domingo, 26 de agosto de 2012

Desassossegos

 Bernardo Soares, Livro do Desassossego:

«Pasmo sempre que acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço.»


«E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios.»

OLHARES

Museu Gulbenkian – Páginas ilimitadas

Rocha de Sousa

A exposição entretanto proposta pelo Museu Gulbenkian, comissariada por Paulo Pires do Vale, intitula-se Tarefas infinitas. Quando o Livro e a Arte se Ilimitam. São percursos que propõem, entre hipóteses formais diversas, um conjunto de relações conceptuais que mergulham, a montante, na revolução estética do século XX e também nos prolongamentos ou encontros durante a primeira década do século XXI.

O livro, com o seu corpo de páginas metaforicamente sem limite, torna-se objeto principal de uma rede surpreendente de coisas semelhantes e diferentes, metáforas em torno de vários temas que tanto se ligam às artes plásticas pela Natureza como se organizam após a ideia de obra aberta, tese de Umberto Eco e que criadores como Godard (cinema) ou Rui Chafes (escultura) exploraram em registos específicos.

Na verdade, o discurso fílmico teve na nova vaga um conjunto de autores que repensaram a linguagem cinematográfica, porque o problema do espaço e do tempo foi deslocado para fora das habituais narrativas de estrutura cronológica: o espectador era confrontado com a irrealidade de cada sequência, planos e cenas que se desmontavam entre si para se abrirem aos seus outros possíveis sentidos.

A instalação apresentada por Rui Chafes desdobra-se para quatro dezenas de caixas em ferro. Dentro desses utensílios o artista introduziu papéis queimados dos quais se sabe terem eles notas escritas ou relativas a trabalhos em projeto. Uma obra assim, ao mesmo tempo instalação e escultura, desmonta o tempo pela destruição suicida do próprio futuro. Renúncia plausível ou resgate do essencial, o sentido de perda de certos limites esvazia, na sua elementaridade absurda, as caixas de súbito sem propósito e sem limite.

São apenas dois exemplos de uma frondosa deriva por muitas outras hipóteses e formas: na exposição podemos ver livros, esculturas, pinturas e instalações, tudo num regime formal que se desenvolve desde há muito e que tem permitido, dado o seu grau de abertura às mais diversas incursões em domínios da vida comum, do espaço urbano ou natural, das novas e velhas tecnologias, entre simbioses complexas, onde a luz e o movimento podem ser explorados, a metamorfose das próprias ideias iniciais, a máquina do tempo e o sonho submerso.

O LIVRO ABERTO

A preponderância do livro nesta exposição coordenada dentro e fora de antigas memórias e velhas convenções tende a servir de fio estrutural das várias convocações. Porque as caixas de Chafes são também, a seu modo, livros cuja parte material que sustentava os conteúdos se perdeu - o que arrasta consigo longínquos holocaustos em torno dos livros proibidos ou secretos, revelações incontáveis e inconvenientes.

A simbologia de Bradbury, que Truffaut refez em filme, no paradoxo de serem os bombeiros a queimar montes de livros, como talibãs de uma civilização na qual a cultura, perseguida, se degradava em cinzas - isso fala-nos de hoje, afinal. Há aqui alguma consonância com o objeto de António Carneiro, livro aberto, as páginas degoladas e ilegíveis, flor de fitas impensáveis (mas que bem exprimem o nosso tempo) e lembram a destruição mecânica de documentos secretos.

Há temas menos provocatórios (perante o passado e os atuais preconceitos religiosos) e assim se pode falar da Natureza e da História. Podemos não ter de encarar simples obras da palavra, inteiras e prontas à consulta, como acontece com o projeto improvável de Tarefas Infinitas.

O livro entra em metamorfose, é ou não é manuseável, evoca o Renascimento e a Arte Moderna, mostra-se e esconde-se numa nova forma, talvez aquela soma de destruições de que nos falava Picasso. E não há nisso um caminho suicidário de reinvenção, como na Biblioteca de Suicidas, de Fernanda Fragateiro? Isso aponta para denegações e novas escolhas, perto do abismo. E esta autora tem dedicado a sua carreira a constantes pesquisas na criação de obras inusitadas, instalações, novos espaços, ornamentalidades despojadas e até metálicas em quartos de dormir onde ninguém dorme, só contempla.

De bibliotecas, e num roteiro operativo estritamente pictórico, sabia bem Vieira da Silva, aqui também representada, a mostrar que a arrumação tridimensional do livro, em mil tons de lombadas envelhecidas, nos lembra as cidades feitas em altura, prateleiras sobre prateleiras onde as pessoas habitam ou trabalham numa grande diversidade de serviços.

Seja como for, e também por isso, o leque das aproximações e proposições de livros que por vezes já não o são marca definitivamente esta notável proposta, entre referências inamovíveis e memórias do ler e do saber, mais na ordem conceptual do que na representatividade de géneros.

O livro é um símbolo ainda mágico que retém uma dimensão ontológica inalienável - Mallarmé aí concentrado nos conceitos, Blanchot anunciando o devir. O livro prolonga a ideia de homem e de conhecimento, a sabedoria das civilizações e das artes que as tornavam plausíveis.

O livro sustenta as tarefas infinitas, quase tudo o que somos, desde a culinária à filosofia. Não é por acaso que este trabalho expositivo, associando livros como os conhece à sua desmontagem reinstaladora, parte de um espaço museológico e liga os percursos ao espaço onde outras obras, na instituição, habitualmente se comunicam entre si e comunicam com a comunidade. O livro sai das estantes e é oferecido a um encontro circulante com as pessoas.

Vários artistas

TAREFAS INFINITAS. QUANDO O LIVRO E A ARTE SE ILIMITAM

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, até 21 de Outubro 2012

sábado, 14 de abril de 2012

estrela pequenina

tocadores, vinde tocar
marimbas, n’gomas, quissanges
vinde chamar nossa gente
p’rá beira do grande Mar!

sentai-vos, irmãos, escutai:
precisamos entender
as falas da Natureza,
dizendo da nossa dor,
chorando nossa tristeza.

ora escutai; meus irmãos:
aquele sol no poente,
vermelho como uma braza
não é sol somente. Não!
é coágulo de sangue
vertido por angolanos
que fizeram o Brasil!

ouvi o mar como chora,
ouvi o mar como reza…

olhai a noite que chega,
veludo negro tecido
de mil pedaços de pele
arrancados a chicote,
ai! Cortados a chicote,
do dorso da nossa gente,
no tempo da escravatura…

noite é luto
de que Deus cobre o mundo
com dó de nós…

disco de prata luzente
sobe ligeiro no espaço.
sabei que a Lua fulgente
contém lágrimas geladas
por pobres negros choradas…

pergunta-me a multidão,
sentada à beira do mar:
- agora dizei, irmão,
aquela pálida estrela
tão pequenina e humilde
que brilha no nosso céu
qual é o significado?

talvez seja finalmente
Deus a olhar para a nossa gente…


Maurício de Almeida Gomes (1920)
Luandense. Integra a Antologia dos novos poetas Angolanos, de 1950 e tem colaboração na “Cultura I”, “Cultura II” e “Mensagem”.

sábado, 24 de março de 2012

O Recreio de Mário de Sá-Carneiro

 Em carta datada de Paris, 16 de Novembro de 1912, a Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro escreve «com péssimo estado de espírito e num dia chuvoso, enervado, escuro como breu». A dada altura, explica a razão do seu sofrimento:
  • «Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava do  sol do vento. E eu cada vez mais me convenço de que não saberei resistir ao temporal desfeito - à vida , em suma, onde nunca terei lugar.
    Vê você, eu sofro porque sinto próxima a hora em que o recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas. [...] Em suma não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro. [...]» (Cartas de Mário de Sá- Carneiro a Fernando Pessoa, edição Manuela Parreira da Silva, Assírio e Alvim, pp.15-16).
  • A temática do recreio é retomada por Sá-Carneiro em Outubro de 1915:
O Recreio

Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar -
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

Mário de Sá-Carneiro

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia da poesia - 21 de Março

POESIA
em fuga
fugaz
leve  de tule
teia de aranha
na neblina
raio de sol
brilho multicolor
em fio de seda
envolve o iniciado
para sempre

pzed

domingo, 11 de março de 2012

«As Luzes de Leonor»

Maria Teresa Horta
«Um fresco sobre o Barroco»»; «Não se trata de um panegírico da época, mas de uma tiara de fragrâncias»»; «Leonor surge [...] descrita na sua visão atormentada entre os seus princípios monárquicos e os ideais e "atos extremos" da Revolução Francesa - período omisso no espólio e em que Maria Teresa Horta dá largas á imaginação convocando figuras que lutaram pela emancipação da mulher». «O romance, imaginoso arco-íris de rosáceas, cria uma poética dos cinco sentidos [...] e uma simbólica de cores».

 Extratos de «As Luzes de Leonor: Uma Poética do Belo», Ana Marques Gastão, in Colóquio de Letras 179, janeiro/abril 2012.