segunda-feira, 3 de julho de 2017

Garcia de Resende "Outro mundo encuberto / vimos então descobrir"




À descoberta de outros mundos
Garcia de Resende " Outro mundo encuberto / vimos então descobrir"
           
                        No semanário Expresso de 24 de Janeiro de 2004, o título “Sonda europeia reforça hipótese de vida em Marte” responde à nossa busca de notícias sobre o assunto mais empolgante das descobertas da nova era. No seu último parágrafo, informa que a Mars Express é a primeira missão da ESA no Planeta Vermelho e tem como um dos seus objectivos fazer um mapeamento e fotografar a superfície marciana em busca de sinais de vida. A nossa expectativa prende-se com o acontecimento na sua globalidade e com a busca dos sinais de vida em especial.
            Paramos para pensar.
            A expansão no espaço conduz-nos por um fio cultural à expansão dos mares, numa viagem no tempo.
Situemo-nos no século XVI, após as grandes descobertas de novos mundos, para conhecer o testemunho de um homem, que, pela sua longevidade e condição, viveu na corte dos três reis das descobertas: D. João II, D. Manuel I e D. João III. Referimo-nos a Garcia de Resende (1470? -1536), organizador de O Cancioneiro Geral, autor da Crónica de D. João II e da Miscelânea.
Encontramo-lo terminando a escrita da Miscelânea, em 1533. A sua figura obesa e jovial irradiava tranquilidade. O seu testemunho ganhara forma e tornara-se letra, quem sabe, imorredoura. Até onde chegaria a sua mensagem no tempo? Não era ele, autor, que estava em causa, embora a fama agrade ao homem, mas os feitos gloriosos dos portugueses. Reflectia e avaliava, enquanto folheava o manuscrito: tinha conseguido transmitir o seu testemunho e em simultâneo fazer a análise crítica do seu tempo. E que tempo aquele! Tinham conseguido desvendar um outro mundo, para além de alcançarem um império! Contudo, sentia o desconcerto do mundo, que lhe parecia ter transmitido logo a partir do Prólogo. Lembrara-se do outro, o do Cancioneiro Geral, dedicado ao rei D. Manuel, em que afirmara ser condição natural dos portugueses desleixarem a escrita dos seus feitos. Conseguira finalmente sair dessa condição natural, apesar dos glosadores, e abrir caminho a outros que queiram dizer melhor, como escreveu na “Conclusam” da Miscelânea:
Ho caminho fica aberto a quem mais quiser dizer: tudo o que escrevi é certo.”

Teria conseguido atingir a veracidade histórica sobre os feitos da sua época? Parou nas estrofes em que refere D. Manuel e as transformações operadas no seu reinado. Aproximamo-nos e, por cima do seu ombro, vamos lendo e reflectindo, com um distanciamento de quase cinco séculos.

“Vimoslhe fazer Belém / cõ ha gram torre no mar,/has casas do almazém / com armaria sem par / fez soo el Rey que Deus tem; / vimos seu edificar: / no Reyno fazer alçar / paços, igrejas, mosteiros, / grandes, pouos, caualeiros, / vi o reyno renouar/”

Lemos o seu testemunho da renovação do reino, feita exclusivamente naquele reinado, num realismo visual traduzido por formas verbais do verbo ver, no pretérito perfeito do indicativo, na primeira pessoa – vimos (3 vezes) e vi (uma vez).
Que viu então?
Estamos perante o enunciado das consequências da descoberta de um outro vasto e largo mundo
E, tal como uma nau que regressasse de viagem, vê a primeira novidade: a Torre de Belém, mandada construir por D. Manuel I, cerca de 1514, possivelmente devido ao plano de D. João II de mandar fortificar a barra do Tejo. Esse monumento de estilo manuelino, construído dentro da água, teve como supostos desenhadores um de três nomes muito conceituados: Francisco de Arruda, Boytac ou o do próprio Garcia de Resende, homem de muitos e variados saberes – desenhador, compositor, músico e escritor. Seria mais uma razão para ter começado a enumeração por ela? Um sorriso de satisfação bailou-lhe nos olhos vivos.
Depois da passagem da Torre, a nau atracaria no porto, para descarregar nos armazéns, indispensáveis numa época de viagens expansionistas, em que a fé e o império se conjugavam na busca de riqueza, que se armazenava para se comerciar em seguida: as especiarias, o ouro, a prata, as peles, o marfim, o açúcar, as sedas, os escravos, os animais exóticos e tudo o que os olhos europeus podiam cobiçar.
Se nos primeiros tempos da expansão, o tráfico foi quase livre, a competição desenfreada levou a Coroa a intervir e, em 1504, foi imposto o controlo do Estado sobre todo o comércio com o Oriente. Os direitos de alfândega subiram de 5 para 30%. Em 1506, o rei criou um monopólio oficial sobre as importações, vendas e exportações de certos produtos e só a Coroa poderia armar e mandar navios para o Oceano Índico. Esse mercantilismo foi devidamente organizado, já que o reinado de D. Manuel I foi caracterizado por uma excelente administração, com um pequeno grupo de ministros experientes e devotados à governação. A Casa da Índia era o centro de todo o comércio e administração do Ultramar e foi devidamente remodelada. Vivia-se, desde 1489 até 1539, um período de grande estabilidade monetária, devido ao afluxo combinado do ouro e da prata. Foi no reinado de D. Manuel que se cunharam os portugueses de ouro e, mais tarde, os portugueses ou escudos de prata.
O papel da moeda aliada aos metais preciosos é o cerne do movimento mercantilista nascente. O mercantilismo, definido, em geral, como a teoria do enriquecimento das nações pela acumulação dos metais preciosos, nasceu nos finais do século XV com a chegada à Europa dos metais preciosos. Qual foi o país que os trouxe pela primeira vez em grande quantidade? Foi Portugal - país de marinheiros, mas também de comerciantes, cuja marca profunda perdurou até aos nossos dias. Ainda no Século XX, o acumular de metais preciosos era o trunfo da governação de Salazar, que armazenava o ouro no Banco de Portugal, enquanto Portugal se subdesenvolvia
Continuemos a viagem com Garcia de Resende. Saídos do porto, iniciamos a visão do reino renovado. Com a economia estabilizada e o país organizado, foi possível construir belos monumentos – vimos seu edificar / no Reino fazer alçar / paços, igrejas, mosteiros -, muitos deles de estilo manuelino, definido pela História de Portugal dirigida por José Mattoso, no capítulo intitulado «A conjuntura artística e as mudanças de gosto», da autoria de Paulo Pereira – «particularização portuguesa do gótico tardio europeu, através da adopção de sistemas decorativos mais complexos: colunas torsas, cordas, volumes gordos, pináculos cónicos, contrafortes subcirculares; experiências de espaço, tendendo para a isotropia; sobrecarga ornamental e um peso de um registo heráldico, conceptualmente muito desenvolvido». Os monumentos de estilo manuelino espalham-se um pouco por todo o país; são considerados emblemáticos o Mosteiro dos Jerónimos (lançamento da primeira pedra – 1502) e o coro do Convento de Cristo em Tomar.
Garcia de Resende viu alçar cavaleiros. Conhecido que é o significado da palavra caualeiros na Idade Média, qual o significado da palavra, no reinado de D. Manuel? Segundo o Dicionário de História de Portugal, uma pragmática dos meados de século XIV revela que, já nesta época, a palavra cavaleiro surge como categoria social puramente honorífica, como degrau de subida para todo aquele que possuísse os bens necessários para a comprar. No século XV, ser cavaleiro não passa de um ideal, que se vai transformando em moda seguida pela alta nobreza, como modelo da vida aristocrática. Estaremos nessa fase no tempo do rei D. Manuel? Por que razão Garcia de Resende fala em ver alçar cavaleiros? Referir-se-ia à Guarda Real do Rei que seleccionava entre os melhores da nobreza ou da plebe? Ou então aos títulos nobiliárquicos atribuídos pelo Rei? Sabemos que os grupos sociais foram profundamente alterados como consequência dos descobrimentos e da expansão comercial: a nobreza aburguesou-se, a burguesia nobilitou-se – o cavaleiro mercador e o burguês enobrecido são criações desta época - e a classe mais baixa pôde libertar-se das dependências.
Terminada a visão avaliativa dos feitos de el-rei no seu reino, Garcia de Resende encolheu os ombros, como quem diz: tais obras mereciam melhor expressão, mas outros hão-de vir…
Passamos à leitura da segunda estrofe. Vimos descobrir outro mundo encoberto – mas foi isso mesmo: foi possível encontrar outro mundo!

“Outro mundo encuberto / vimos então descobrir, / que se tinha por incerto: / pasma homem de ouuir / ho que sabe muito certo, / que cousas tam grandes sam / hos da Índia, e Iucatam, /e quam na China espantosas, / que façanhas façanhosas / no Brasil e Peru vaam/”

E isso conduz-nos, de novo, à expectativa do século XXI do encontro de outros mundos espaciais com vida. As consequências são indecifráveis.

Quando D. Manuel sobe ao trono (1495), já o vasto complexo do Oceano Atlântico estava montado. À medida que progrediam na costa africana, os portugueses iam registando nas cartas os seus avanços, que eram comunicados aos cartógrafos. A ciência náutica, iniciada pelos portugueses no século XV, atinge na época de quinhentos a época áurea da cartografia portuguesa, como a designa Armando Cortesão. Reflecte o avanço do conhecimento geográfico da época, que influencia profundamente a cartografia europeia. São considerados monumentos cartográficos nacionais:  o planisfério de Cantino de 1502, onde a costa de África e a orla continental do Oceano Índico, se encontram perfeitamente delineadas, mas o desconhecido é representado de acordo com fontes árabes e com a geografia ptolemaica; o Atlas do mundo, de 1519, primorosamente iluminado e considerado um dos monumentos do Renascimento caracterizado pelo cunho do humanismo prático, executado por Lopo Homem, Pedro e Jorge Reinel, encomendado por D. Manuel e oferecido por ele ao rei da França, Francisco I. Segundo Magalhães Godinho, a representação cartográfica do Atlas do mundo de 1519 marca o sucesso da busca dos homens e a viragem para a claridade de um mundo representado, passível de ser abrangido por um só olhar. A racionalidade tinha vencido a mitologia de qualquer origem.
 Muitas foram as inovações introduzidas pelos portugueses na cartografia, de entre elas destacamos a escala de latitudes nas cartas naúticas, a graduação de longitudes, os regimentos cosmográficos e as tabelas de marés, pelas suas consequências inovadoras.
A cartografia portuguesa atingiu no século XVI um lugar inultrapassável na época, tanto pela quantidade dos cartógrafos em laboração como pela perfeição técnica, geográfica e artística conseguida.
A influência da cartografia portuguesa espalhou-se pela Europa, mas não só, pois foram encontradas cerca de duas dezenas de cartas de inspiração portuguesa no Japão.
Um mundo novo foi descoberto e os homens de quinhentos viram alargada e alterada a sua noção de espaço e foram capazes de fazer a introdução do experienciado na tradução do espaço percorrido (p.3) e fizeram-no numa evolução criativa e científica, dando ao ser humano a possibilidade de apreender o mundo com um só olhar e de confrontarem no espaço planetário as nações, os continentes e os mares.
Eram as notícias desse mundo novo que chegavam aos que não partiam, como era o caso de Garcia de Resende. Os eventos eram experienciados já não directamente pelos seus olhos, mas pelos seus ouvidos, através de relatos orais, que pasma homem de ouir / ho que sabe muito certo. Que se ouve na corte do rei D. Manuel? Nos primeiros tempos, as preocupações centram-se na viagem marítima à Índia, preparada por D. João II e iniciada em 1497, já no reinado de seu cunhado e primo, o rei D. Manuel. Aguardam-se notícias, que no tempo só podiam vir muito lentamente. Quando elas chegam, enchem de espanto os ouvintes. Sobre a Índia, já havia algum conhecimento, pois D. João II mandara expedições terrestres para saber da certeza do êxito de uma viagem marítima, percorrendo a costa oriental de África, e para estabelecer contactos em terras do Prestes João, na mira de uma aliança. A expedição marítima à Índia, comandada por Vasco da Gama, foi o grande acontecimento. Ela percorre os caminhos atlânticos já conhecidos, mas não sem dificuldades, dobra o cabo da Boa Esperança – a porta que Bartolomeu Dias abrira em 1488 – fundeia em Melinde, na costa oriental da África, e segue para Calecute. Estava feita a ligação do Atlântico com o Índico. Os portugueses tocavam os centros nevrálgicos do comércio do Oriente. E do ponto de vista geográfico a importância era enorme: o Atlântico fora desvendado até à união com o Índico. A partir daí o objectivo era a Índia e as suas riquezas – profundo golpe para o comércio do sul da Europa. Entretanto os expedicionários foram galardoados pelo rei, sobretudo o chefe da expedição. O rei mostrava a sua satisfação com tal sucesso, resplandecia o optimismo da sociedade portuguesa, e o nome e os interesses de Portugal sobressaíam na Europa. O acontecimento em si e a expansão no Oriente deram origem a obras históricas de envergadura excepcional de João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e Damião de Góis, como sabemos, todas posteriores à Miscelânea de Garcia de Resende.
Para além da Índia, há referências, na estrofe, aos relatos sobre a exploração do Atlântico Oriental (Brasil, e Iucatão - berço da civilização Maia, pertencente ao México) e do Oceano Pacífico (Peru).
Garcia de Resende tem consciência de que é impossível contar tudo ou até seleccionar entre tantas descobertas de outros povos, de outros costumes, de outras nações. Decide então: «Contarey das que sei bem». E assim vai fazer no decurso da Miscelânea, sobre a qual partilhamos a opinião de Veríssimo Serrão: «Não resta dúvida de que Garcia de Resende compreendeu a vida nos seus quadros mentais de «tempo» e «espaço», ou seja como dimensão e itinerário. A Miscelânea constitui o testemunho dessa convicção. Para ele, a existência seria composta por factos soltos que formavam um trajecto coerente para integrar a pessoa humana na história.»

Na retrospectiva feita sobre o reinado de D. Manuel, nós encontrámos um Portugal bem organizado no que respeita à economia e à política, embelezado arquitectonicamente, com uma cartografia exemplar, e, ainda, em transformação social, mercê de um comércio em progressão e de uma ocupação de postos na administração ultramarina. Tudo isto sob o signo da expansão bem sucedida.
Substituindo Europa por Portugal no texto de Magalhães Godinho, diríamos que Portugal se revia na sua obra e ganhava consciência frente ao resto do mundo. Uma sociedade urbana de base mercantilista estava em formação. A civilização acreditou no homem e na sua racionalidade, e o homem deslumbrado com tanta novidade julgou-se um deus com o Paraíso terreal ao seu alcance.

Bibliografia
Crónica de D. João II e Miscelânea por Garcia de Resende.
Descobrimentos Portugueses,  Damião Peres, Coimbra, 1960.
Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, Porto, Livraria Figueirinhas, 1989.
História de Portugal, dirigida por José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993.
História de Portugal, A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Edições Ágora, 1972.
História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Aurélio de Oliveira e outros, Lisboa, Universidade Aberta, 1990.
Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar Séculos XIII-XVIII, de Vitorino Magalhães Godinho, Edição: Difel, dezembro de 1990.

Braga, 31/01/04
Maria José Domingues

«O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico»



«O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico»
capítulo V da obra MITO E MERCADORIA, UTOPIA E PRÁTICA DE NAVEGAR séculos XIII - XVIII de Vitorino Magalhães Godinho
Recensão Crítica
           
O autor, nascido em 1918, é uma referência para os portugueses, como historiador e como personalidade de exemplar civismo. Não pactuou com a política do Estado Novo e encontrámo-lo em França nesses tempos conturbados. Homem de letras, economista e historiador, doutorou-se na Sorbonne. Recebeu a influência de Lucien Febre e de F. Braudel, que homenageia com o trabalho O Mediterrâneo no horizonte dos Europeus do Atlântico – o capítulo em recensão. A sua vasta obra percorre toda a História de Portugal, com um olhar demorado para a problemática da expansão. Contudo, as reflexões filosóficas, bem como a problemática da educação e da cidadania, marcam presença nos anos 70 e 80, períodos precedente e sequente da revolução de Abril.
            Neste trabalho, o autor começa por apresentar o Mediterrâneo e a importância da sua civilização milenar, para em seguida demonstrar que entre os séculos XI e XIII um outro complexo se tece e se desenvolve através do mar do Norte e do Báltico, ligando os países bálticos, os países nórdicos, os Países Baixos, a Inglaterra e a Alemanha; complexo esse que pela sua industrialização fomenta um comércio activo por terra e por mar. Na sequência, outros focos de desenvolvimento vão surgindo nomeadamente o da França com os seus vinhos, e o de outras regiões atlânticas com os seus produtos. Entre os dois complexos, a Península Ibérica atlântica, sobretudo a costa da Galiza e de Portugal, é vítima do ataque frequente dos normandos e dos muçulmanos. Paulatinamente vai surgindo a construção naval que permite repelir os atacantes. E, aos poucos, esse espaço compreendido entre o Estreito de Gibraltar e o Norte da Irlanda vai tecendo redes de navegação e laços comerciais, que geram mais saber - acerca da cartografia, que já praticam, e acerca da arte de navegar e da construção naval -  e maior riqueza, que vão permitir lançar as bases de projectos próprios.
Os contactos entre os dois complexos fazem-se sobretudo por rotas terrestres e fluviais, como o provam as notícias das feiras, dos mercados, das peregrinações religiosas, e os mapas da arte românica e gótica. A ligação por via oceânica far-se-ia sobretudo a partir do século XIII.
Os portugueses marcaram presença no Mediterrâneo: em feiras, no século XII, logo após a sua independência; no século XIV e XV, embarcações portuguesas cruzam esse mar descarregando sardinha portuguesa e carregando ou descarregando cereais; nos meados do século XV, uma rede de consulados e feitorias estende-se pela costa europeia mediterrânica até Tunes. Começam por comerciar com as cidades levantinas espanholas, mas sobretudo com o Magrebe, alinhando o sistema monetário português  pelo sistema monetário norte-africano. Os principais vectores da presença portuguesa são o corso e os fretes. Na sua mira, estão as muitas riquezas comerciáveis: o ouro, os escravos, o açúcar, o trigo, os lanifícios, entre outras. Em 1415, dá-se a tomada de Ceuta – chave da navegação mediterrânica e atlântica –, facto que marca a entrada do Atlântico no Mediterrâneo. A conquista de Granada (1492) pelos Reis Católicos e os tratados de demarcação das expansões portuguesas e castelhanas pretenderam pôr fim aos objectivos dos portugueses no Mediterrâneo, todavia muitas incursões continuaram a fazer-se.
A civilização mediterrânica expandiu-se por toda a Europa por rotas terrestres ou marítimas, através dos comerciantes, dos viajantes e dos peregrinos. Frequente é encontrar-se pisanos e genoveses nas escolas de cartografia e de arte de navegar. Os italianos encontram-se por todo o lado. Essas trocas de civilizações e culturas permitiram um enriquecimento em termos das artes, das técnicas, do vocabulário e do pensamento.
Dos contactos estabelecidos pelos portugueses com os povos do Mediterrâneo seria de esperar uma vasta e rica literatura, contudo, os roteiros mediterrânicos de origem portuguesa quase não existem –  o que leva a concluir que utilizavam os roteiros italianos – e também são poucos os textos literários de viagens que se referem ao Mediterrâneo. A pouca literatura existente apresenta características comuns: rotas terrestres percorridas e pormenorizadas; descrições de paisagens rurais e urbanas com base na geografia económica de um olhar de mercador; tradução de um olhar de desprezo e ódio sobre o Islão, com base na desconfiança e na incompreensão; e a expressão de uma finíssima sensibilidade ao social e ao cultural.
A evolução da cartografia está directamente ligada à evolução da navegação e à necessidade de cartas náuticas bem delineadas. A invenção da carta de navegar, com a indicação dos portos – portulano - data do último terço do século XIII, época em que os viajantes mediterrânicos estabelecem relações com o Atlântico. A inserção da referida carta no atlas vai contrariar o mapa-do-mundo – concebido com base na herança da geografia clássica, as ideias fabulosas da decadência romana, a visão cristã do universo e do destino e algumas contribuições árabes – e vai bloquear os dois. E, assim, a cartografia mediterrânica se esgotou. Os sábios estavam perplexos entre a representação simbólica e a representação do mundo real que estava a descobrir-se.
A renovação só pode vir da nova arte de navegação do Atlântico: o cálculo a partir da observação dos astros e um novo tipo de navio – a arte naútica astronómica, com início em 1470. Até lá os portugueses navegaram com a ajuda da bússola e das cartas de navegar. A primeira carta naútica portuguesa data de cerca de 1483 e é da autoria de Pedro Reinel que fez desaparecer o mundo mítico, representando,  através de desenho correcto, o Atlântico e as suas costas até ao fundo do golfo da Guiné. A laicização da cartografia estava feita. A segunda, de Jorge Aguiar, datada de Lisboa, de 1492, retoma o conjunto da Europa e do Mediterrâneo, mas desce pela costa africana até à Mina. O mapa–do-mundo português de Cantino, datado de 1502, revela a completa transformação de concepções e de conhecimentos do globo desde o atlas Catalão de finais do século XIV. A Geografia sofre um desenvolvimento significativo como ciência, no meio da contradição ptolemaica em confronto com a revelação dos descobrimentos. A cartografia no início mostrava a integração do homem na ordem providencial e a vida terrestre como escala para um destino transcendente. A partir dos descobrimentos, a nova cartografia forja-se como um utensílio mental em função do real e vem desempenhar novas funções: permite montar a primeira rede mundial de comunicações, mas permite também olhar os países e estruturar a política. O Atlas de 1519, encomendado por D. Manuel e executado pelos Reineis, representa o auge da convergência destes diversos caminhos e é um dos monumentos do Renascimento marcado pelo cunho do humanismo prático. É inegável o papel de destaque dos cartógrafos portugueses e é importante acrescentar que é um português formado na escola oceânica que pontifica na escola cartográfica de Veneza, a mais importante do seu tempo, entre 1569 e 1570.
O complexo mediterrânico entrou em crise deste os finais do século XV, tendo procurado e conseguido ultrapassá-la através da adaptação naval e do aproveitamento das oportunidades criadas pela expansão atlântica.
O autor com este trabalho permite que assistamos à incorporação do Mediterrâneo e do seu caldo civilizacional – o mar da civilização greco-romana, da civilização judaico-cristã e da civilização árabe – no conjunto europeu e à crescente supremacia económica do Atlântico desvendado, que a todos surpreende pela revelação do real.
Braga, 11 de Janeiro de 2004
Maria José Domingues