A obra surpreende e toca pela
delicadeza da expressão poética assente na oralidade. Essa delicadeza poético-narrativo é ponto de partida para a leitura graças à epígrafe
do primeiro capítulo, extraída de «Ditos do avô Celestiano, reinventando um
provérbio macua»:
Deus é
assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se,
se não segurarmos bem cai.
Sentimos que Mia Couto pretende
segurar o ovo frágil para o passar cuidadosamente ao leitor.
O primeiro capítulo abre em diálogo
sorridente entre o narrador protagonista Zeca Perpétuo, que se define como
feliz e preguiçoso, uma vez que a infelicidade dá muito trabalho, e Dona
Luarmina que o espicaça para a vida. E é sobre a vida e o futuro que Zeca tem
tiradas de filósofo:
A vida,
Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô
Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus…
[…]
Sim, como
se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro
é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do atual
presente. E basta.
Dona Luarmina solicita memórias
exatas ao vizinho Zeca Perpétuo, que tenta recusar-lhas, pois elas encontram-se
espalhadas por todo o seu corpo:
Meu corpo
foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde
enterramos os nossos mortos.
Mas a
Luarmina só interessam as memórias de verdade de Zeca, enquanto a este apenas
interessa viver preguiçosamente no presente da sua reforma de pescador bem
avizinhado. Todavia, ele contará, a pedido insistente da vizinha, as suas
histórias do passado no presente dialogado com Luarmina. Entre
os dois, dá-se, em construção verbal delicada, a dança de palavras da poética do desejo de Zeca e da fuga
constante da vizinha, criando mais um incentivo de leitura até ao
desfecho surpreendente.
Maria José Domingues
II. MAR ME QUER - construção da delicadeza.
ResponderEliminarA convocação que senti e me foi feita por Maria José Domingues, a propósito do MAR ME QUER, de Mia Couto, obrigou-me à procura do livro e, não descansei enquanto não o tive nas mãos. Foi uma tarde e parte da noite de domingo, absolutamente, entregue a uma relação de presença viva, na ausência, entre os principais protagonistas do BEM ME QUER, bem como à aproximação entre autor/criador e leitor.
Maria José Domingues, nesta II parte do seu trabalho - a construção da delicadeza - em que decidi focar-me, é surpreendente, tal como a obra o é, pela clareza com que põe a nu, a delicadeza poético-narrativa, assente na oralidade. Sente-se no decorrer da leitura, ao entrar-se dentro das almas e corpos, na sua indissolubilidade, de Luarmina e Zeca Perpétuo, bem expressos nos diálogos, entre ambos. É notável como Mia Couto, o criador desta e de outras obras, sempre poéticas, consegue trazer para o discurso escrito, a oralidade que se sente em carne viva.
E realço a maestria com que o autor consegue manejar, ao ligar estruturas da Língua Portuguesa com linguagens nativas, nomeadamente, a macua, trazendo para a superfície da Comunicação, toda a sua riqueza, nas diferentes dimensões.
Fascinantes são os provérbios que, no início da cada um dos capítulos, são colocados em epígrafe, todos lembrados pelo avô Celestiano, que consubstanciam a sua sabedoria e encerram memórias, simbólicas ou reais, dos antigos e que marcam o presente. Indelevelmente: o corpo como "cemitério
de tempo." E, sem que se possam encadear e manter na escuridão do tempo.
O pai de Zeca vai re-atualizar essas memórias.
Não posso, como não crente e, na minha totalidade de pessoa, deixar de referir o primeiro provérbio - "Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo...".
É sublime como é colocado este dilema: Deus pode, em qualquer dos casos, desaparecer. E Mia Couto, na escolha deste provérbio macua, trata o seu desenvolvimento com enorme delicadeza, no respeito pela liberdade, mas também, coloca o problema de sugerir a pergunta dolorosa: para que serve deus, se os que dele necessitam, têm de usar de todo o cuidado para que nem o apertem muito, nem o deixem cair.
Aprender até Morrer é um sítio criado por Maria José Domingues, oonde se aprende e se cumpre o título do blogue.
Eu, tenho muito a aprender. E já ganhei, com o prazer e privilégio da leitura do MAR ME QUER, suscitada pelas enriquecedoras e cuidadas reflexões da autora.
Agradeço o comentário filosófico de leitora entusiasta da obra de Mia Couto. Comungamos o prazer de a ler e Mar Me Quer é fonte de prazer e de aprendizagem de uma filosofia de vida antiga e reinventada em linguagem literária contemporânea. Esperamos vir a ter o prazer de assistir a Mia Couto Prémio Nobel da Literatura do português de Moçambique
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