segunda-feira, 3 de julho de 2017

«O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico»



«O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico»
capítulo V da obra MITO E MERCADORIA, UTOPIA E PRÁTICA DE NAVEGAR séculos XIII - XVIII de Vitorino Magalhães Godinho
Recensão Crítica
           
O autor, nascido em 1918, é uma referência para os portugueses, como historiador e como personalidade de exemplar civismo. Não pactuou com a política do Estado Novo e encontrámo-lo em França nesses tempos conturbados. Homem de letras, economista e historiador, doutorou-se na Sorbonne. Recebeu a influência de Lucien Febre e de F. Braudel, que homenageia com o trabalho O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico – o capítulo em recensão. A sua vasta obra percorre toda a História de Portugal, com um olhar demorado para a problemática da expansão. Contudo, as reflexões filosóficas, bem como a problemática da educação e da cidadania, marcam presença nos anos 70 e 80, períodos precedente e sequente da revolução de Abril.
            Neste trabalho, o autor começa por apresentar o Mediterrâneo e a importância da sua civilização milenar, para em seguida demonstrar que entre os séculos XI e XIII um outro complexo se tece e se desenvolve através do mar do Norte e do Báltico, ligando os países bálticos, os países nórdicos, os Países Baixos, a Inglaterra e a Alemanha; complexo esse que pela sua industrialização fomenta um comércio activo por terra e por mar. Na sequência, outros focos de desenvolvimento vão surgindo nomeadamente o da França com os seus vinhos, e o de outras regiões atlânticas com os seus produtos. Entre os dois complexos, a Península Ibérica atlântica, sobretudo a costa da Galiza e de Portugal, é vítima do ataque frequente dos normandos e dos muçulmanos. Paulatinamente vai surgindo a construção naval que permite repelir os atacantes. E, aos poucos, esse espaço compreendido entre o Estreito de Gibraltar e o Norte da Irlanda vai tecendo redes de navegação e laços comerciais, que geram mais saber - acerca da cartografia, que já praticam, e acerca da arte de navegar e da construção naval -  e maior riqueza, que vão permitir lançar as bases de projectos próprios.
Os contactos entre os dois complexos fazem-se sobretudo por rotas terrestres e fluviais, como o provam as notícias das feiras, dos mercados, das peregrinações religiosas, e os mapas da arte românica e gótica. A ligação por via oceânica far-se-ia sobretudo a partir do século XIII.
Os portugueses marcaram presença no Mediterrâneo: em feiras, no século XII, logo após a sua independência; no século XIV e XV, embarcações portuguesas cruzam esse mar descarregando sardinha portuguesa e carregando ou descarregando cereais; nos meados do século XV, uma rede de consulados e feitorias estende-se pela costa europeia mediterrânica até Tunes. Começam por comerciar com as cidades levantinas espanholas, mas sobretudo com o Magrebe, alinhando o sistema monetário português  pelo sistema monetário norte-africano. Os principais vectores da presença portuguesa são o corso e os fretes. Na sua mira, estão as muitas riquezas comerciáveis: o ouro, os escravos, o açúcar, o trigo, os lanifícios, entre outras. Em 1415, dá-se a tomada de Ceuta – chave da navegação mediterrânica e atlântica –, facto que marca a entrada do Atlântico no Mediterrâneo. A conquista de Granada (1492) pelos Reis Católicos e os tratados de demarcação das expansões portuguesas e castelhanas pretenderam pôr fim aos objectivos dos portugueses no Mediterrâneo, todavia muitas incursões continuaram a fazer-se.
A civilização mediterrânica expandiu-se por toda a Europa por rotas terrestres ou marítimas, através dos comerciantes, dos viajantes e dos peregrinos. Frequente é encontrar-se pisanos e genoveses nas escolas de cartografia e de arte de navegar. Os italianos encontram-se por todo o lado. Essas trocas de civilizações e culturas permitiram um enriquecimento em termos das artes, das técnicas, do vocabulário e do pensamento.
Dos contactos estabelecidos pelos portugueses com os povos do Mediterrâneo seria de esperar uma vasta e rica literatura, contudo, os roteiros mediterrânicos de origem portuguesa quase não existem –  o que leva a concluir que utilizavam os roteiros italianos – e também são poucos os textos literários de viagens que se referem ao Mediterrâneo. A pouca literatura existente apresenta características comuns: rotas terrestres percorridas e pormenorizadas; descrições de paisagens rurais e urbanas com base na geografia económica de um olhar de mercador; tradução de um olhar de desprezo e ódio sobre o Islão, com base na desconfiança e na incompreensão; e a expressão de uma finíssima sensibilidade ao social e ao cultural.
A evolução da cartografia está directamente ligada à evolução da navegação e à necessidade de cartas náuticas bem delineadas. A invenção da carta de navegar, com a indicação dos portos – portulano - data do último terço do século XIII, época em que os viajantes mediterrânicos estabelecem relações com o Atlântico. A inserção da referida carta no atlas vai contrariar o mapa-do-mundo – concebido com base na herança da geografia clássica, as ideias fabulosas da decadência romana, a visão cristã do universo e do destino e algumas contribuições árabes – e vai bloquear os dois. E, assim, a cartografia mediterrânica se esgotou. Os sábios estavam perplexos entre a representação simbólica e a representação do mundo real que estava a descobrir-se.
A renovação só pode vir da nova arte de navegação do Atlântico: o cálculo a partir da observação dos astros e um novo tipo de navio – a arte naútica astronómica, com início em 1470. Até lá os portugueses navegaram com a ajuda da bússola e das cartas de navegar. A primeira carta naútica portuguesa data de cerca de 1483 e é da autoria de Pedro Reinel que fez desaparecer o mundo mítico, representando,  através de desenho correcto, o Atlântico e as suas costas até ao fundo do golfo da Guiné. A laicização da cartografia estava feita. A segunda, de Jorge Aguiar, datada de Lisboa, de 1492, retoma o conjunto da Europa e do Mediterrâneo, mas desce pela costa africana até à Mina. O mapa–do-mundo português de Cantino, datado de 1502, revela a completa transformação de concepções e de conhecimentos do globo desde o atlas Catalão de finais do século XIV. A Geografia sofre um desenvolvimento significativo como ciência, no meio da contradição ptolemaica em confronto com a revelação dos descobrimentos. A cartografia no início mostrava a integração do homem na ordem providencial e a vida terrestre como escala para um destino transcendente. A partir dos descobrimentos, a nova cartografia forja-se como um utensílio mental em função do real e vem desempenhar novas funções: permite montar a primeira rede mundial de comunicações, mas permite também olhar os países e estruturar a política. O Atlas de 1519, encomendado por D. Manuel e executado pelos Reineis, representa o auge da convergência destes diversos caminhos e é um dos monumentos do Renascimento marcado pelo cunho do humanismo prático. É inegável o papel de destaque dos cartógrafos portugueses e é importante acrescentar que é um português formado na escola oceânica que pontifica na escola cartográfica de Veneza, a mais importante do seu tempo, entre 1569 e 1570.
O complexo mediterrânico entrou em crise deste os finais do século XV, tendo procurado e conseguido ultrapassá-la através da adaptação naval e do aproveitamento das oportunidades criadas pela expansão atlântica.
O autor com este trabalho permite que assistamos à incorporação do Mediterrâneo e do seu caldo civilizacional – o mar da civilização greco-romana, da civilização judaico-cristã e da civilização árabe – no conjunto europeu e à crescente supremacia económica do Atlântico desvendado, que a todos surpreende pela revelação do real.
Braga, 11 de Janeiro de 2004
Maria José Domingues

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