sexta-feira, 27 de abril de 2018

«O Ano da morte de Ricardo Reis» de Saramago e o Ricardo Reis de Fernando Pessoa



 O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS congrega dois escritores maiores da língua portuguesa com conceções literárias bem diversificadas: Fernando Pessoa (1888-1935) e José Saramago (1922-2010). Saramago tinha 13 anos quando Pessoa morreu. O rapazinho com a avó «que desceu do comboio na estação de Mato de Miranda em 1936, era eu» - informa Saramago, na conferência intitulada «Algumas provas da existência de Herbert Quain».

Enquanto Saramago foi sobretudo um prosador, Fernando Pessoa foi sobretudo poeta. Cosmopolitas, os dois. Fernando Pessoa preocupa-se com o cosmopolitismo literário, definindo-o assim:

«Isto é, o cosmopolitismo, fenómeno que se dá no espaço, é representado por um fenómeno literário que se dá no tempo: a escola literária que queira representar a nossa época tem de ser aquela que procure realizar o ideal de todos os tempos, de ser a síntese viva das épocas passadas todas. Ora as épocas passadas, para nós, são simplesmente duas: o classicismo, onde a expressão é do universal e do abstracto, e o “romantismo” […] em que a expressão é do pessoal e do concreto. A arte moderna deve portanto buscar exprimir ao mesmo tempo o universal e o pessoal, o abstracto e o concreto (FP. C I: 224)»[1].

A construção do heterónimo Ricardo Reis faz-se dentro do «classicismo, onde a expressão é do universal e do abstracto». Define-o Pessoa como um «latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria». Eis a base que fará dele um construtor de poemas neoclássicos de índole pagã. 

Comparando o sensacionismo de Alberto Caeiro com o de Ricardo Reis, Pessoa escreve:

«Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra clássicas»[2].

A disciplina deteta-se nas suas odes, que, por isso mesmo, apresentam variantes na busca do melhor termo para a expressão adequada e ritmada, em distanciamento e despersonalização – o tal purismo exagerado que Pessoa refere na célebre carta a Casais Monteiro, de 13-1-35. Pessoa considera Ricardo Reis um «Horácio grego que fala português».
Vejamos a que propósito vem Horácio (65 a 8 a.C.), poeta latino de imortal obra literária. As suas odes consagram-no dentro da poesia lírica, que o poeta considera «monumento mais poderoso do que o bronze». 
Transcreva-se a opinião sábia do Professor Costa Ramalho, acerca da ode de Horácio:

«a ode horaciana é uma construção pessoal, até romana, nomeadamente, nas relações, entre som, metro e vocabulário. Ela é o veículo de um lirismo que brota mais da reflexão do que da emoção. Esta não falta, mas é comedida e disciplinada. Os temas são variados: o amor, a amizade, o culto dos deuses e dos valores morais de Roma; a brevidade da vida e o modo de passá-la com prazer entre o amor e o vinho, moderadamente; a inconstância da fortuna e as maneiras de resistir-lhe; daí o ideal da mediania dourada (aurea mediocritas[3].

O culto da lírica horaciana sente-se no renascimento através dos trabalhos dos poetas e não mais vai deixar de estar presente na literatura ocidental, nomeadamente, na portuguesa. A sedução pelo ideal de vida horaciano – «uma doce serenidade perante os benesses e as agruras quotidianas, a fruição avara do momento presente, a calma aceitação da morte – resumiu-se em certo número de temas que se mantiveram invariáveis no lirismo nacional através das modas do tempo».
Destacam-se os temas ligados às correntes filosóficas do estoicismo e do epicurismo, datadas do século IV a.C., que, julgadas antagónicas, podem coexistir literariamente. 
Do estoicismo, primado da razão e do saber, destaco a conceção cosmopolita (tão cara a Pessoa) nas palavras da Professora Maria Helena da Rocha Pereira:
 
«Melhor do qualquer outro sistema, é este que revela a metamorfose do habitante da polis em homem do kosmos helenístico, ou seja o nascimento do kosmopolites ou «cidadão do mundo», conceito que só então aparece».

Do epicurismo, destaca-se a aurea mediocritas - uma filosofia quietista, utilitarista e individualista, no âmbito da qual limitar o desejo é uma das regras, para assim obter a libertação do sofrimento e alcançar a felicidade possível em cada momento presente. Colher o dia («Carpe diem quam minimum credula postero.»  - Colhe o dia, confia o mínimo no amanhã.), em verso de Horácio, na ode I, 11,8 – tornou-se a expressão de valorização do momento presente, uma vez que esse é o único que podemos colher e tudo o mais é incerto.
As Odes de Ricardo Reis inspiram-se nas odes de Horácio e nelas colheu Lídia – a mulher da poesia lírica horaciana.

A vida e a obra de Ricardo Reis em textos do Arquivo Pessoa

O nascimento do Dr, Ricardo Reis[4]
Fernando Pessoa informa, em data presumível de 1914, que, reagindo contra os excessos da arte moderna, formulou a teoria oposta por disciplinada e sóbria: a teoria neoclássica de pendor grego. Estava nascendo Ricardo Reis.

«Ricardo Reis — vida dele.

O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as coisas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reacção momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adopto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo «científico» [...] reagir contra duas correntes — tanto contra o romantismo moderno, como contra o neoclassicismo à Maurras. [...]»

Sobre a poesia de Ricardo Reis, pelo sub-heterónimo Frederico Reis – figura literária de ensaísta, aparentada com Ricardo Reis:
«Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Tentaremos sintetizá-la.
Cada qual de nós — opina o Poeta — deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas, dentro de uma sobriedade individualista, o que lhe agrada e lhe apraz. Não
deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas.
Buscando o mínimo de dor ou [...], o homem deve procurar sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se do esforço e da actividade útil.
Esta doutrina, dá-a o poeta por temporária. É enquanto os bárbaros (os cristãos) dominam que a atitude dos pagãos deve ser esta. Uma vez desaparecido (se desaparecer) o império dos bárbaros, a atitude pode então ser outra. Por ora não pode ser senão esta.
Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, coisas inatingíveis porque, quanto à liberdade, os próprios deuses — sobre que pesa o Fado — a não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.
Tudo isto se apoia num fenómeno psicológico interessante: numa crença real [?] e verdadeira nos deuses da Grécia antiga, admitindo Cristo [...] como um deus a mais, mas mais nada — ideia esta de acordo com o paganismo e talvez em parte inspirada pela ideia (puramente pagã) de Alberto Caeiro de que o Menino Jesus era «o deus que faltava.»
O paganismo de Ricardo Reis
«Prefácio de Ricardo Reis ao seu livro ODES:
O prefácio, que pus à obra de meu mestre Alberto Caeiro, dando-me azo a que consignasse os princípios fundamentais a que visa o esforço, a que me junto, da reconstrução pagã, dispensa-me, e isso me apraz, da operosa tarefa de pôr a estas Odes um introito explicativo.
Naquele prefácio não está, porém, dito a que fins visa essa reconstrução; se busca, deveras, trazer outra vez ao mundo cristianizado o paganismo dos gregos e dos romanos, se busca outro fim qualquer, de âmbito mais humilde.
Parecendo que esta dupla hipótese contém em si a solução, não é assim. Esse movimento de reconstrução pagã apareceu, sem que os próprios em cujo espírito se revelou saibam a que fim do Destino quer que ele vise. Por isso, para nós dois em quem o fenómeno se deu, ele não tem sentido nenhum. O que sentimos verdade dentro de nós, traduzimos para a palavra, escrevendo os nossos versos sem olhar aquilo a que se destinam.
Uma reconstrução real do paganismo parece tarefa estulta em um mundo que de todo, até à medula dos seus ossos, se cristianizou e ruiu.
Depunhamo-los como oferendas, tábuas votivas, no altar dos Deuses, gratos simplesmente porque eles nos hajam livrado, e posto a salvamento, daquele naufrágio universal que é o cristismo.
Citação Horácio
Chamemos à nossa obra de «reconstrução pagã» porque ela o é, sem que o queiramos. Mas não façamos dela uma política ou uma força. Se os Deuses nos fizeram a graça de nos revelar a sua verdade antiga, contentemos em manter-lhes doméstico o culto impoluto.
Se a oferenda que na ara doméstica lhes fazemos for bela, basta que eles, na sua soberana ciência, a aceitem por boa. Nesse acto de culto, piamente realizado, cesse todo o intuito consciente da nossa obra religiosa.»

António Mora –o filósofo do paganismo construído por Pessoa - critica Ricardo Reis:

«Não nos adaptamos, porque os sãos se não adaptam a meio mórbido. Não nos adaptando, somos mórbidos. Neste paradoxo, nós, os pagãos, vivemos. Não temos outra esperança, nem outro remédio. Aceito como tal esta atitude nossa, mas não aceito o modo como a aceita Ricardo Reis. Quero que sejamos indiferentes para com uma época que nada pode querer de nós, e sobre a qual em nada podemos agir. Mas não quero que se cante essa indiferença como coisa boa de per si. É isso que faz Ricardo Reis. Por esse ponto, longe de tornar-se indiferente às correntes da época, integra-se em uma delas, que é a decadente. Essa indiferença, é já uma adaptação ao meio. É já uma concessão».

Álvaro de Campos opina sobre «As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras» na obra de Ricardo Reis:
«As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras, nos versos de Ricardo Reis são abstracções às avessas, ou vistas do avesso. Não são abstracções no sentido de serem abstractas, mas no sentido de terem apenas a realidade necessária para serem consideradas como existindo. São Chloes, Lydias e outras romanidades assim, não porque não existam, mas porque para o caso tanto vale ser Chloe como Maria Augusta, e, ao passo que esta última faz supor uma costureira, ou coisa parecida, com a agravante de o poder ser deveras, a gente sente-se realmente pagão com a Lydia.
No que o Reis tem muita sorte é em escrever tão comprimidos que é quase impossível seguir com a precisa atenção - supondo que ela é precisa - o sentido completo e exacto de todos os seus dizeres. É isso que faz com que aquela ode que começa: «A flor que és, não a que dás, eu quero» (pasmem, aliás, do «eu» antes do «quero», contra toda a índole linguistica portuguesa do Ricardo Reis!) disfarce que é dirigida a um rapaz, pois poucos há (perdidos como vão na escuridão sintáctica do poeta) que reparem no pequeno «o» que define a coisa.
        «Se te colher avaro
        A mão da infausta sphynge,» etc.
É a primeira vez que a sintaxe aparece como véu de pudor - delgado sendal, ou lá o que quer que seja, que cobre as partes do discurso

Fernando Pessoa explica a heteronímia e a sua necessidade literária e informa que Ricardo Reis é discípulo de Alberto Caeiro - ASPECTOS [a]
«Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem — não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.
Estes livros serão os seguintes, por enquanto: Primeiro, este volume, Livro do Desassossego, escrito por quem diz de si próprio chamar-se Vicente Guedes; depois «O Guardador de Rebanhos e outros poemas e fragmentos do (também, e do mesmo modo, falecido) Alberto Caeiro, que nasceu próximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja.
Este Alberto Caeiro teve dois discípulos e um continuador filosófico. Os dois discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguiram caminhos diferentes; tendo o primeiro intensificado e tornado artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Caeiro, e o segundo baseando-se em outra parte da obra de Caeiro, desenvolvido um sistema inteiramente diferente, e baseado inteiramente nas sensações.
(...)
Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?
(...)
Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior a determinado «mundo», plenamente fixas, nítidas, conhecidas e distintas, as linhas fisionómicas, os traços de carácter, a vida, a ascendência, nalguns casos a morte, destas personagens. Alguns conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos. Mas, se amanhã eu, viajando na América, encontrasse subitamente a pessoa física de Ricardo Reis, que, a meu ver, lá vive, nenhum gesto de pasmo me sairia da alma para o corpo; estava certo tudo, mas, antes disso, já estava certo. O que é a vida?»
1.2.7. Fernando Pessoa informa que vai publicar o primeiro livro de Ricardo Reis na revista «Athena».
«A revista «Athena» e o que nos afirmou Fernando Pessoa»
«- Depois?
- Exclui-se o critério de fragmentação (amostras e retalhos): não se publicam nem trechos esteticamente compreensíveis só como fragmentários - isto é, incompreensíveis - nem poucas produções de um autor para cuja compreensão sejam precisas muitas. É em obediência e este critério que a primeira «Athena» insere nada menos que onze reproduções de quadros do Visconde de Menezes, e nada menos que o primeiro livro, inteiro, das «Odes» de Ricardo Reis.»

 Fernando Pessoa compara os três heterónimos no texto «Com quem se pode comparar Caeiro?»
«Mas o facto é que — postas de lado estas considerações — nenhum nome poderia descrever melhor a sua atitude. A sua poesia é, de facto, a «sensacionista». A sua base é a substituição do pensamento pela sensação, não só como base da inspiração — o que é compreensível — mas como meio de expressão, se assim podemos falar. E, acrescente-se, aqueles seus dois discípulos, diferentes como são dele e um do outro — são também sensacionistas, de facto. É que o Dr. Ricardo Reis, com o seu neoclassicismo, a sua crença verdadeira e real na existência das divindades pagãs, é um sensacionista puro, embora de género diferente. A sua atitude para com a natureza é tão agressiva para com o pensamento como a de Caeiro; não imagina quaisquer significados nas coisas. Vê-as apenas, e, se parece vê-las de modo diferente do de Caeiro, é que, embora as veja tão pouco intelectualmente e tão pouco poeticamente como este último as vê à luz de um conceito religioso definido do universo — paganismo, paganismo puro, o que altera necessariamente a sua maneira muito directa de sentir. Mas é pagão porque a religião sensacionista é o paganismo. É claro que um sensacionista puro e integral como Caeiro não tem, logicamente, qualquer religião, visto a religião não se encontrar entre os dados imediatos da sensação pura e directa. Mas Ricardo Reis exprimiu com grande clareza a lógica da sua atitude como puramente sensacionista. Segundo afirma, não só nos deveríamos prostrar ante a objectividade pura das coisas (daí o seu sensacionismo propriamente dito e o seu neoclassicismo, pois foram os poetas clássicos os que menos comentaram as coisas, ou as comentaram menos directamente), mas prostrar-nos ante a objectividade igual, a realidade, a naturalidade, das necessidades da nossa natureza, entre as quais se conta o sentimento religioso. Caeiro é o sensacionista puro e absoluto que se prostra ante as sensações qua exterior e nada mais admite. Ricardo Reis é menos absoluto; prostra-se também ante os elementos primitivos da nossa própria natureza, visto para ele os nossos sentimentos primitivos serem tão reais e naturais como as flores e as árvores. Portanto, Caeiro é religioso. E, visto ser sensacionista, é pagão pela religião; o que se deve, não só à natureza da sensação que se concebera como admitindo uma religião qualquer, mas também à influência das leituras clássicas a que o seu sensacionismo o tinha impelido.
Álvaro de Campos — o que é bastante curioso — encontra-se no extremo oposto, inteiramente oposto a Ricardo Reis. No entanto, não é menos discípulo de Caeiro ou menos sensacionista propriamente dito. Aceitou de Caeiro, não o essencial e o objectivo, mas o aspecto deduzível e subjectivo da sua atitude. A sensação é tudo, afirma Caeiro, e o pensamento é uma doença. Por sensação entende Caeiro a sensação das coisas tais como são, sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma. Para Campos, a sensação é tudo, sim, mas não necessariamente a sensação das coisas como são, antes das coisas conforme sentidas. De modo que vê a sensação subjectivamente e envida todos os seus esforços, uma vez que assim pensa, não para desenvolver em si a sensação das coisas como são, mas toda a casta de sensações de coisas, e até da mesma coisa. Sentir é tudo: é lógico concluir que o melhor é sentir toda a casta de coisas de todas as maneiras, ou, como diz o próprio Álvaro de Campos, «sentir tudo de todas as maneiras». Assim, aplica-se a sentir a cidade na mesma medida em que sente o campo, o normal como sente o anormal, o mal como sente o bem, o mórbido como sente o saudável. Nunca interroga, sente. É o filho indisciplinado da sensação. Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra clássicas. Em Álvaro de Campos, as coisas devem ser simplesmente sentidas. Mas a origem comum destes três aspectos tão diferentes da mesma teoria é patente e manifesta.»
Pessoa escreve a célebre carta a Casais Monteiro, a 13 de Janeiro de 1935, e, sobre Ricardo Reis, escreve:
« Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
(...) Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
(...) Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
(...) Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. (...)
Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. (...) Reis de um vago moreno mate. (...) Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.
(...) Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (...)
Reis [escrevia] melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.»


Lidos  textos saídos da caneta de Pessoa, ficamos informados sobre o Ricardo Reis de Fernando Pessoa.
Ricardo Reis, personagem criada por Saramago a partir do heterónimo
pessoano, é outro assunto.
Maria José Domingues


[1] https://issuu.com/clepul/docs/copia_a964b913f8816b
[2] http://arquivopessoa.net/textos/458
[3] Ramalho. A. Costa - «Horácio», in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol.10, pp.476-479.
[4] Os textos transcritos foram retirados do Arquivo Pessoa, Obra Édita, na pesquisa Ricardo Reis - http://arquivopessoa.net.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Epígrafe em «O Ano da Morte de Ricardo Reis»



A escolha da epigrafe  é feita pelo autor e, por isso, reveladora da intencionalidade da obra. Se, como diz o filósofo Agostinho da Silva, cada leitor de Fernando Pessoa constrói o seu próprio Pessoa, pelos três extractos citados na epígrafe, ficamos de sobreaviso sobre o Pessoa de José Saramago.

Textos da Epígrafe localizados no contexto

1ª citação de Ricardo Reis (heterónimo neoclássico de Fernando Pessoa)

«Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo»

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
                E ao beber nem recorda
                Que já bebeu na vida,
                Para quem tudo é novo
                E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúveis,
                Ele sabe que a vida
                Passa por ele e tanto
                Corta a flor como a ele
                De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
                Que o seu sabor orgíaco
                Apague o gosto ás horas,
                Como a uma voz chorando
                O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
                E apenas desejando
                Num desejo mal tido
                Que a abominável onda
                O não molhe tão cedo.

19-6-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).  - 32.

Imarcescível- i.mar.ces.cí.vel, , imɐrsəʃˈsivɛɫ, Do latim immarcescibĭle
1. que não murchasempre viçoso
2. que não se extingue
3.figurado imperecívelincorruptível

Átropos (em grego antigo: Ἄτροπος, "inamovível", "inflexível") ou Aisa era uma das três moiras da mitologia grega, que regiam os destinos, sendo sua contraparte romana conhecida como Morta. Era considerada a mais velha das moiras, conhecida como a "inevitável" ou "inflexível", sendo ela que cortava o fio da vida. https://pt.wikipedia.org/wiki/Átropos



2ª citação – Bernardo Soares (semi-heterónimo de Fernando Pessoa):

«Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida».

Bernardo Soares - Livro do Desassossego
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra...
L. do D.
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo ou mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.
Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida.
Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma acção qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe a dentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 241.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

3ª citação: Fernando Pessoa
«Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja.

(Texto explicativo da multiplicidade e da heteronímia) 

Fernando Pessoa

ASPECTOS [a]

A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substância dramática, embora de forma vária — aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de filosofias.
É, não sei se um privilégio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é que o autor destas linhas — não sei bem se o autor destes livros — nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais propriamente do que ele próprio pudesse ter esses sentimentos.
Há autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas novelas atribuem sentimentos e ideias às figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou ideias suas. Aqui a substância é a mesma, embora a forma seja diversa.
A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o «medium» de figuras que ele próprio criou.
Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda. Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como se lhe fosse ditado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que ditava, acha interessante — porventura só por amizade — o que, ditado, vai escrevendo.
O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser outrem.
Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociação da personalidade, o autor destes livros nem o contesta, nem o apoia. De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade de si próprio, que concordasse com esta, ou com aquela, teoria, sobre os resultados escritos dessa multiplicidade.
Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que admira é que haja coisa alguma que não cause estranheza.
Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra destas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram consubstancialmente pela sua própria personalidade, se é que esta existe.
Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem — não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.
Estes livros serão os seguintes, por enquanto: Primeiro, este volume, Livro do Desassossego, escrito por quem diz de si próprio chamar-se Vicente Guedes; depois «O Guardador de Rebanhos e outros poemas e fragmentos do (também, e do mesmo modo, falecido) Alberto Caeiro, que nasceu próximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja.
Este Alberto Caeiro teve dois discípulos e um continuador filosófico. Os dois discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguiram caminhos diferentes; tendo o primeiro intensificado e tornado artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Caeiro, e o segundo2 baseando-se em outra parte da obra de Caeiro, desenvolvido um sistema inteiramente diferente, e baseado inteiramente nas sensações. O continuador filosófico, António Mora (os nomes são inevitáveis, tão impostos de fora como as personalidades), tem um ou dois livros a escrever, onde provará completamente a verdade, metafísica e prática, do paganismo. Um segundo filósofo desta escola pagã, cujo nome, porém, ainda não apareceu na minha visão ou audição interior, dará uma defesa do paganismo baseada, inteiramente, em outros argumentos.
É possível que, mais tarde, outros indivíduos, deste mesmo género de verdadeira realidade, apareçam. Não sei; mas serão sempre benvindos à minha vida interior, onde convivem melhor comigo do que eu consigo viver com a realidade externa. Escuso de dizer que com parte das teorias deles concordo, e que não concordo com outras partes. Estas coisas são perfeitamente indiferentes. Se eles escrevem coisas belas, essas coisas são belas, independentemente de quaisquer considerações metafísicas sobre os autores «reais» delas. Se, nas suas filosofias, dizem quaisquer verdades — se verdades há num mundo que é o não haver nada — essas coisas são verdadeiras independentemente da intenção ou da «realidade» de quem as disse.
Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não um só escritor, mas toda uma literatura, quando não contribuísse para me divertir, o que para mim já era bastante, contribuo talvez para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escrito um verso belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente.
Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?
Pensei, primeiro, em publicar anonimamente, em relação a mim, estas obras, e, por exemplo, estabelecer um neopaganismo português, com vários autores, todos diferentes, a colaborar nele e a dilatá-lo. Mas, sobre ser pequeno demais o meio intelectual português, para que (mesmo sem inconfidências) a máscara se pudesse manter, era inútil o esforço mental preciso para mantê-la.
Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior a determinado «mundo», plenamente fixas, nítidas, conhecidas e distintas, as linhas fisionómicas, os traços de carácter, a vida, a ascendência, nalguns casos a morte, destas personagens. Alguns conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos. Mas, se amanhã eu, viajando na América, encontrasse subitamente a pessoa física de Ricardo Reis, que, a meu ver, lá vive, nenhum gesto de pasmo me sairia da alma para o corpo; estava certo tudo, mas, antes disso, já estava certo. O que é a vida?

1930?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.   - 95.
[Prefácio para a edição projectada das suas obras]

Pela epígrafe podemos concluir que José Saramago foi buscar à multiplicidade pessoana o Pessoa que lhe interessava para a construção do romance.  
Do heterónimo Ricardo Reis, escolheu «Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo», para que consideremos o poeta neoclássico um espetador e não um participante do contexto sócio-político. 
Do semi-heterónimo Bernardo Soares, selecionou «Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida», para que a abulia ficasse reforçada. 
De Fernando Pessoa, extraiu o conveniente valor da criação literária, citando: «Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja».

Considero que Saramago pretendeu através da epígrafe evidenciar a sua falta de apreço pelo cidadão Fernando Pessoa, considerando-se a si próprio melhor cidadão, no que à «abulia» ou não-abulia diz respeito. Porém a obra completa do cidadão Fernando Pessoa, na sua grandeza, rigor e multiplicidade, desfaz qualquer ideia da «abulia» referida por Bernardo Soares e tão negativamente aproveitada e apregoada pelos opositores pessoanos.
Por outro lado, interessava o avale para a criação literária das personagens retiradas da obra pessoana, para isso, Saramago escolheu a terceira citação.
Considero as citações da epígrafe reveladoras da intencionalidade da obra de Saramago: O ano da morte de Ricardo Reis.

Maria José Domingues