Já
falámos da importância dos estratos linguísticos na formação desta nova língua
literária, o portuguêsde Moçambique, que parte da oralidade, como todas as línguas no seu nascimento.
A
reflexão será agora sobre o registo escrito dessa língua oral na obra referida.
O trabalho vocabular reveste-se da maior importância, pois é revelador da
riqueza da oralidade resultante da convivência linguística.
Fazendo
o registo do vocabulário novo presente no primeiro capítulo, sobressaem os
verbos de tema em a, criados por sufixação a partir de:
· adjetivos: suficiento
( v. suficientar - suficiente+ar), simetricarmos (v. simétrico+ar);
· advérbio: antigmentara
(v. antigamentar - antigamente+ar);
· nome: abutreavam
(v. abutrear – abutre+ar);
· estrangeirismo: icebergam
(v. icebergar – iceberg+ar).
Acontece
também em verbos a corruptela transformadora da palavra e de seu sentido, por
exemplo:
·
subterfugir -
construção por corruptela oral de subterfúgio para subterfujo, chegando por
essa via ao verbo subterfugir;
·
rameramejar –
ramerrame+ejar, sendo que ramerrame significa rotina e ruído sucessivo e
monótono, segundo Houaiss, sentidos muito bem aplicados ao cantochão de Luarmina
através do verbo, que deveria escrever-se ramerramejar; todavia rameramejar
é mais suave e subtil, acrescentando à ideia de rotina ainda o valor onomatopaico
do leve ruído e movimento do desfolhar das pétalas caindo ao chão, valorizando poeticamente
o vocábulo cantochão – o canto repetido que vai simultaneamente cobrindo
o chão de pétalas e de cor.
A
formação de neologismos nominais assume valores estilísticos especiais, por
exemplo:
·
Rondopio, parecendo corruptela
de rodopio, constrói-se pelo processo não clássico da amálgama, acrescentando significado de amplificação na frase «Já faz anos que
rondopio à volta dela». Ele ronda e ele pia como ave em enamoramento, mas não
rodopia, uma vez que se define como preguiçoso e rodopiar (girar como um pião) requer esforço.
·
Outro neologismo curioso é ajunta-brasas,
por oposição a espalha-brasas, na história de Bailarinha, a bailadeira que arde
a bailar.
·
Cabisburro é o
adjetivo depreciativo aplicado por avô Celestiano a seu filho Agualberto. Logo
se entende que teria sido uma palavra nova com base em cabisbaixo, sendo
que o elemento ‘cabis’ foi tomado e bem (ver Houaiss) por ‘cabeça’ e teremos o
significado de ‘cabeça de burro’ para aquele filho que abandonara os
antepassados.
Na
frase de Luarmina «Uma vez um homem me chamou de dólingui», o «estrangeirismo de
fora» (pp.13-14) resulta certamente do cruzamento de darling com
dolly. É nessa parte da narrativa que ficamos a saber da «espantável
beleza» de Luarmina quando moça, pelos olhos de Zeca Perpétuo ao observar uma
fotografia dela. A expressão pleonástica «estrangeirismo de fora» é muito curiosa, pois
revela que existe a noção de «estrangeirismo de dentro» por parte das
personagens em diálogo, ou apenas de Luarmina, filha de pai grego e mãe
africana. Os estrangeirismos de dentro talvez sejam os neologismos criados na
oralidade, à semelhança dos acima referidos.
Salienta-se
ainda o trabalho vocabular na construção antroponímica. Destaco o nome da
personagem Luarmina, que sugere uma mina de luar, bem distante do seu nome
oficial, Albertina da Conceição Melistopoulos. Destaco também o de Agualberto
Salvo-Erro, sendo que o primeiro nome une Água a Alberto cruzado com aberto, muito de acordo com a
sua vida de homem do mar onde perdera a sua amada e onde mergulhara de
olhos abertos durante um dia para a encontrar, ficando com olhos «de tubarão».
O acrescendo do sobrenome Salvo-Erro, desperta no leitor o estranhamento que o leva a sorrir e a buscar uma explicação junto de nomes semelhantes (Adalberto, Gualberto, mas também Agualberto no Brasil). Talvez o sobrenome possa ter surgido da resposta à pergunta: «Como se chama aquele menino?», «Agualberto, salvo-erro».
A
voz africana da obra pertence ao narrador, de seu nome Zeca Perpétuo, e
pertence a Luarmina, que com ele dialoga e estimula a narração das histórias da
vida a que os dois pertencem. Estamos perante o poder da palavra criadora que
constrói a realidade do passado e do presente, uma vez que o futuro não existe
na língua antiga,
A
análise vocabular realizada leva-me a colocar a questão aberta: os vocábulos analisados
terão sido ouvidos pelo autor em diálogos no português de Moçambique ou terão
sido criados pelo autor com fins estilísticos?
Certo
é que a língua portuguesa se mostra flexível ao abarcar as transgressões e a
multiplicidade linguística e cultural dos povos que fizeram dela a sua língua
oficial.
Maria
José Domingues
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