sábado, 31 de janeiro de 2015

III. Mia Couto e o novo nascimento do português de Moçambique em Mar Me Quer – 1998



Já falámos da importância dos estratos linguísticos na formação desta nova língua literária, o portuguêsde Moçambique, que parte da oralidade, como todas as línguas no seu nascimento.
A reflexão será agora sobre o registo escrito dessa língua oral na obra referida. O trabalho vocabular reveste-se da maior importância, pois é revelador da riqueza da oralidade resultante da convivência linguística.
Fazendo o registo do vocabulário novo presente no primeiro capítulo, sobressaem os verbos de tema em a, criados por sufixação a partir de:
·        adjetivos: suficiento ( v. suficientar - suficiente+ar), simetricarmos (v. simétrico+ar);
·        advérbio: antigmentara (v. antigamentar - antigamente+ar);
·        nome: abutreavam (v. abutrear – abutre+ar);
·        estrangeirismo: icebergam (v. icebergar – iceberg+ar).
Acontece também em verbos a corruptela transformadora da palavra e de seu sentido, por exemplo:
·        subterfugir - construção por corruptela oral de subterfúgio para subterfujo, chegando por essa via ao verbo subterfugir;
·        rameramejar – ramerrame+ejar, sendo que ramerrame significa rotina e ruído sucessivo e monótono, segundo Houaiss, sentidos muito bem aplicados ao cantochão de Luarmina através do  verbo, que deveria escrever-se ramerramejar; todavia rameramejar é mais suave e subtil, acrescentando à ideia de rotina ainda o valor onomatopaico do leve ruído e movimento do desfolhar das pétalas caindo ao chão, valorizando poeticamente o vocábulo cantochão – o canto repetido que vai simultaneamente cobrindo o chão de pétalas e de cor.
A formação de neologismos nominais assume valores estilísticos especiais, por exemplo:
·        Rondopio, parecendo corruptela de rodopio, constrói-se pelo processo não clássico da amálgama, acrescentando significado de amplificação na frase «Já faz anos que rondopio à volta dela». Ele ronda e ele pia como ave em enamoramento, mas não rodopia, uma vez que se define como preguiçoso e rodopiar (girar como um pião) requer esforço.
·        Outro neologismo curioso é ajunta-brasas, por oposição a espalha-brasas, na história de Bailarinha, a bailadeira que arde a bailar.
·        Cabisburro é o adjetivo depreciativo aplicado por avô Celestiano a seu filho Agualberto. Logo se entende que teria sido uma palavra nova com base em cabisbaixo, sendo que o elemento ‘cabis’ foi tomado e bem (ver Houaiss) por ‘cabeça’ e teremos o significado de ‘cabeça de burro’ para aquele filho que abandonara os antepassados.

Na frase de Luarmina «Uma vez um homem me chamou de dólingui», o «estrangeirismo de fora» (pp.13-14) resulta certamente do cruzamento de darling com dolly. É nessa parte da narrativa que ficamos a saber da «espantável beleza» de Luarmina quando moça, pelos olhos de Zeca Perpétuo ao observar uma fotografia dela. A expressão pleonástica «estrangeirismo de fora» é muito curiosa, pois revela que existe a noção de «estrangeirismo de dentro» por parte das personagens em diálogo, ou apenas de Luarmina, filha de pai grego e mãe africana. Os estrangeirismos de dentro talvez sejam os neologismos criados na oralidade, à semelhança dos acima referidos.

Salienta-se ainda o trabalho vocabular na construção antroponímica. Destaco o nome da personagem Luarmina, que sugere uma mina de luar, bem distante do seu nome oficial, Albertina da Conceição Melistopoulos. Destaco também o de Agualberto Salvo-Erro, sendo que o primeiro nome une Água a Alberto cruzado com aberto, muito de acordo com a sua vida de homem do mar onde perdera a sua amada e onde mergulhara  de olhos abertos durante um dia para a encontrar, ficando com olhos «de tubarão». O acrescendo do sobrenome Salvo-Erro, desperta no leitor o estranhamento que o leva a sorrir e a buscar uma explicação junto de nomes semelhantes (Adalberto, Gualberto, mas também  Agualberto no Brasil). Talvez o sobrenome possa ter surgido da resposta à pergunta: «Como se chama aquele menino?», «Agualberto, salvo-erro».

A voz africana da obra pertence ao narrador, de seu nome Zeca Perpétuo, e pertence a Luarmina, que com ele dialoga e estimula a narração das histórias da vida a que os dois pertencem. Estamos perante o poder da palavra criadora que constrói a realidade do passado e do presente, uma vez que o futuro não existe na língua antiga,

A análise vocabular realizada leva-me a colocar a questão aberta: os vocábulos analisados terão sido ouvidos pelo autor em diálogos no português de Moçambique ou terão sido criados pelo autor com fins estilísticos?
Certo é que a língua portuguesa se mostra flexível ao abarcar as transgressões e a multiplicidade linguística e cultural dos povos que fizeram dela a sua língua oficial.

Maria José Domingues





terça-feira, 27 de janeiro de 2015

II. MAR ME QUER de Mia Couto – a construção da delicadeza




A obra surpreende e toca pela delicadeza da expressão poética assente na oralidade. Essa delicadeza  poético-narrativo é ponto de partida para a leitura graças à epígrafe do primeiro capítulo, extraída de «Ditos do avô Celestiano, reinventando um provérbio macua»:

Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não segurarmos bem cai.


Sentimos que Mia Couto pretende segurar o ovo frágil para o passar cuidadosamente ao leitor.

O primeiro capítulo abre em  diálogo sorridente entre o narrador protagonista Zeca Perpétuo, que se define como feliz e preguiçoso, uma vez que a infelicidade dá muito trabalho, e Dona Luarmina que o espicaça para a vida. E é sobre a vida e o futuro que Zeca tem tiradas de filósofo:

A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus…
[…]
Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do atual presente. E basta.

Dona Luarmina solicita memórias exatas ao vizinho Zeca Perpétuo, que tenta recusar-lhas, pois elas encontram-se espalhadas por todo o seu corpo:

Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde enterramos os nossos mortos.

Mas a Luarmina só interessam as memórias de verdade de Zeca, enquanto a este apenas interessa viver preguiçosamente no presente da sua reforma de pescador bem avizinhado. Todavia, ele contará, a pedido insistente da vizinha, as suas histórias do passado no presente dialogado com Luarmina. Entre os dois, dá-se, em construção verbal delicada, a dança de palavras da poética do desejo de Zeca e da fuga constante da vizinha, criando mais um incentivo de leitura até ao  desfecho surpreendente.

Maria José Domingues

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

I. Mia Couto – em busca da expressão da «alma nacional» de Moçambique



Mia Couto – em busca da expressão da «alma nacional» de Moçambique
Mar me quer
Sou uma leitora e releitora de Mia Couto. Neste momento acabo de reler Mar me quer – a obra de arte no seu todo. Perfeita e redonda como Luarmina – a mina de luar.
Centrando-me na motivação da obra, parece-me importante o momento cultural do seu lançamento: «Mar Me Quer [MMQ] Lisboa, Parque EXPO/NJIRA, 1998: contribuição para o pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO '98 em Lisboa».
Neste contributo burilado em arte literária, poder-se-á vislumbrar a vontade da criação de uma identidade literária de Moçambique, visando a criação da língua moçambicana, num casamento feliz entre uma língua banto e o português. Se, para isso, é preciso encontrar «a alma nacional» (de que fala Octávio Paz, a propósito da fundação do mexicano face ao espanhol), Mia Couto busca-a e cria a expressão literária moçambicana, capaz de divulgar essa «alma nacional» numa língua entrecruzada pelos estratos que a História foi legando.
Esse é um dos assuntos transversais à obra Mar me quer. Encontrar e desnudar com pudor essa «alma nacional» moçambicana (banto-macua-portuguesa) de cor negra do avô Celestiano e do pai Agualberto Salvo-Erro até à cor da mulata Luarmina – a Vénus mulata que enfeitiça pai e filho.
A presença constante da sabedoria do avô Celestiano anuncia ao leitor, no início de cada capítulo, o valor da sabedoria dos mais velhos, por mais próximos das origens mítico-religiosas da cultura macua – os filhos da Monte Namuli, nascidos a partir das raízes da grande Árvore, o embondeiro. 
Grande desgosto tinha Celestiano por seu filho, Agualberto Salvo-Erro, se ter afastado ideologicamente das origens. Contudo, antes de morrer, Agualberto visita com o filho, o narrador Zeca Perpétuo, o embondeiro de Ritsene, ao qual oferece o coral preto e único, depois de enviar mensagem ao padre, renunciando à igreja dos brancos e reafirmando o culto dos antepassados.

«-Essa é a nossa igreja, disse meu pai, apontando a árvore. Ouviu, Zeca?[…]
- Diga ao padre Nunes que eu vim aqui, na árvore dos antepassados. Diga que eu vim aqui, não fui lá ajoelhar na igreja dele…»

O culto dos antepassados abrange a Natureza, presente também na gratidão ao bosque e suas árvores, tendo sido uma delas a fornecedora da madeira para o seu barco. Grato, deposita a oferta no chão: um coral - «era outra oferta aos deuses».
Despede-se do filho e entrega-se ao mar… da sua vida e do seu amor. Também será ao som do mar que Zeca Perpétuo vai entrar na eterna dança, a encerrar a obra.

Mª José Domingues