«O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do
Atlântico»
capítulo V da obra MITO E MERCADORIA, UTOPIA E PRÁTICA DE NAVEGAR séculos XIII - XVIII de
Vitorino Magalhães Godinho
Recensão Crítica
O autor, nascido
em 1918, é uma referência para os portugueses, como historiador e como
personalidade de exemplar civismo. Não pactuou com a política do Estado Novo e
encontrámo-lo em França nesses tempos conturbados. Homem de letras, economista
e historiador, doutorou-se na Sorbonne. Recebeu a influência de Lucien Febre e
de F. Braudel, que homenageia com o trabalho O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico – o capítulo em
recensão. A sua vasta obra percorre toda a História de Portugal, com um olhar
demorado para a problemática da expansão. Contudo, as reflexões filosóficas,
bem como a problemática da educação e da cidadania, marcam presença nos anos 70
e 80, períodos precedente e sequente da revolução de Abril.
Neste
trabalho, o autor começa por apresentar o Mediterrâneo e a importância da sua
civilização milenar, para em seguida demonstrar que entre os séculos XI e XIII
um outro complexo se tece e se desenvolve através do mar do Norte e do Báltico,
ligando os países bálticos, os países nórdicos, os Países Baixos, a Inglaterra
e a Alemanha; complexo esse que pela sua industrialização fomenta um comércio activo
por terra e por mar. Na sequência, outros focos de desenvolvimento vão surgindo
nomeadamente o da França com os seus vinhos, e o de outras regiões atlânticas
com os seus produtos. Entre os dois complexos, a Península Ibérica atlântica,
sobretudo a costa da Galiza e de Portugal, é vítima do ataque frequente dos
normandos e dos muçulmanos. Paulatinamente vai surgindo a construção naval que
permite repelir os atacantes. E, aos poucos, esse espaço compreendido entre o
Estreito de Gibraltar e o Norte da Irlanda vai tecendo redes de navegação e
laços comerciais, que geram mais saber - acerca da cartografia, que já
praticam, e acerca da arte de navegar e da construção naval - e maior riqueza, que vão permitir lançar as
bases de projectos próprios.
Os contactos
entre os dois complexos fazem-se sobretudo por rotas terrestres e fluviais,
como o provam as notícias das feiras, dos mercados, das peregrinações
religiosas, e os mapas da arte românica e gótica. A ligação por via oceânica
far-se-ia sobretudo a partir do século XIII.
Os portugueses
marcaram presença no Mediterrâneo: em feiras, no século XII, logo após a sua
independência; no século XIV e XV, embarcações portuguesas cruzam esse mar
descarregando sardinha portuguesa e carregando ou descarregando cereais; nos
meados do século XV, uma rede de consulados e feitorias estende-se pela costa
europeia mediterrânica até Tunes. Começam por comerciar com as cidades
levantinas espanholas, mas sobretudo com o Magrebe, alinhando o sistema
monetário português pelo sistema
monetário norte-africano. Os principais vectores da presença portuguesa são o
corso e os fretes. Na sua mira, estão as muitas riquezas comerciáveis: o ouro,
os escravos, o açúcar, o trigo, os lanifícios, entre outras. Em 1415, dá-se a
tomada de Ceuta – chave da navegação mediterrânica e atlântica –, facto que
marca a entrada do Atlântico no Mediterrâneo. A conquista de Granada (1492)
pelos Reis Católicos e os tratados de demarcação das expansões portuguesas e
castelhanas pretenderam pôr fim aos objectivos dos portugueses no Mediterrâneo,
todavia muitas incursões continuaram a fazer-se.
A civilização
mediterrânica expandiu-se por toda a Europa por rotas terrestres ou marítimas,
através dos comerciantes, dos viajantes e dos peregrinos. Frequente é
encontrar-se pisanos e genoveses nas escolas de cartografia e de arte de
navegar. Os italianos encontram-se por todo o lado. Essas trocas de
civilizações e culturas permitiram um enriquecimento em termos das artes, das
técnicas, do vocabulário e do pensamento.
Dos contactos
estabelecidos pelos portugueses com os povos do Mediterrâneo seria de esperar
uma vasta e rica literatura, contudo, os roteiros mediterrânicos de origem
portuguesa quase não existem – o que leva
a concluir que utilizavam os roteiros italianos – e também são poucos os textos
literários de viagens que se referem ao Mediterrâneo. A pouca literatura
existente apresenta características comuns: rotas terrestres percorridas e
pormenorizadas; descrições de paisagens rurais e urbanas com base na geografia
económica de um olhar de mercador; tradução de um olhar de desprezo e ódio
sobre o Islão, com base na desconfiança e na incompreensão; e a expressão de
uma finíssima sensibilidade ao social e ao cultural.
A evolução da
cartografia está directamente ligada à evolução da navegação e à necessidade de
cartas náuticas bem delineadas. A invenção da carta de navegar, com a indicação
dos portos – portulano - data do último terço do século XIII, época em que os
viajantes mediterrânicos estabelecem relações com o Atlântico. A inserção da
referida carta no atlas vai contrariar o mapa-do-mundo – concebido com base na
herança da geografia clássica, as ideias fabulosas da decadência romana, a
visão cristã do universo e do destino e algumas contribuições árabes – e vai bloquear
os dois. E, assim, a cartografia mediterrânica se esgotou. Os sábios estavam
perplexos entre a representação simbólica e a representação do mundo real que
estava a descobrir-se.
A renovação só
pode vir da nova arte de navegação do Atlântico: o cálculo a partir da
observação dos astros e um novo tipo de navio – a arte naútica astronómica, com
início em 1470. Até lá os portugueses navegaram com a ajuda da bússola e das
cartas de navegar. A primeira carta naútica portuguesa data de cerca de 1483 e
é da autoria de Pedro Reinel que fez desaparecer o mundo mítico, representando,
através de desenho correcto, o Atlântico
e as suas costas até ao fundo do golfo da Guiné. A laicização da cartografia
estava feita. A segunda, de Jorge Aguiar, datada de Lisboa, de 1492, retoma o
conjunto da Europa e do Mediterrâneo, mas desce pela costa africana até à Mina.
O mapa–do-mundo português de Cantino, datado de 1502, revela a completa
transformação de concepções e de conhecimentos do globo desde o atlas Catalão
de finais do século XIV. A Geografia sofre um desenvolvimento significativo
como ciência, no meio da contradição ptolemaica em confronto com a revelação
dos descobrimentos. A cartografia no início mostrava a integração do homem na
ordem providencial e a vida terrestre como escala para um destino transcendente.
A partir dos descobrimentos, a nova cartografia forja-se como um utensílio
mental em função do real e vem desempenhar novas funções: permite montar a
primeira rede mundial de comunicações, mas permite também olhar os países e
estruturar a política. O Atlas de 1519, encomendado por D. Manuel e executado
pelos Reineis, representa o auge da convergência destes diversos caminhos e é
um dos monumentos do Renascimento marcado pelo cunho do humanismo prático. É
inegável o papel de destaque dos cartógrafos portugueses e é importante
acrescentar que é um português formado na escola oceânica que pontifica na
escola cartográfica de Veneza, a mais importante do seu tempo, entre 1569 e
1570.
O complexo
mediterrânico entrou em crise deste os finais do século XV, tendo procurado e
conseguido ultrapassá-la através da adaptação naval e do aproveitamento das
oportunidades criadas pela expansão atlântica.
O autor com
este trabalho permite que assistamos à incorporação do Mediterrâneo e do seu
caldo civilizacional – o mar da civilização greco-romana, da civilização judaico-cristã
e da civilização árabe – no conjunto europeu e à crescente supremacia económica
do Atlântico desvendado, que a todos surpreende pela revelação do real.
Braga, 11 de Janeiro de 2004
Maria José Domingues
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