segunda-feira, 17 de junho de 2019

POEMA PARA GALILEO DE ANTÓNIO GEDEÃO


Resultado de imagem para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.


Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!


Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.


Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo! -
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.


Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?


Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.


Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.


Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.


António Gedeão (Rómulo de Carvalho) – Poesias Completas (1956-67)

Nota: 

«O Museu Galileu de Florença (também chamado de Museu de História da Ciência) reúne todo tipo de ferramentas e instrumentos científicos desde o renascimento até o século XX. É um dos museus mais importantes do mundo em seu campo. Como curiosidade, o museu conserva como uma relíquia o dedo do meio de Galileu, separado do corpo em 1737 quando transferiam seus restos à cripta familiar» (https://www.tudosobreflorenca.com/museo-galileo).










domingo, 16 de junho de 2019

«Não se perdeu nenhuma coisa em mim» - SOPHIA .

 Não se perdeu nenhuma coisa em mim,

Não se perdeu nenhuma coisa em mim,
Continuam as mortes e os poentes
Que escorrem na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes 
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o horror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia, 1944.





sexta-feira, 14 de junho de 2019

O CÉREBR0 – ANTÓNIO DAMÁSIO e EMILY DICKINSON



      1. A exposição na Fundação Calouste Gulbenkian



«O título, Cérebro: mais vasto que o Céu, inspira-se num poema de Emily Dickinson, The brain is wider than the Sky, no qual a poetisa norte-americana descreve ainda o cérebro humano como “mais fundo que o mar” e “com o exato peso de Deus”. É esta extraordinária complexidade do cérebro humano que a exposição vai celebrar, nas suas múltiplas representações, da ciência à arte e à filosofia.» [1]

       2. A poetisa e o cientista, debruçados sobre o cérebro, refletem e produzem textos, que em dado momento se encontram e fundem.


2.1. O poema de Emily Dickinson (1830-1886)




The Brain – is wider than the Sky –
For – put them side by side
The one the other contain
With ease – and You – beside

The Brain is deeper than the sea
For – hold them – Blue to Blue –
The one the other will absorb
As Sponges – Buckets – do


The Brain is just the weight of God –
For – Heft them- Pound for Pound-
And they will difer – if they do –
As Syllable from Sound


O cérebro é mais vasto que o céu
Pois se os pomos lado a lado –
Aquele o outro contém –
Fácil – e a você também –


O cérebro é mais fundo que o mar –
Ponha-se azul contra azul –
Aquele o outro absorve –
Como a esponja baldes sorve –


O cérebro é do peso de Deus –
Sopese-os com precisão –
E vão diferir, se é o caso,
Como a sílaba do som.


Fontes: Dickinson, Emily. “Uma Centena de Poemas”. Tradução Aíla de Oliveira Gomes, T.A.Queiroz Editor/Edit. Usp, 1985, pág. 90/91; p.195/196.


2.2. A conferência de António Damásio: O Cérebro, o Corpo, e a Naturalidade da Consciência, Domingo, 2 Junho, 18:30, Grande Auditório

Assista à conferência em: https://www.comunidadeculturaearte.com/funcionamento-do-cerebro-vai-ser-discutido-na-gulbenkian-neurocientista-antonio-damasio-e-um-dos-convidados/

2.3. A entrevista de António Damásio ao Expresso de 8 de junho, com texto de Valdemar Cruz, permite ao leitor o encontro textual com o poema de Emily Dickinson.

A propósito da exposição sobre o cérebro, li o poema «The brain – is wider than the Sky –» traduzido por «O cérebro – é mais amplo do que o Céu», o primeiro verso que dá o título ao poema e o subtítulo à exposição.
Anotei que Damásio discorda da tradução, apresenta a sua e acrescenta a análise da primeira estrofe. Ouçamo-lo:
«Nesse poema [Emily Dickinson] fala de algo que não é mais vasto, é mais largo[2]. No início diz especificamente “The Brain – is wider than the Sky” – mais largo do que o céu. Depois há um jogo muito interessante quando diz – “For – put them side by side / The one the other contain / With ease – and You – beside”. Há variadíssimas coisas de grande valor no poema. Primeiro é a ideia de que o cérebro é mais largo ainda do que o céu e que um deles, o cérebro, contém o outro, que é o universo. Depois o conceito de “ease and You beside. É um verso lindo, porque o “ease” é a facilidade, a desenvoltura, e o You beside» é o eu, a consciência. Filósofos da consciência e alguns neurocientistas insistem no contrário, na dificuldade, até mesmo na impossibilidade de compreender como é que o cérebro pode permitir a consciência. Emily Dickson tem esse verso que diz exatamente aquilo que eu gosto de dizer. Que há uma naturalidade e uma facilidade em compreender como é que o cérebro pode criar a consciência. Para fazer isso precisamos de ter a possibilidade de compreender os diversos componentes da consciência de uma forma inteligente. Estou neste momento a trabalhar sobre a consciência. É matéria de artigos e de um novo livro».

3                    2.3.1. A importância da linguagem verbal e outros assuntos
s
A entrevista de Damásio, iniciada com Dickinson - «Alguém com uma grande capacidade de reflexão e de imaginação» -, continua desenvolvendo a questão da consciência que estende a outros animais, salientando o enriquecimento da consciência dos humanos pelo facto de terem a linguagem verbal, que lhes «dá uma capacidade de simbolização extremamente profunda». E sublinha: «O grande mérito vem da linguagem verbal, matemática...».
Vinca a importância da inteligência afetiva, «que é o que permite a nossa vida e governa grande parte das coisas interessantes que fazemos na nossa vida».
Damásio volta às emoções, em síntese da sua teoria, na resposta à questão: «A inteligência     basta-se a si própria ou precisa das emoções para se exprimir?».
«Precisa e provém das emoções. Do ponto de vista evolutivo, as emoções vieram primeiro. São formas inteligentes de responder a uma situação. Não foram pensadas. Foram desenvolvidas pela natureza. [...] Recebemos as emoções. A inteligência fizemo-la nós. A invenção da matemática, da lógica, tudo isso foi desenvolvido por nós intelectualmente»[3].

Braga, 14 de junho 2019
Maria José Domingues



[1] Cérebro – mais vasto que o céu - 16 março – 10 junho 2019, Galeria Principal do Edifício Sede
Curadoria científica: Rui Oliveira. https://gulbenkian.pt/noticias/cerebro-mais-vasto-que-o-ceu/
[2] Curioso notar a correção de ‘mais vasto’ para ‘mais largo’ na tradução de «wider», uma vez que os dois sentidos estão dicionarizados como tradutores possíveis da referida palavra. Vejamos então a especificidade significativa de vasto e de largo em português, consultando o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa: «vasto (do latim vastus) 1. Que tem grande extensão. = ENORME, IMENSO. 2. Que tem grandes dimensões. AMPLO, ESPAÇOSO. [...]».   Conclui-se que o neurocientista sabe que o cérebro não é enorme nem amplo. Prefere traduzir por largo, cuja diferença significativa é a relação de largo com largura, isto é, «que possui grande extensão no sentido transversal». É evidente que a linguagem poética permite a tradução por «mais vasto», mas não a linguagem científica do especialista do cérebro.
[3] Entrevista lida no semanário Expresso, 8 de junho de 2019, 2432, primeiro caderno, pp.22-23.