paz Semedo era trabalhar na faturação das armas pesadas. Sabia-se que a fábrica belona s.a. estava em vias de construir um tanque de guerra, inspirado no Merkava (em hebraico: מרכבה) que é o principal tanque das Forças de Defesa de Israel.


3.      Narrativas bélicas
O protagonista, apaixonado por armas pesadas, também é entusiasta de filmes de guerra, sem os quais não pode passar. No clímax da narrativa fílmica, ele encarna a própria deusa Belona, diz-nos Saramago.
O filme fulcral é «L’Espoir» de André Malraux, a que assistiu como homem simples capaz de lhe oferecer suas lágrimas. Apesar de não ser homem de grandes leituras, decidiu procurar o livro. Tendo encontrado dois, um em português outro em francês, em alfarrabista, adquiriu-os e fez a sua leitura bilingue. A guerra civil de Espanha vivida por Malraux é o assunto da narrativa. Quase no final da obra, «paz semedo» emperra na referência à homenagem prestada «aos operários fuzilados em Milão por terem sabotado obuses». Reagiu com intolerância de amante de armas: tiveram o que mereciam. Sentira como se fosse uma ofensa pessoal. E decidiu falar sobre o assunto com a ex-companheira. A pacifista, após discordâncias expectáveis, sugeriu-lhe uma investigação sobre a venda de armas para a Espanha, entre trinta e seis e trinta e nove, os anos da guerra civil. Ele pediu a devida licença ao administrador-filho, que a nega, num primeiro momento, mas que a concede depois de falar com o ex-administrador, seu pai. Este recorda problemas na fábrica ligados à guerra civil de Espanha: uma greve em organização, sabotagens e a intervenção da polícia política, que fez desaparecer alguns operários.
 Triunfante, artur paz semedo tem finalmente licença para iniciar a investigação de documentos dos anos trinta do século XX. E comunica a novidade a Felícia, que, satisfeita, usa a 1º pessoa do plural: «é muito mais do que esperávamos». Saramago valoriza o casal que se estimula na ação. E não é por acaso que, depois da conversa de casal, Artur «sentiu de repente uma fome de lobo».

3. A fábrica de armas: da entrada às catacumbas

Estamos perante a descrição de um edifício que nos surge como real e, por isso, vamos procurar informação e encontramos a fábrica lisboeta Braço de Prata, como o local onde trabalha artur paz semedo. Segundo as palavras de Pilar Del Rio: “José escolheu esta fábrica porque era muito importante na época em que estava a funcionar e porque se lembrava dela, dos operários, da fachada”.
Artur paz semedo desce à cave, onde se estende o arquivo histórico, bem guardado por dois homens: o chefe Arsénio e o ajudante Sesinando. O acesso não é facilitado apenas com documento de livre-trânsito. É preciso uma declaração com a ordem do trabalho a fazer. Burocracia resolvida e com a ajuda de Sesinando, o trabalho de paz semedo inicia-se com sucesso e é reconhecido pelo administrador, que, por essa altura, passa a desejar ser chamado de engenheiro.

4.      A 22 de Fevereiro de 2010, José Saramago escreve no seu caderno sobre o assunto, pela última vez, faz cinco anos:

«As ideias aparecem quando são necessárias. Que o administrador-delegado, que passará a ser mencionado apenas como engenheiro, tenha pensado em escrever a história da empresa, talvez faça sair a narrativa do marasmo que a ameaçava e é o melhor que poderia ter-me acontecido. Veremos se se confirma.»


Bem haja, José Saramago.

Maria José Domingues